sábado, 29 de dezembro de 2012

2013- DEVOLUÇÃO DA IDENTIDADE ANÍMICA PARA PORTUGAL


Lembro-me de no início de 2009 ter pensado que essa crise, que então se anunciava, não passaria de um anúncio, próprio dos indesejáveis, mas sempre presentes arautos da desgraça. Infelizmente enganei-me. E enganei-me porque então ainda tinha alguma confiança na nossa desgraçada classe política. Para meu infortúnio curei-me dessa ilusão, porque ao curar-me dela, obrigatoriamente que tomei consciência da realidade, e a realidade não é nada animadora.
No final deste ano de 2012, agora verdadeiramente de tanga, vemos o pequenino governo português pendurado no braço forte de uma troika austera, dando à perninha, mendigando a chupeta, ao mesmo tempo que anuncia aos portugueses que a austeridade é a redenção de todos os nossos pecados.
Quero-vos desejar um ano de 2013 muito feliz. Nunca estes votos foram tão necessários como agora. Mais do que nunca é imperativo que D. Sebastião regresse, para nos resgatar desta teia, mas um D. Sebastião fortalecido, que traga projectos profundos e soluções. Mesmo que venha numa manhã de sol não há qualquer problema. É preciso é que venha e devolva a Portugal a sua identidade anímica.
Para todos vós um enorme abraço de esperança para 2013!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

NATAL, QUE SE QUER SER FRATERNIDADE E AMOR

Neste natal ainda não me senti tocado por aquele espirito que nos empurra para a alegria de uma árvore de natal ou de um presépio. Ainda não me senti embalado pela alegria que anda no ar, porque ou essa alegria não existe ou eu não tenho capacidade para a detectar. Mas tenho de fazer um esforço, porque, efectivamente, estamos na época natalícia.
E porque, este ano, mais do que em qualquer outro que me lembre na minha vida, e que já leva umas décadas, a solidariedade é mais importante do que nunca, desejaria que o mundo, não sei se tenho peito para um desejo tão grande, mas pelo menos o mundo que gira perto do meu viver, conseguisse realmente ser solidário para que a felicidade florescesse no rosto de todos.
A todos os que, por esse mundo fora, nos têm visitado, e com uma forte incidência nos nossos compatriotas, pois mais do que nunca, precisamos de entender as amarguras uns dos outros e de aproximar-mos os nossos corações, desejo um Natal o mais feliz possível, onde consigamos atingir a verdadeira fraternidade. Que o Menino Jesus entre carinhosamente em vossas casas este Natal!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

NA CURVA DA PICADA


...Homens e carros iam parando. Álvaro percorria a picada em sentido contrário àquele em que a coluna seguia. Caminhava com passos rápidos e firmes. A voz que lhe segredara o aviso, fizera-o sentir tão certo da emboscada, como se ele, invisível, ali tivesse estado, e cheio de oportunidade constatasse o inimigo emboscado, verdade absoluta que ia anunciar ao seu comandante.
         Todos o observavam cheios de curiosidade e preocupação. Havia corações que aceleravam o batimento, espicaçados pela adrenalina. Álvaro ia passando por homens que embora tivessem vontade de perguntar o que se passava, não arranjavam coragem para o fazer. Álvaro passou pelo seu amigo, o alferes Mendes. Este perguntou-lhe:
-         O que è que se passa? Porque è que vens para trás?
-         Mantém-te atento- respondeu Álvaro sem parar.
         No meio da coluna, já o capitão Rebelo se mostrava inquieto com a paragem da companhia, sem que para isso tivesse dado ordem, quando por detrás de uma berliet surgiu Álvaro.
-         Alferes Santa Cruz, o que faz aqui? Qual è o problema na frente da coluna?- perguntou o capitão Rebelo.
-         Por enquanto não è nenhum meu capitão. Mas mais à frente temos problemas.
-         Como? Que raio está você p’ra ai a dizer?
-         Meu capitão, gostaria de lhe falar em particular.
-         Você está senil alferes Santa Cruz? Está a ser vítima de ataque de paludismo?
-         Não meu capitão. O que lhe tenho a dizer è estranho, mas pode evitar problemas à nossa companhia.
         O capitão de imediato ordenou que a cabina da berliet mais próxima ficasse vazia. Os dois nela entraram, enquanto dezenas de olhos lhes seguiam os movimentos.
-         Desembuche homem e seja rápido. Não gosto de ver a coluna aqui parada- dizia o comandante de companhia.
-         Meu capitão, depois daquela curva lá ao fundo temos uma emboscada à nossa espera- disse Álvaro sem fixar o seu interlocutor.
-         O quê? Que merda è esta Alferes Santa Cruz? Pensa que estamos a jogar aos « cowboys»? Que raio de oficial...
-         Meu capitão, depois daquela curva, debaixo de um pequeno montículo está armadilhada uma mina anti carro. Alguns metros à frente existe um grande tronco caído, atravessado na picada. Estão lá camuflados muitos turras.
-         Como è que você sabe disso?
-         Não sei explicar, foi como...uma intuição- dizia Álvaro, demonstrando sinais de embaraço.
-         Porreiro... isto è bestial... agora a guerra faz-se por palpites ou bruxaria- dizia o capitão Rebelo bamboleando a cabeça.
-         Meu capitão, por favor ouça-me. Se ali não houver nada pode-me instaurar um processo com o R.D.M.
-         Muito bem alferes Santa Cruz. Tenho-o como um homem de senso e só por isso acedo a esta palermice. Se no entanto você me fizer cair no ridículo perante a companhia...
-         Meu capitão, sem pestanejar eu corro esse risco.
-         Vamos lá então.
         Ambos saíram da cabina da berliet. O comandante de companhia chamou os outros dois alferes e disse-lhes:
-         Meus senhores, por adivinhação, pressentimento ou o raio que parta esta maldita guerra, o vosso colega, alferes Santa Cruz, diz ter a certeza de que depois daquela curva da picada, lá ao fundo, sob um montículo, está armadilhada uma mina anti carro e que mais à frente encontra-se um tronco caído, onde se escondem turras para nos montarem uma emboscada. Vocês vão transmitir isto aos vossos homens e ai do primeiro que eu ouça rir. Quero dois ou três atiradores especiais para dispararem sobre o montículo, se houver montículo, quero os artilheiros prontos com as bazucas e respectivos municiadores, para dispararem sobre o tronco. Esperemos que não seja um pau de fósforo. Quero também os morteiros prontos. Desobedecendo às regras, a partir daqui eu vou à frente da companhia. Se houver montículo e tronco, quero toda a gente de imediato a disparar. Se não houver nem montículo, nem mina, nem tronco e nem turras, prepare-se senhor alferes Santa Cruz. Por esta vez reze para que existam inimigos. Ainda está a tempo de reconsiderar...
-         Não meu capitão, eles estão lá- interrompeu Álvaro.
-         Muito bem, vamos lá então meus senhores- ordenou o capitão Rebelo...(em continuação, pág. 74- ex. XXI)

in VISITADOS
Novembro/1999

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

UMA VIDA POBRE DEMAIS PARA SEGREDOS


...O mouro cavalgava a trote pela herdade. Era sem dúvida os olhos e os ouvidos do Barreto Raposo. A sua atenção era quase completamente direccionada para os trabalhadores de Alfeizerão. Ninguém na sua presença se podia sentir indiferente. Mantinha o mesmo olhar de aço, um rosto sem expressão nem indicador dos mínimos sentimentos. O Barreto Raposo valia-se dele para poder aniquilar à nascença qualquer manifestação de revolta. E o sentimento de revolta existia, adormecido numa hibernação contínua, mas pronto a explodir ao menor sinal de ajuda, que tardava a surgir. O Barreto Raposo não era amigo dos seus assalariados. Não conversava amistosamente com eles, como o fizera o morgado Vitorino. Não era uma mão pronta a ajudar, como o fora o morgado Vitorino. O Barreto Raposo era um tirano, um explorador. As gentes de Alfeizerão sentiam que a presença do Barreto Raposo, na qualidade de proprietário da herdade, estava apoiada por uma história com muito pouco sentido. Que necessidade tivera o morgado em vender a herdade? Ao vendê-la, que necessidade tivera em desaparecer na companhia de um dos filhos e do capataz? Teria o assalto ao solar tido algum relacionamento com a venda da herdade? Estaria o Barreto Raposo implicado no assalto? Todas estas perguntas estavam sem resposta e andavam no ar havia doze anos. Mas o tempo tudo transforma. Até mesmo os menos resignados ao desaparecimento do morgado, já davam mostras de aceitarem a situação como definitiva. A imagem da presença forte e sempre bem saudada do capataz José Chambão, cavalgando por pastos e terras de cultivo, já praticamente caíra no esquecimento de todos. Iam-se habituando ao deambular maléfico do novo capataz, o mouro.
Regressava este de mais uma ronda que fizera aos locais onde os homens suavam o rosto, no esforço de pedirem o pão à terra. Continuava a ostentar a visão terrífica da sua cimitarra. Ele era só um contra um monte deles. Ria-se do seu poder.
Conseguira amedrontá-los a todos. Conseguira também a casa que fora do outro capataz, o mesmo que ele mandara para o inferno. Habitava nela, na companhia do verruga. Aquilo sim era vida. Desconfiava que até mesmo o patrão o temia. Dava-lhe tudo que ele pedisse. Um bom patrão e muitos homens a quem podia provocar medo! Havia coisa melhor?
Ao passar no casario trabalhador despertou-lhe a atenção uma casa. Dela chegavam aos seus ouvidos sons de choro e gargalhadas. Parou o mouro e desceu do cavalo. Aquela era a casa daquela mulherzinha com cabelo vermelho que andava vestida de preto. Estava intrigado o mouro. Só conhecera tristeza naquela casa. De repente tantas gargalhadas?! Alguma coisa haveria. Não que isso prejudicasse a produção da herdade, mas que o patrão gostava de saber de todas as alegrias e tristezas dos que trabalhavam para si, lá isso gostava. E ele mouro, aplicava-se a fundo a descobrir todos os segredos. Essa era uma das formas de ganhar a estima e consideração do patrão. Mas poucas novidades haviam. A vida daquela gente era pobre demais para terem tempo para segredos. Mas que naquela casa havia história, lá isso havia...(em continuação, pág. 107, ex. XXXVII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

domingo, 21 de outubro de 2012

DOZE ANOS DEPOIS A REVELAÇÃO, A ALEGRIA, A TABERNA DO TI CHICO BENTO


...As crianças não correrão perigo. Mas não é justo. Desculpe a minha ousadia senhor padre, mas o que pede não é deste mundo. Como pode um homem conter-se perante tanto crime? Que mãos poderão deter as minhas próprias mãos, quando perdi tudo na vida, quando sofri tanto, quando cheirei tanto sangue, tanto homem podre e tudo por culpa desse maldito Barreto Raposo?
- Tu António, por momentos recordaste-me o capataz José Chambão. Era essa a opinião que ele tinha desse Raposo. Caso lhe tivéssemos dado ouvidos, talvez nada disto tivesse acontecido.
- O capataz pressentia o perigo.
- É verdade, agora posso afirmá-lo.
- E não se esqueça senhor padre, de que temos de ultrapassar a resistência dos dois cães de guarda do Barreto Raposo, o mouro e o verruga. Esses bichos só entendem uma maneira de falar.
- Tens razão. No entanto eu vou tomando algumas medidas que acho necessárias. Finalmente concederam a Alfeizerão o direito a ter um regedor. Vou ter uma conversa com ele. Mas antes tenho de libertar a Lucinda daquele sofrimento.
- Cuidado senhor padre. Ela não pode contar a ninguém.
- Tens receio? Durante estes doze anos de ocupação ainda não chegou aos ouvidos do Barreto Raposo que o verdadeiro dono da herdade se cruza todos os dias com ele e humildemente obedece às suas ordens. Quem guardou tão bem esse segredo, está à altura de guardar um segundo. Faz os preparativos da acção que eu me hei-de encarregar dos preliminares. E que Deus nos perdoe e nos proteja. Sabes, apetece-me celebrar qualquer coisa. Que tal fazermos um brinde ao renascimento da herdade e do solar Vila de Ló?
- Com muita, mas mesmo muita vontade eu brindo a essa nova vida - disse António Avilar.
     À pequenina adega foi o padre José Soares buscar uma esquecida garrafa de vinho do Porto. O pó de alguns anos transformara aquele vinho num maná do céu. Só um néctar assim era digno de selar uma aliança como aquela, por uma tão nobre causa.
Cálices despejados, uma, duas vezes, na despedida o padre José Soares disse a António Avilar:
- Vieste aqui em busca de ajuda. Afinal que auxílio levas?
- Todo senhor padre. O relógio da minha vida recomeçou a andar. É bom sentir-me vivo outra vez. Obter do senhor padre a compreensão em relação à minha participação no assalto, tornou-me mais leve. O fardo desapareceu. Ter ganho no senhor um aliado na missão que aqui me retém, foi uma boa surpresa. Estou capaz de revolver este mundo e o outro.
- E em relação ao Bombarral?
- Para o Bombarral eu morri há quatro anos. A Luísa não merece ser assombrada por um fantasma. Não tenho condições para ser marido dela, nem de nenhuma outra. Hei-de aprender a viver com isso. A sua benção senhor padre.
- Deus te abençoe alma boa.
Já a noite envolvia Alfeizerão. O padre ficou por momentos parado, a seguir com o olhar o percurso daquele homem que já não podia divisar, pois a escuridão era plena. Respirou o ar outonal. Que surpresas Deus revela aos homens. Qual o sentido de tudo isto? Qual o sentido da existência de cada um de nós? Como era possível que um desconhecido, protagonista daquela noite maléfica, viesse doze anos depois a transformar-se na esperança de resgate do que era ainda possível salvar. Que vida, que grandes privações, que excelente exame estava aquela alma, aquele António Avilar a fazer!
Assim reflectia o padre José Soares.
António Avilar ia feliz. Caminhava de alma cheia. Sempre houvera afinal um ser humano que lhe estendera os braços. Um homem que sofrera com o pecado da sua vida. E perdoara-lhe. Agora, mais do que nunca, a consistência da sua vontade era indestrutível. Chegara ao Alto da Estrada. A taberna do Ti Chico Bento ainda estava aberta. Ouviam-se vozes e de uma pequenina janela saía uma luz mole, alternada de sombras. O Ti Zé da Estrada, pela primeira vez em doze anos, ia visitar o reino de Baco com um sorriso nos lábios...(em continuação, pág. 105- ex. XXXVI)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

domingo, 14 de outubro de 2012

100 ANOS DEPOIS, DE NOVO NO «REVIRALHO»



Hoje, ao passar numa rua, deparei-me com uma frase pintada numa parede, que perguntava: PS, CDS, PSD, até quando?
Esta simples pergunta encerra um número enorme de questões, que decerto já passaram pela cabeça de muitos de nós, pelo menos nos que têm votado num destes três partidos, que é o meu caso. Esta pergunta tem toda a razão de ser. Desde o 25 de Abril, apenas houve um pequeno período em que o governo esteve entregue ao PCP (no tempo do Gonçalvismo). Por isso, todos os erros são atribuídos a estas três organizações pensantes, que se vai dizendo agora, que foi tudo menos erros, insinuando-se que as más políticas foram premeditadas, para beneficiar a nata deste pobre país. Uma coisa é certa- os erros foram cumulativamente colossais, os fundos que vieram da CEE foram colossais, a fiscalização sobre a aplicação desses fundos foi nenhuma, as riquezas súbitas e enormes diz-se que são brutais…mas de uma coisa eu tenho a certeza- o país sofre como eu nunca o vi sofrer, porque havia muito dinheiro que foi sorvido, cujo sofrimento, no entanto, não é compartilhado (compartilhado… como se tal fosse possível num país onde grassa o egoísmo), não é sentido por todos, pois há-os aí que, muito embora vivam num país em crise, mantêm-se incólumes, vivendo num protectorado, que o sistema, esta dita democracia, criou.
No final do séc. XIX, caso fosse costume sujar as paredes com inscrições, estiveram criadas as condições para que, numa qualquer parede deste reino, surgisse uma frase pintada que poderia perguntar: Regeneradores, Progressistas, até quando?
Estes foram os dois partidos políticos que, entre 1891 e 1910, governaram Portugal de uma forma soberba, á semelhança dos de agora, pois então já se está a ver a qualidade, que, entre si, intercalavam o poder e a oposição. Este período ficou conhecido para a história como o «Rotativismo». O povo apelidou-o de «O Reviralho». Terminou, como sabemos, com a queda da monarquia em 1910.
Por vezes a história repete-se, quando a pouca vergonha começa a ser demais. Resta saber o que é que poderá cair.
Mas que estou farto de PS, CDS e PSD, sem dúvida nenhuma que estou. Vejamos que história nos terá para contar o próximo acto eleitoral para as legislativas. Estou muito curioso. Mas que voltámos ao reviralho, lá isso voltámos. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

UM CONDE COMO PRÓXIMO DOENTE


...Meu pai, porquê essa cara? – perguntei eu, intrigado com a expressão do meu pai.
- Ó Joaquim, então, é o Conde D. Rodrigo Corga.
- Sim, eu sei quem é. Mas porquê essa cara?
- Tu vais a casa de um conde…
- Não meu pai, eu devo de ir a casa de um doente. Já é tempo de essas coisas da nobreza irem sendo esquecidas e de o deixarem de impressionar ainda tanto. Não é rapaz? – perguntei eu, dirigindo-me ao moço.
- Pois que assim será, sim senhor – respondeu o rapaz – mas o meu amo precisa do senhor doutor.
- Quem está doente?
- Ele mesmo – disse o jovem.
- Pois aguarda um pouco, que já te acompanho. Enquanto esperas, vai lá atrás à cozinha das cocheiras, que a ti Celeste te há-de dar alguma coisa para comeres e beberes e mais à tua mula.
- Obrigado senhor doutor – disse o rapaz, que levando um sorriso a iluminar-lhe o rosto, logo se dirigiu para as traseiras da nossa casa, levando a mula pela rédea.
         Voltei para dentro e dirigi-me ao consultório, munindo-me do que me fazia falta para a consulta de um doente: o estetoscópio, ferramentas cirúrgicas e uma grande variedade de fármacos, guardados em pequenos frascos de vidro que ia comprando numa botica de Coimbra, fármacos esses que faziam parte da Farmacopeia Geral do Reino – a Medicamentorum Sylloge, que fez parte de uma das disciplinas da matéria médica, na Universidade de Coimbra.
         O meu pai seguiu-me.
- Tens que ir bem ataviado, Joaquim. Faz a barba e leva a melhor roupa que tiveres.
- Meu pai, não me aborreça com esses ditos. Se tem algum jeito o que vossemecê está a dizer?!
- Não tem jeito? Não julgues tu que por o teu pai ser lavrador, não sabe reconhecer quando a vida nos dá uma oportunidade de avançar. Esta visita que vais fazer ao senhor conde pode ser muito importante para a tua vida de médico. O senhor conde é um homem com conhecimentos importantes. Se gostar de ti, pode muito bem fazer com que o teu nome chegue longe. E é importante que vás bem parecido.
- Meu pai, eu prefiro ver no senhor conde apenas um doente.
- Quer dizer que tanto se te dá, como se te deu, que o senhor D. Rodrigo Corga seja o doente que vais ver a seguir.
- Sim, meu pai. È isso mesmo.
- Tu não deves estar bom do miolo. Eu sei onde queres chegar, porque não sou parvo. Mas segue o conselho de um ignorante: não ponhas o raio da politica à frente da tua profissão.
- Meu pai, um homem sem convicções é um trapo, um boneco.  O meu pai repare no que as sua palavras escondem, mesmo sem ter noção disso… que pelo facto do meu próximo doente ser um conde, que o devo tratar com mais respeito do que trato os meus outros doentes. É por isso que faz falta o liberalismo. Tem de haver uma maior igualdade entre os homens.
- Olha Joaquim, eu muito melhor do que tu conheço essas injustiças de que falaste, porque as tenho sentido na carne. Toda a vida a fidalguia tentou mangar de mim, mesmo a fidalguia que não tem um cruzado no bolso. A politica é uma coisa muito ordinária. Basta vermos o que se tentou fazer há poucos meses com a Abrilada, em que o infante D. Miguel teve a coragem de se virar contra seu próprio pai e rei. Mas não imagines tu que, se algum dia o liberalismo vencer, os fidalgos vão acabar. Os fidalgos nunca acabam. Mesmo que a monarquia venha a ser mais chegada ao povo, nunca irá botar de fora os seus fidalgos. Os nobres continuarão a ser nobres e ricos, e o povo continuará a ser povo e pobre. Toma tino nestas palavras que te eu disse. Faz pela vida Joaquim. Foi para teres uma vida boa que te fiz médico, não para andares por aí a espalhar ódios pelos fidalgos. Para eles eu pouco valho, mas isso não acontece contigo, pois tu és médico. Todos os doentes te merecem os maiores cuidados, mas os fidalgos exigem de ti uma vénia; e não penses que irão ser os pobres que farão o teu nome chegar longe. Faz a barba a atavia-te como deve de ser.
         E o meu pai virou-me as costas e foi-se embora...(em continuação, pág. 23- ex. X)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PELOS CAMINHOS PRATICANDO A MEDICINA


...Fiz o meu exame final em Maio de 1823. Era doutor. Munido de canudo na mão, rumei à casa paterna. Malhal de Sula aguardava-me em apoteose. Os meus pais, com um sorriso de orelha a orelha, rodeados pelos homens e mulheres que trabalhavam por sua conta, receberam-me com imensa alegria e inchados de orgulho. O seu filho era o primeiro doutor produzido naquelas bandas. A partir daquele momento Malhal de Sula deixara de ser apenas local de fortes vinhedos. Passara também a ser a residência de um médico, do único médico existente em muitos quilómetros em redor.
         Na dependência mais recatada da casa, que passou a ser a mais nobre, o meu pai montou um consultório para o meu futuro trabalho. Mobília de excelente carvalho, a estrear, constituída por uma enorme mesa pintada de preto, uma cadeira de costas altas, duas cadeiras de braços, destinadas aos pacientes, uma pequena cama para consultas mais aprofundadas e um enorme candelabro de cobre, onde podiam arder em simultâneo quinze velas. O consultório possuía uma enorme janela, que enchia de claridade natural toda a dependência, virada para um pequeno mas belo jardim, pintado pelas cores de várias espécies de flores, obra a que o meu pai se deu ao trabalho de criar, na expectativa de assim emprestar ao consultório uma maior dignidade. Fora proibido, por lei imposta pelo meu pai, que pelas proximidades do jardim passassem carros de bois e gente palradora, evitando assim que o sossego, que àquele espaço era devido, fosse importunado.
         E os meus doentes, lentamente, começaram a chegar. Eram filhos e filhas de outros lavradores ricos, filhos e filhas de um ou outro fidalgo que existiam na Mealhada, no Luso e até da Pampilhosa. Mas ao final de alguns meses dei-me conta de que nenhuma gente pobre do povo eu tivera como paciente. Era verdade que não iriam ser os pobres do povo que me fariam ganhar dinheiro. Mas, naquela época, ser médico representava ser acérrimo defensor da dignidade humana… numa altura em que a dignidade e a vida de um homem podiam apenas depender da palavra de um outro homem.
         Com tanta pobreza, fome e tanta podridão que pela Serra do Buçaco escorrera, após a batalha, era certo que a doença germinava em cada canto. Por essa razão resolvi que a minha actividade clínica deixaria de se restringir ao meu consultório. Ir-me-ia dar a conhecer ás gentes que me rodeavam e intervir, se assim achasse necessário. Falei com o meu pai sobre a minha resolução. A principio, a ideia de atender doentes fora do consultório, não lhe pareceu bem. Que diabo, um médico era um médico! Os doentes tinham que o procurar e não ao contrário. Mas depois de lhe explicar que o meu conceito da prática da medicina se baseava na obrigação moral de actuar onde fizesse falta, e não de fazer falta apenas a alguns, o meu pai compreendeu o meu ponto de vista e concordou comigo. Ele sabia que por aquelas terras existia muita gente a sofrer de graves doenças. E assim, um dia se me apresentou com uma bonita caleche, puxada por um garboso cavalo.
         Em 1824 já o nome do doutor Joaquim Passos Lopes corria de boca em boca. Tinha eu então vinte e quatro anos de idade.
         Foi num dia quente de Agosto desse ano, que a Malhal de Sula chegou um criado. Viera montado numa mula. Eu encontrava-me no consultório a trabalhar numa lista de doentes, que do mesmo lugarejo apresentavam febres altas e diarreia, quando o meu pai me bateu à porta.
- Joaquim, sou eu.
- Meu pai, abra a porta. Nunca mais perde a mania dessas cerimónias – disse eu, aborrecido, por sentir no meu pai uma atitude de servilismo sempre que se dirigia ao consultório.
         O meu pai abriu a porta e disse:
- É que está lá fora um criado a preguntar por ti.
- Um criado? Criado de quem?
- Não o entendi bem. Fala muito depressa. Os bofos quase que lhe saiam pela boca. Vai lá e vê o que ele quer.
         Levantei-me da minha mesa de trabalho e fui à porta da entrada. A porta dava para um alpendre com uma pequena escadaria. No final dos degraus encontrava-se um rapaz dos seus quinze anos, com ar muito atrapalhado, segurando com as duas mãos o barrete que lhe tapara a cabeça.
- Então rapaz, o que é que há? – perguntei eu.
- Eu venho em demanda do médico, senhor doutor Joaquim Lopes.
- Sou eu mesmo. Vens de onde?
- Venho do Luso, senhor doutor, a mando de meu amo.
- E quem é o teu amo?
- O senhor Conde de Cértima.
         O meu pai olhou para mim com uma feição muito séria...(em continuação, pág. 20- ex. IX)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

UM AGRADECIMENTO DE AMON-RÁ A UM MORTAL


Divino senhor, em que te posso servir?- disse um escravo do palácio, que alertado pelos gritos do faraó, acorreu em seu auxílio.
- Desaparece daqui imbecil, antes que eu próprio te corte a cabeça- respondeu o faraó ao solicito escravo.
     Horus se fora mas ainda ouvira as palavras gritadas do faraó. Levava o coração muito triste. Pela primeira vez, desde que Aton projectara o Egipto, de MassiftonRá saíra uma péssima decisão, que dava pelo nome de Amenhotep, o quarto.



     Em MassiftonRá os deuses estavam agitados. Horus relatara o desfecho do seu encontro com o faraó. A insubordinação de Amenhotep, o quarto, era imensamente constrangedora para Amon-Rá. O deus supremo estava com um grave problema em mãos e não sabia como lidar com ele. Perante a arrogância do faraó, Amon-Rá sentia-se impotente para o enfrentar.
     Os deuses manifestavam a sua vontade e o seu poder no aspecto espiritual dos homens, porque em relação aos assuntos terrenos, puramente materiais, de carácter mundano, que supremacia tinham eles? Como se obrigava o chefe do reino Egípcio a abdicar de uma mulher? Nefertiti, enquanto ser carnal, pertencia ao carácter mundano da questão. O faraó dera-lhe a escolher entre a vida solitária e simples do templo, e a sumptuosidade que determinava a condição de rainha. Ela escolhera ser rainha. A gravidade do problema não residia aí, mas antes na declarada falta de submissão por parte do faraó ao deus supremo. Nunca antes a supremacia incondicional de Amon-Rá tinha sido colocada em causa. Onde estava a força em Amon-Rá, que obrigaria o faraó a respeitar o deus supremo como a vontade mais poderosa de todo o Egipto? Simplesmente não existia, porque nunca houvera a necessidade em que essa força existisse. Amon-Rá era essencialmente a representação do bem no Egipto. O deus supremo não reprimia, apenas auxiliava; e existia um lado ainda mais sórdido na questão. Assim como o faraó demonstrava ter total poder sobre Nefertiti, também exercia esse poder sobre Masahemba, o Sumo Sacerdote de Amon-Rá. O deus supremo estava deveras preocupado.
- Masahemba está à mercê do faraó. Vocês digam algo, aconselhem-me no sentido de eu conseguir preservar a integridade física e moral do meu Sumo Sacerdote- dizia Amon-Rá, dirigindo-se aos restantes deuses.
- Divino mestre, apela à tua influência no seio dos homens, para que dêem abrigo ao teu Sumo Sacerdote- disse Ánubis, o deus chacal.
- O que queres dizer com isso?- Perguntou Amon-Rá.
- Retira-o do templo e esconde-o- exclamou Ánubis.
- E como é que eu faço isso?
- Lês nos espíritos dos que te são fiéis a possibilidade de te ajudarem neste momento crítico. Há-de existir alguém disponível para dar guarida a Masahemba.
- Sim, estou a seguir o teu raciocínio, Ánubis. Posso também utilizar os siftos para que me ajudem a encontrar essa pessoa. Posso ainda colocar os siftos a controlarem os movimentos do faraó, e a servirem de intercâmbio entre mim e os homens disponíveis a ajudarem-me.
- Mas isso tem de ser feito rapidamente- avisou a deusa Ísis- pressinto que no faraó está iminente uma atitude contra ti. Envia um sifto a avisar Masahemba. Ele que saia já do templo, mesmo sem ter para onde ir. Faça uso da sua capacidade natural de sobrevivência, herança legada pelo seu povo.
- E será viável a Masahemba, um mortal, a possibilidade de contactar directamente com um sifto?- perguntou Amon-Rá, dirigindo-se ao deus Áton.
- Até agora tal contacto nunca se fez- respondeu o deus ancião- mas perante esta inusitada situação, há lugar a abrir-se uma excepção, levando em conta que o mortal em questão é teu Sumo Sacerdote.
- Pois que assim se faça. De modo nenhum Masahemba deverá sofrer por causa deste problema.
- Tens uma afeição muito grande por esse rapaz, não tens?- perguntou Áton.
- Sim. O pai dele, um nobre de um reino do sul, veio um dia visitar o Egipto. Ao deparar-se com uma estátua eregida em minha honra, ficou-me fiel para sempre. Bom alimento recebi da parte daquele homem. A sua fé em mim era tal, que acabou por trocar a sua terra pelo Egipto, só para poder estar mais próximo de mim. Foi morto pela sua gente, que não lhe perdoaram o facto de se ter tornado meu seguidor. Por força moral, tenho a obrigação de preservar a sua mais ditosa obra, o seu filho Masahemba. Mas não percamos mais tempo- disse Amon-Rá, depois desta pequena explicação dada como resposta à observação de Aton- que um sifto se desloque imediatamente ao meu templo de Tebas e avise Masahemba do perigo que corre...(em continuação, pág. 40, ex. XIII)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

PETRÓLEO- UMA HISTÓRIA DE TERROR



Acabei de ler o romance de José Rodrigues dos Santos- «O Sétimo Selo». Inquietante e perturbador!
Levando em conta a pessoa que é o autor na sociedade portuguesa, exigindo-se-lhe, por isso, responsabilidade; levando em conta as fontes que inúmera; levando em conta, por fim, a sua chamada de atenção para o facto de que, a informação fornecida, é baseada em fontes científicas fidedignas, o romance é inquietante e perturbador.
Sem querer revelar a trama do romance, que não seria simpático da minha parte para todos os que, porventura, se encontrem interessados em o ler, sempre direi que a humanidade, caso não seja encontrada uma solução para novas energias que mantenham a vida económica tal como nós, homens do século XXI, a concebemos, poder-se-á confrontar com o limiar não só da insustentabilidade, como da própria sobrevivência.
É que a dependência total do petróleo está a provocar o aquecimento global, que, em muito poucas décadas, pode levar á eclosão de um cataclismo tal, que poderá colocar em risco a sobrevivência da espécie humana; por análise do ar retido nas camadas inferiores do gelo do ártico ( gelo esse referente a duzentos e cinquenta milhões de anos atrás, em que por um cataclismo semelhante se extinguiu 90% da vida na terra), se verifica que os níveis de dióxido de carbono se encontravam então pouco acima dos níveis actuais.
Por outro lado, o petróleo está a acabar. Certamente que resolveria o problema anterior (muito embora o processo não fosse assim tão simples), mas poderá vir a criar um outro problema gravíssimo- o aniquilamento da economia- o colapso social.
Para um leitor minimamente consciente, é, no mínimo, um livro preocupante.
Façamos votos para que os cientistas, como é aventado pelo autor, possam, rapidamente, e este rapidamente não poderá ser superior a um período de vinte anos,  encontrar uma solução para as necessidades energéticas do planeta.
Uma verdadeira história de terror!

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O ACTO INICIÁTICO



Assisti, pela televisão, a esta massiva manifestação, que no passado Sábado 15 de Setembro de 2012 aconteceu um pouco por todo o país. Este acto teve uma particularidade extremamente importante, que me trouxe um ténue, mas iniciático aroma aos dias do nosso 25 de Abril: o facto de a sua organização ter tido por base a espontaneidade do povo, sem qualquer intervenção de forças políticas ou mesmo sindicais. Um acto iniciático, como disse, a germinação de um sentimento de revolta.
Não tenho qualquer formação na área económica e política. Os meus dias são vividos embrenhado na minha pacata e simples vida. Por isso, como cidadão comum, não tenho números para apresentar, nem experiências palacianas para relatar. Mas observo…e ouço. E quando um país inteiro fala, quando ao longe se vê uma coluna de fumo, é porque nalgum sítio há fogo.
No nosso Portugal, quantos não foram os casos que se comentaram de muitos milhões, vindos da CEE e UE, para serem aplicados na agricultura, na formação profissional, etc…, e foram essas aplicações transformadas em grandes moradias e jipes, sem que houvesse o mínimo de preocupação por parte do governo em fiscalizar a aplicação desses fundos. Alguns, sempre os mesmos, ganharam, para o país perder.
Agora que todos esse desvarios começaram, infelizmente, a fazer efeito, começam a surgir múltiplas informações de grandes escândalos. Eu não fazia ideia de que as fundações existentes neste país, muitas de uma inutilidade atroz, eram assim em tão grande número, e sorviam aquelas quantidades gigantescas de dinheiro.
Com o facebook muita coisa está a vir a público, o que semeia em cada um de nós uma migalha de revolta. Há dias li que uma fundação, que era completamente denunciada, cujo nome não memorizei, existia para pagar favores a alguns, em grandes jantares, e bodas de casamentos. Há dias li uma outra publicação no face, que denunciava os ordenados de 29 assessores do governo, com idades compreendidas entre os 25 e os 29 anos, cujo ordenado variava entre os 3500€ e os 5100€. E por esse país quantos grupos daqueles 29 não existirão, dissimuladamente encaixados em empresas e similares? Como é possível que rapazes e raparigas tão novos tenham já cargos desta dimensão? Lembrei-me dos muitos e muitos milhares de outros jovens, que por esse país vivem, com licenciaturas iguais ás daqueles 29, que se encontram no desemprego ou na precaridade.
O governo emagreceu a despesa retirando-me o meu tão bem aventurado subsídio de férias e de natal; emagreceu a despesa ao retirar financiamento á justiça, á saúde, á segurança, ao ensino. Mas não mexeu no imenso dinheiro que gasta na máquina do Estado. Os funcionários públicos sabem muito bem que continua a não haver qualquer poupança, no que diz respeito a todos os ofensivos direitos das cúpulas, nos respectivos serviços, porque para o mexilhão, logo ao primeiro sinal de alarme, todos os sinos tocaram a rebate no sentido de escancarar a porta á austeridade.
Não tenho jeito nenhum para falar de coisas de política. Mas a revolta que se vai instalando começa a querer romper a pele.
Os dinheiros públicos desbaratados, a desavergonhice que se instalou levou a esta penúria. Penúria, minha, e dos meus semelhantes, porque existe uma outra sociedade, que como eu canta a portuguesa, mas é uma portuguesa bem mais generosa do que a minha.
Democratizemos a honestidade.
Que venha um tempo, e depressa em que, verdadeiramente, e não demagogicamente, o povo unido jamais será vencido!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

UM AVISO DE HÓRUS

...O palácio do faraó estava mergulhado na semi-obscuridade. O sol há muito que se pusera. Em vários pontos do palácio ardiam archotes, que transmitiam a pouca luz com que o enorme palácio era iluminado. Amenhotep, o quarto, andava embrenhado com os preparativos da coroação da sua rainha. Enquanto o não fosse, Nefertiti dormiria num quarto bem afastado do dele. O faraó escolhera algumas aias, filhas de altos funcionários do reino, vizires e hatiuás, para iniciarem Nefertiti na sua futura condição de rainha, ensinando-lhe os preceitos básicos da realeza. O palácio ficara inundado por esbeltas ninfas, que enchiam o palácio real de gargalhadas doces, bem femininas, transmitindo ao faraó um enorme sentimento de volúpia. E fora com esse sentimento que o faraó se lançara para a sua cama, ouvindo, ao longe, as aias que brincavam entre si, rindo… preenchendo a sua bela Nefertiti de sentimentos superiores, preparando-a para a coroa. Lá fora o povo cantarolava, os burros zurravam, o Nilo corria belo, as brisas do deserto passavam quentes, o Egipto acontecia…e a sua futura rainha ali estava, tão perto dele, pronta a fazê-lo feliz, a ajudá-lo a tornar-se um faraó resplandecente, poderoso, dono de tudo e de todos, do povo, do Nilo, do deserto, das pirâmides, da história… dos deuses!

Sim, claro, lá havia alguém mais poderoso no Egipto do que o faraó? Amon-Rá?! Balelas!! Ia encerrar o templo de Amon em Tebas! E o que faria com o Sumo-Sacerdote estrangeiro? E se fizesse dele um escravo!? Considerava ser uma boa opção!

E estendido na sua cama, com as mãos cruzadas por debaixo da cabeça, sentindo a brisa quente do deserto que entrava pela janela do seu quarto, o faraó sorria.

- Achas que tens motivos para sorrir?

Ao ouvir a voz que fizera tal pergunta, o faraó estremeceu de susto. Um archote existente ao fundo do quarto dava pouca luminosidade. Por essa razão o faraó saltou da cama e procurou a sua adaga. Foi então que viu uma figura tomar forma mesmo ao fundo da sua cama. Era o deus Horus, que o fitava com o seu olhar penetrante de falcão.

- Deus Horus… que susto me pregaste; mas a tua presença consola-me.

- Estás satisfeito por me veres?- perguntou Horus.

- Bastante! É bom termos na nossa presença o nosso protector- respondeu o faraó.

- Pouca protecção Horus pode dar ao faraó, se o faraó não se souber proteger a si próprio- retorquiu o deu Horus, dando ás palavras uma entoação de impotência.

- O que queres dizer com isso?- perguntou intrigado o faraó.

- Sabes Amenhotep, o quarto, na verdade a minha função é dar protecção espiritual e intelectual aos faraós, a ti. É o que estou a tentar fazer neste momento. Mas tens de ter algo bem presente: eu devo lealdade ao deus supremo Amon-Rá. Não posso pois proteger quem lhe não tem o devido respeito.

- Estás a insinuar que eu faltei ao respeito a Amon-Rá?

- Nefertiti, a sacerdotisa, vive no teu palácio?- Perguntou Horus.

- Sim, vive- respondeu o faraó secamente.

- Então eu não insinuo, eu afirmo que tu faltaste ao respeito a Amon-Rá.

- Como pode Amon-Rá dar-se ao direito de se sentir ofendido por eu lhe ter subtraído uma sacerdotisa, quando ele escolheu para seu Sumo-Sacerdote um estrangeiro!?

- Atenção Amenhotep, o quarto, pondera melhor o que dizes. Tu não estás a falar de um mortal, tu estás a questionar a conduta do deus supremo do Egipto- disse Horus em tom de desagrado.

- Tu estás equivocado, Horus. O deus supremo do Egipto sou eu.

- Cala-te desgraçado- disse Horus rispidamente- Amon-Rá é a continuação do grande criador da terra egípcia, Aton. Ao lado de Amon-Rá tu mais não és do que um grão de poeira.

- Horus, estou a ver que és muito mau diplomata. Se vieste aqui com o propósito de me convenceres a devolver Nefertiti, só fizeste disparates.

- Assim que me acerquei do teu palácio, pressenti nos fluidos que emanas o fracasso da minha missão; mas tinha de te olhar nos olhos. Não tens perfil algum para faraó. Em ti apenas existe prepotência e arrogância. Mas se pensas que vais conseguir reinar sem a protecção de Amon-Rá, sem o apoio de MassiftonRá, prepara-te para seres o faraó dos gafanhotos do deserto, porque a terra egípcia te renegará.

- Vai-te Horus, rosto de falcão- berrava o faraó- eu sou descendente de uma alta linhagem, do mais puro e valioso que o Egipto jamais viu. Nas minhas veias corre o sangue que deu vida ás imponentes pirâmides…

- Amenhotep, o quarto, tu não passas de um momento de criação dos deuses; apenas és um sopro da sua vontade- disse Horus, ao mesmo tempo que esticou em frente, com rapidez, os seus braços musculados, originando uma onda de choque, que propagando-se pelo ar, bateu em cheio no peito do faraó, fazendo com que este fosse violentamente arremessado ao chão- vês como eu te domino tão facilmente- disse Horus, desaparecendo.

- Nefertiti será rainha no Egipto, anuncia-o a Amon-Rá; e diz-lhe também que o Sumo- Sacerdote estrangeiro vai ser meu escravo pessoal. Faço questão disso… e Amon-Rá que o impeça se for capaz. Eu sou deus na terra. Eu sou o Egipto- gritava o faraó, enquanto se levantava, humilhado...(em continuação, pág 37, ex. XII).

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ
Novembro/2005

sábado, 8 de setembro de 2012

PORTUGAL, BRASIL E ESPANHA NO PETISCO


Bem no coração de Aveiro, na Praça 14 de Julho, encontra-se a Petisqueira Portuguesa, que perante o seu actual aspecto direccionado ao turismo, poderá esconder as suas verdadeiras raízes, ou seja- uma petisqueira portuguesa. É que em tempos que já lá vão, até há cerca de uma dúzia de anos, esta era uma tradicional taberna, com os seus pipos em madeira e todo o tipo de petisco que qualquer português que se prese aprecia, tais como jaquinzinhos (carapaus fritos), petingas (sardinhas pequenas fritas), pipis (miúdos de frango), iscas, sandes de presunto, salada de polvo, enguias fritas...eu sei lá. E tudo isto acompanhado com o belo penalty (copo de vinho tinto).
Hoje em dia os petiscos continuam a ser servidos, só que de uma forma menos popular (não sei se não terão perdido alguma graça), e ao som do fado, oferecido por uma discoteca que existe a poucos metros da petisqueira. E por cima da petisqueira, Portugal, Brasil e Espanha, como se pode constatar na fotografia, num ambiente académico, convivem alegremente, e basta descerem ao rés-do-chão para, no petisco e de volta de uns canecos, fortalecerem essa sã e linda amizade!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

EM AVEIRO- VERA CRUZ, A CASA DO CAFÉ


Como já referi algumas vezes, considero que a sociedade portuguesa se está a tornar avessa ao que é tradicional. O moderno é que é evolução, o antigo é marasmo, é decadência, dizem muitos milhares, se calhar milhões, demasiados para a saúde identificativa de um povo, na minha concepção, obviamente.
Antigamente, antes dos primeiros supermercados, os agregados familiares aviavam-se nas mercearias, onde compravam toda uma panóplia de produtos que lhes serviriam para o seu alimento, desde a massa, ao azeite, ao bacalhau, ás bolachas (vendidas avulso, saídas de grandes caixas de lata, envolvidas em papel finíssimo, tornavam-se muito mais saborosas) até ao café. Entretanto, as mercearias foram caindo em desuso, desaparecendo, acabando por se tornarem lugares quase de culto, para os que se preocupam com estas coisas, e aí mudaram de nome. Hoje em dia chamam-se «comércio tradicional». Lá está- se é tradicional é para deitar abaixo.
Em Aveiro, bem no coração da cidade, na parte mais antiga, onde outrora foi a Vila Nova, fora da muralha, mais propriamente na Praça 14 de Julho, hoje toda ela virada para o turismo, existe uma «saborosa» loja de comércio tradicional, que resiste a essa onda de anti-tradicionalismos. Nela se vende de tudo um pouco, desde sementes para a horta até produtos para a barba. Mas o que realmente a torna diferente, e um caso de sucesso, é o café, que o seu proprietário, o senhor Frutuoso Seabra de Almeida, ali mói na hora.
Tem um balcão com cinco moinhos, que segundo me informou, é dos últimos em Portugal, senão mesmo o único balcão assim. Demorou 12 anos a conseguir a aquisição daqueles moinhos e a sua reparação. Todos funcionam e trabalham diariamente. A casa é belíssima. Ainda me lembro da impressão que suscitou em mim, da primeira vez que nela entrei- parecia que eu estava a entrar num postal de natal, tal o conforto que senti e continuo a sentir.
Se eu fosse um agente de viagens, indicaria aos meus clientes que, em visitando Aveiro, um local obrigatório a conhecer teria de ser esta loja- a casa do café Vera Cruz, porque merece uma visita.
Parabéns ao senhor Frutuoso e um bom negócio. É que se assim for, temos garantida a sua existência.
Claro que nesta publicação há algo impossível de transmitir, algo que se apreende apenas em lá estando- o magnífico aroma! 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

RECORDAR UM MOMENTO ESPIRITUAL


...-         Por falar em Deus, quero-te também contar algumas coisas- disse Serôdio sorrindo.
-         E que coisas são essas?- perguntou a mãe bastante curiosa.
-         Eu estive em coma. Para o exterior foi como se tivesse estado num longo e profundo sono. Mas no interior, eu estive bem acordado.
-         Estiveste... acordado...?! Não te percebo!
-         È difícil de perceber e difícil de explicar. Por muitas vezes, lembro-me de ver o meu corpo num plano inferior ao meu campo de visão, no quarto do hospital. Algumas vezes abracei-te quando tu estavas junto ao meu corpo, mas tu não deste por mim.
-         Ai Serôdio... credo... até me estou a arrepiar.
-         Mas è a verdade mãe. Nessa altura, eu sei que estive muito perto da morte. Lembro-me também que estive constantemente acompanhado por uma bela senhora vestida de branco, que me falou de muitas coisas. Acho que vi cenas da minha vida, quando eu era pequeno e também cenas de outras vidas que eu já tive.
-         Serôdio, isso è conversa de maluco.
-         Não è mãe. Durante este período, eu aprendi muitas coisas sobre nós e o nosso espirito.
-         Credo, Nossa Senhora- disse D. Amélia benzendo-se.
-         Quando eu estiver melhor, vou procurar literatura sobre o espiritismo, para aprofundar o que me foi dado saber.
-         Tu acreditas mesmo nisso filho?
-         Mãe, eu andei por muito lado. Tenho a certeza de que muitas coisas que vi e ouvi me não deixam recordá-las.
-         Mas quem?
-         Deus, quem havia de ser!
-         Deus? Serôdio, não chames Deus para esses assuntos de... de...
-         Prefiro que o não digas. Senti Deus de uma forma tão intensa. Sei também que me disseram qualquer coisa relacionada com a D. Silvina, mas não me consigo lembrar o quê, por enquanto.
-         Com a D. Silvina? Eu ouvi tu proferires esse nome quando estavas a recuperar do coma.
-         A sério mãe? Então è verdade.
-         Que coisas tão estranhas tu me disseste agora, Serôdio.
-         Sabes mãe, no meu estado de coma o corpo foi desligado. O meu espirito quase que obteve liberdade completa para viajar por onde quis. Mas podes crer, a morte não è tão má como a pintam.
-         Serôdio, a morte è o fim. Não há nada pior do que isso.
-         Mas a morte não è o fim, pelo menos o fim do nosso espirito. Aí termina a vida do corpo, disso não há dúvidas. Mas è no momento em que o corpo morre, que o espirito se liberta e cada um de nós volta a assumir a sua verdadeira identidade. Todos nós sabemos disso, só que não nos lembramos.
-         Mas tu lembraste!!- disse a mãe com perplexidade.
-         Eu lembro-me, porque estive do lado de lá e regressei de novo, não num outro corpo, mas naquele que era meu nesta vida. Fui e regressei continuando a ser o Serôdio Velasques. Se tivesse na verdade morrido e daqui a não sei quantos anos tivesse regressado, reencarnado numa outra pessoa, não me lembraria de que um dia o meu espirito reencarnara um corpo, cujo nome fora Serôdio Velasques. Percebes?
-         Não filho, não percebo e nem quero perceber. Estou mais preocupada com a tua alimentação. Come o teu lanche- disse a mãe de Serôdio, cujo semblante demonstrava preocupação.
-         Porquê essa cara mãe?- perguntou Serôdio abraçando-se à mãe.
-         Sempre foste um rapaz ponderado. Eu tinha tanto orgulho em ti! Adorava ouvir-te conversar. Agora, depois de teres sido espancado, dizes-me coisas sem pés nem cabeça. Não posso ficar com uma cara muito feliz.
-         Minha querida mãe, eu não te quero ver triste. Podes ter a certeza de que o teu filho não sofre de nenhuma demência. Prometo nunca mais te falar nisto.
-         Mas vais pensar nessas coisas...
-         Mãe, não è à toa que eu estou vivo. Agradeço a Deus o facto de me ter dado a oportunidade de te continuar a abraçar, a ti e ao pai. Mas vejo a vida agora por uma outra perspectiva. Tudo nesta vida tem razão de ser. Há sempre um porquê e um para quê. Te garanto que não estou doido, mas só o tempo te demonstrará se a minha maneira de estar na vida revela ou não algum sintoma de alienação. Obrigado minha mãe pela tua preocupação.
-         Não faço nada demais filho, nada demais- dizia a senhora, abraçada ao filho, com os olhos marejados de lágrimas...(em continuação, pág. 62, ex. XIX)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003