segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DUAS OU TRÊS PALAVRAS DESTE FUTRICA DO MONDEGO PARA 2020


Nesta caminhada imparável do tempo, que inexoravelmente consome os séculos e nos consome a nós, aqui estamos outra vez no final de mais um ano.

Neste 19º ano do 3º Milénio (o que será que virão a pensar de nós os portugueses do 1000º ano deste mesmo milénio?) e do século XXI, faço votos para que a vida de todos nós, em 2020, nos traga maior estabilidade (muito embora tenhamos já tido anos piores), nos ofereça muita saúde, pois sem ela bem pode o país ser rico, que nada melhora na vida de quem padece, fomente a felicidade bem fundo nos nossos corações e torne realizáveis os nossos projectos mais ambicionados.

Se for possível fazer a minha voz chegar ao Olimpo, onde se decide a vida dos países e dos homens, gostaria de pedir a quem lá manda que, para o próximo ano de 2020, que está quase a chegar, faça com que esta vergonha nacional, que é a corrupção, que alastra por todos os sectores, mesmo pelos corredores anteriormente puros da justiça, tenha um fim, um fim de forma exemplar, uma vacina que quem manda no Olimpo, invente e injecte, nas artérias mais profundas deste nosso Portugal.

Uma palavra muito emotiva à memória de dois amigos nestas andanças da internet, que já nos deixaram: a Mari Amorim no Brasil, e o Manuel Cardoso no Minho. Nunca vos conheci em carne e osso, nunca ouvi o som da vossa voz e nunca senti o aperto do vosso abraço. Mas convosco tornei-me culturalmente mais rico. Não mais vos esquecerei!

Para todos vós, que continuais a ler duas ou três palavras deste Futrica do Mondego, deste Poeta do Penedo, obrigado pela vossa companhia. Que as musas da felicidade vos encontrem em 2020.

Aquele abraço!


sábado, 14 de dezembro de 2019

NO AR GELADO, LÁ FORA À SOLTA ANDA A MAGIA II



(continuação)

...Tudo estava em completo silêncio. Agachado, para diminuir a sua silhueta, tal como aprendera na já tropa distante, foi-se dirigindo para o local de onde provinha luz: a árvore de natal, o centro de toda a sua atenção. Entrando numa enorme sala, passando silenciosamente entre uma mesa enorme, sofás e maples, aproximava-se da árvore de natal, quando lhe pareceu ouvir um qualquer barulho, como se alguém tivesse tossido. Imediatamente se imobilizou, e assim agachado, começou lentamente a olhar para todos os cantos, tentando fazer com que a vista se habituasse à escuridão. Foi então que uma voz se elevou, quase o matando de susto:

- Zé Inácio, que estás a fazer aqui?

         Perante aquela pergunta Zé Inácio procurou avidamente a fonte da voz, e na escuridão começou a delinear-se uma penumbra, que se foi transformando numa figura, uma figura de homem bem corpulento, cuja voz fazia jus ao físico. A figura movimentou-se ligeiramente, o que foi o bastante para ser iluminada pelas luzes da árvore de natal. O Zé Inácio ficou de boca aberta. Perante si encontrava-se de pé, bem perto da lareira que agora estava apenas em ténues brasas, um homem vestido com umas calças vermelhas de feltro, casaco também de feltro e também encarnado, debruado a branco e um grande barrete, também de feltro vermelho e branco. O homem usava umas farfalhudas barbas brancas.

- E tu, disfarçado de Pai Natal?- perguntou o Zé Inácio em tom de surpresa.

- Disfarçado? Eu sou o Pai Natal- respondeu o homem com convicção.

- Sim, sim, e eu sou o Cristiano Ronaldo.

- Deixa-te de tolices Zé Inácio.

- A propósito, como é que sabes o meu nome?

- Porque sou o Pai Natal e sei tudo sobre os homens. Surpreendes-te? Não é na madrugada de 24 para 25 de Dezembro que se diz que o Pai Natal visita as casas onde existem crianças? Hoje é essa madrugada. Duvidas da minha existência, Zé Inácio?

         O Zé Inácio começava a vacilar na sua convicção de que estava perante um charlatão.

-Bem…quer dizer, quando era criança ainda acreditei, mas logo a vida me demonstrou que o Pai Natal era só para alguns.

- Não Zé Inácio, o Pai Natal é para todos, desde que todos os homens saibam ouvir a criança que ficou a viver neles depois que deixaram de ser crianças. A sensibilidade é a cama onde o amor adormece, meu amigo. Só quem tem sensibilidade é que é capaz de sentir a magia. E esta madrugada é feita de magia, muita magia, a magia do Menino Jesus, e é por isso que tu estás a ver-me e a falares comigo.

- Como posso eu ter magia se em minha casa…

- Eu sei- interrompeu o Pai Natal o que o Zé Inácio ia dizer- eu sei que vives um momento complicado, e que a tua alma está triste porque tens dois filhos pequeninos a quem não podes dar o que gostarias de oferecer…mas eu não me esqueci deles.

- Não?- perguntou o Zé Inácio, com alguma esperança de que algo de bom estivesse para acontecer, não percebendo ainda muito bem se na verdade tinha razões para estar esperançado.

- Não! Mas antes de qualquer outra coisa, responde-me à minha pergunta: o que fazes tu dentro desta casa que não é a tua?

- Eu acho que tu sabes bem por que razão aqui estou. O desespero fez-me entrar aqui para roubar dois brinquedos para os meus pequenos. Eu sei que fiz mal, mas devem haver ali tantos brinquedos que…

- Quando entraste ainda lá não havia brinquedo nenhum. Agora a base da árvore de Natal está cheia…

- Queres-me dizer que foi o Pai Natal…tu, que trouxeste os brinquedos…- dizia o Zé Inácio como que discordando da ideia que o Pai Natal quis fazer passar.

- Mas é claro que fui eu…quem mais poderia ter sido?

- Só te falta dizeres-me que lá fora tens as renas e o trenó à tua espera.

- E que serão elas que te vão levar até à tua casa. Anda, vamos embora, que se está a esgotar o meu tempo de magia que fez com que pudéssemos conversar à vontade sem sermos ouvidos.

- Mas…tu tens mesmo renas lá fora?- perguntava o Zé Inácio cada vez mais incrédulo.

- Tu és mesmo céptico, Zé Inácio. Anda, vamos lá…para as traseiras da casa.

- Traseiras?

- Não ias querer que as renas ficassem aqui à vista de todos, pois não? Isso ia originar aqui um engarrafamento…bem, talvez não originasse porque não anda ninguém na rua.

- Pois, só um triste como eu.

- Anima-te homem, que as coisas vão melhorar.

- Deus te ouça!

- Ele ouve-me sempre…há muito tempo.

         E o Pai Natal, a sorrir, guiou o Zé Inácio até às traseiras daquela casa, que davam para um bonito morro, junto ao qual, numa grande gaiola, dormiam algumas bonitas rolas. E ali, junto à gaiola, encontrava-se um enorme trenó, carregado de sacos e mais sacos, à frente do qual se encontravam seis enormes renas, de grandes chifres, que ao verem o Pai Natal resfolgaram de prazer, deitando pelas narinas golfadas de fumo quente.

         O Zé Inácio ficou completamente boquiaberto.

- Mas…são renas a sério…e um trenó verdadeiro…

- Sobe Zé Inácio- disse o Pai Natal dando uma gargalhada- vamos levar-te a casa, que o teu lugar é junto à tua família.

- Subo? Posso?

- Anda homem, claro que podes.

         E o Zé Inácio, hesitantemente, subiu para o trenó, arranjando um pequeno espaço para si, no meio de todos aqueles sacos.

- Sacos com tantos nomes…em tantas línguas diferentes…- dizia o Zé Inácio maravilhado.

- Esses sacos são para as crianças do mundo inteiro, Zé Inácio- e dizendo isto o Pai Natal disse umas palavras mágicas, fazendo com que as renas imediatamente se colocassem em movimento, o que provocou que as milhentas pequenas campaínhas que tinham ao pescoço começassem a tilintar, tomando a direcção do céu.

         Zé Inácio, ao ver-se a viajar pelo ar, num trenó puxado por renas, finalmente acreditou, e exclamou numa grande gargalhada:

- Mas tu és o Pai Natal!

         E a rir-se Zé Inácio acordou, vendo a sua esposa sentada na cama, a rir-se para ele.

- Estavas a sonhar com alguma coisa engraçada- disse ela.

- Pois estava. Vê lá tu que sonhava que estava a viajar no trenó do Pai Natal, e que ele me veio trazer a casa.

- Não me digas, Zé. É que aconteceu uma coisa fantástica…acho que muito melhor do que fantástico.

- O que foi?- perguntou o Zé Inácio intrigado.

- Acordei a meio da noite, a ouvir umas campainhas e um pequeno barulho junto à nossa porta. Levantei-me e pareceu-me ouvir alguém a dar uma gargalhada. Abri a porta…e estava ali um grande monte de presentes. Fui pô-los na sala. Tu ainda não estavas em casa.

- Quem terá sido?

- Então, um destes ricos altruístas de quem de vez em quando ouvimos falar. Quem sabe, talvez o Pai Natal seja o maior de todos.

         Ambos se riram e foram à sala. Era verdade. Lá estava um grande monte de presentes, nos quais, além de brinquedos, se encontravam também víveres que fizeram mais feliz o Natal daquela família…e um pequeno envelope, com um cartão, onde se lia: «Zé Inácio, nunca deixes de acreditar na magia, e em mim, o Pai Natal».

         Foi então que apareceram os seus dois filhos pequeninos. O de quatro anos a correr, com os olhos brilhantes de felicidade, perante tantos presentes, e o pequerrucho, de dez meses, a gatinhar, que num maravilhoso sorriso balbuciou: «na na na».

         Dois dias depois o Zé Inácio recebeu um telefonema, em que alguém o contratava para um emprego numa oficina.

         Lá na longínqua Lapónia, naquelas vastidões geladas, onde sopra o vento vindo de todo o mundo, chega a mensagem de que o mundo, para ser mesmo feliz, necessita que o Pai Natal seja cada mais forte, para poder chegar aonde não chega a sensibilidade, para que todo o mundo, todo o mundo mesmo, tenha um FELIZ NATAL!
                                                                           FIM

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A MAGIA


NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A MAGIA







Naquela noite de Dezembro, com o frio gélido a tornar mais brilhante o céu estrelado, uma silhueta estranha por momentos desenhou-se em contraste com a reluzente lua cheia.

A silhueta, que consigo transportava o som de mil campainhas a tilintarem, passou incógnita, muito embora ela fosse desejada em todos os lares da cidade, naquela noite abençoada.

Numa das ruas da cidade, naquela noite, a azáfama numa determinada casa, igual à de todas as outras casas, era enorme. Uma família grande estava ali reunida: crianças, adultos, uns mais velhos do que outros, entre pais, avós, filhos, tios, irmãos e primos, todos festejavam com muita alegria e amor a chegada de mais um Natal. Por mais anos que o mundo tenha, por mais natais que se vivam, o Natal é e será sempre uma festa diferente do que foi nos anos anteriores, tão diferente como se nunca o mundo a tivesse festejado. É que bem lá no fundo do espírito natalício, esse mesmo que torna única a mesa de consoada de cada família, está o presépio de Belém, o nascimento daquele menino que, mesmo sem muitas vezes pensarmos nele, tem o condão de, em Dezembro, trazer mais amor e compreensão ao mundo.

Era Natal pois claro. Os meninos e meninas daquela casa andavam numa correria frenética, movendo-se pelo meio dos adultos, agitados não só com os odores que se disseminavam pela casa, vindos da cozinha, mas também pela lembrança de que, da muito fria e distante Lapónia, deveria estar a chegar o magnífico Pai Natal, viajando no seu trenó, carregadinho de presentes, puxado por umas poucas de renas lindas, que através do balanço do seu corpo, no esforço de puxar aquela carroça sem rodas, tão pesada que vinha, faziam tilintar milhentas campainhas penduradas nos seus pescoços.

Os homens, enquanto conversavam, tratavam de pôr a mesa da consoada e escolher os melhores vinhos para acompanhar o belo bacalhau com broa e o polvo à lagareiro, que traria ainda mais cor àquela noite já de si tão maravilhosa. As senhoras tratavam do bacalhau, do polvo, das velhozes, das filhoses e do bolo-rei…e do bolo rainha, que nos últimos anos começara a fazer companhia ao rei, talvez para ocupar o lugar deixado vago pela fava, que já não fazia parte do bolo-rei…enfim, modernices!

Ao fundo da sala daquela casa, como em todas as outras casas daquela cidade, num canto, resplandecia uma enorme árvore de natal, enfeitada com mil bolas e fitas de muitas cores, tudo iluminado por uma quente e espectacular profusão de pequenas luzes, de muitas cores, que acendiam e apagavam ou cujo brilho se tornava mais ou menos intenso. Naquele canto morava o encanto.

E neste calor, em que os saborosos bacalhau e polvo mais uma vez fizeram jus à tradição tão portuguesa, a noite se foi esgotando e o sono começou a chegar aos olhos dos mais pequenos. Tiveram todos dificuldade em adormecer, pois que bem sabiam que o Pai Natal, tão bom como era, iria responder aos seus pedidos de presentes enviados por carta para a Lapónia, e na manhã seguinte iriam encontrar a base da árvore de natal carregadinha de presentes.

Deitadas as crianças, (incluindo aquele lindo bebé de dez meses que milagrosamente se mantivera acordado e sossegado), que teimosamente resistiam ao sono, por imaginarem o Pai Natal por cima das casas aguardando que todos se deitassem e adormecessem, para então depositar a sua tão desejada e preciosa carga na base da árvore de natal, lá iam cedendo, adormecendo profundamente. Os adultos, por seu turno, de coração cheio por, em mais uma santa noite, terem convivido e comemorado em família a data mais amada de toda a cristandade, davam as boas noites e também eles se preparavam para o aconchego do sono. Mas antes que isso acontecesse, ao dono da casa atingiu-o uma enorme vontade de ir à rua e respirar o ar gelado da noite, como que aspirando a magia do natal, que andava à solta lá fora. E assim fez. Inebriado por tamanho sentimento de felicidade, ao reentrar em casa, por descuido de quem já combate o sono, não fechou a porta da rua, apenas a deixando encostada. Dir-se-ia que alguma mente, feita de magia, coordenava os movimentos do dono da casa. E logo a seguir toda a habitação foi mergulhada num enorme silêncio e escuridão, exceptuando uma pequeníssima zona da casa, que resplandecia com o brilho de mil luzinhas de múltiplas cores. Eram quatro da manhã e a cidade dormia profundamente. Mas…toda?

Não, toda não! Um dos seus habitantes deambulava pelas ruas desertas e geladas, aspirando o resto dos odores dos doces tradicionais e das lareiras, cujas brasas se iam apagando. Esse solitário habitante era o Zé Inácio.

Quem era o Zé Inácio?  

Há muitos anos mecânico de um mesmo patrão, o Zé Inácio foi ganhando a vida esforçadamente, tendo por vencimento pouco mais do que o salário mínimo. Mas com a ajuda da esposa, cujo salário ainda era mais baixo do que o seu, lá foram orientando a vida, tendo em casa dois filhos para alimentar, o mais velho apenas de quatro anos de idade. E como o infortúnio quase sempre escolhe a casa do pobre para bater à porta, aconteceu que o vício do jogo do seu patrão falou mais alto, e as dívidas se começaram a avolumar, a ponto de em Outubro o patrão ter declarado falência e desaparecido. Desde então o Zé Inácio ficou no desemprego, e porque as burocracias eram sempre grandes e morosas, ainda não tinha recebido um cêntimo do fundo de desemprego. Desde então soube que em sua casa o Natal iria ser muito pobrezinho. Olhava para os seus dois filhos, o mais novo com apenas dez meses (curiosamente com a mesma idade do bebé da casa onde dormia a enorme família, com um canto em que uma árvore de Natal resplandecia), e sofria porque não iria ter dinheiro para lhes oferecer um brinquedo. Consumido pela tristeza e roído pela revolta, porque bem sabia que era merecedor de uma situação bem melhor, o Zé Inácio partiu para a noite, depois de comida a parca refeição a que não foi dado o nome de consoada, e de os pequenos e a esposa ficarem a dormir.

Por momentos reparara naquela casa que estivera tão iluminada, e para ali ficou a observar a alegria que dela se exalava, ao mesmo tempo que uma lágrima teimosa lhe corria pelo rosto abaixo. Ouviu um bebé chorar e o seu coração apertou-se. Depois tudo foi sossegando e reparou num homem que viera à rua, e que por momentos ali ficara, como que a aspirar qualquer coisa de bom que se encontrava no ar. Ele, que estava na rua havia tanta hora, ainda nada de bom conseguira obter daquele ar. Para os pobres nunca havia bons ares.

Depois o homem reentrou e fechou a porta…ou será que apenas a encostara? Intrigado com esta dúvida, o Zé Inácio, vigiando as redondezas, não fosse o diabo tecê-las e alguém o estivesse a vigiar, o que o faria morrer de vergonha, quase de pé-ante-pé, aproximou-se da porta daquela casa, e levemente tocou nela. A porta oscilou. A porta estava aberta! Ia para a fechar, quando parou o movimento. Tantos brinquedos que deveriam existir ali dentro…só iria tirar dois…quase se não notaria. Resolvido a, por breves momentos, vestir a roupagem de ladrão, para levar umas gotas de alegria aos seus dois filhos, o Zé Inácio introduziu-se na casa…(continua)