domingo, 21 de outubro de 2012

DOZE ANOS DEPOIS A REVELAÇÃO, A ALEGRIA, A TABERNA DO TI CHICO BENTO


...As crianças não correrão perigo. Mas não é justo. Desculpe a minha ousadia senhor padre, mas o que pede não é deste mundo. Como pode um homem conter-se perante tanto crime? Que mãos poderão deter as minhas próprias mãos, quando perdi tudo na vida, quando sofri tanto, quando cheirei tanto sangue, tanto homem podre e tudo por culpa desse maldito Barreto Raposo?
- Tu António, por momentos recordaste-me o capataz José Chambão. Era essa a opinião que ele tinha desse Raposo. Caso lhe tivéssemos dado ouvidos, talvez nada disto tivesse acontecido.
- O capataz pressentia o perigo.
- É verdade, agora posso afirmá-lo.
- E não se esqueça senhor padre, de que temos de ultrapassar a resistência dos dois cães de guarda do Barreto Raposo, o mouro e o verruga. Esses bichos só entendem uma maneira de falar.
- Tens razão. No entanto eu vou tomando algumas medidas que acho necessárias. Finalmente concederam a Alfeizerão o direito a ter um regedor. Vou ter uma conversa com ele. Mas antes tenho de libertar a Lucinda daquele sofrimento.
- Cuidado senhor padre. Ela não pode contar a ninguém.
- Tens receio? Durante estes doze anos de ocupação ainda não chegou aos ouvidos do Barreto Raposo que o verdadeiro dono da herdade se cruza todos os dias com ele e humildemente obedece às suas ordens. Quem guardou tão bem esse segredo, está à altura de guardar um segundo. Faz os preparativos da acção que eu me hei-de encarregar dos preliminares. E que Deus nos perdoe e nos proteja. Sabes, apetece-me celebrar qualquer coisa. Que tal fazermos um brinde ao renascimento da herdade e do solar Vila de Ló?
- Com muita, mas mesmo muita vontade eu brindo a essa nova vida - disse António Avilar.
     À pequenina adega foi o padre José Soares buscar uma esquecida garrafa de vinho do Porto. O pó de alguns anos transformara aquele vinho num maná do céu. Só um néctar assim era digno de selar uma aliança como aquela, por uma tão nobre causa.
Cálices despejados, uma, duas vezes, na despedida o padre José Soares disse a António Avilar:
- Vieste aqui em busca de ajuda. Afinal que auxílio levas?
- Todo senhor padre. O relógio da minha vida recomeçou a andar. É bom sentir-me vivo outra vez. Obter do senhor padre a compreensão em relação à minha participação no assalto, tornou-me mais leve. O fardo desapareceu. Ter ganho no senhor um aliado na missão que aqui me retém, foi uma boa surpresa. Estou capaz de revolver este mundo e o outro.
- E em relação ao Bombarral?
- Para o Bombarral eu morri há quatro anos. A Luísa não merece ser assombrada por um fantasma. Não tenho condições para ser marido dela, nem de nenhuma outra. Hei-de aprender a viver com isso. A sua benção senhor padre.
- Deus te abençoe alma boa.
Já a noite envolvia Alfeizerão. O padre ficou por momentos parado, a seguir com o olhar o percurso daquele homem que já não podia divisar, pois a escuridão era plena. Respirou o ar outonal. Que surpresas Deus revela aos homens. Qual o sentido de tudo isto? Qual o sentido da existência de cada um de nós? Como era possível que um desconhecido, protagonista daquela noite maléfica, viesse doze anos depois a transformar-se na esperança de resgate do que era ainda possível salvar. Que vida, que grandes privações, que excelente exame estava aquela alma, aquele António Avilar a fazer!
Assim reflectia o padre José Soares.
António Avilar ia feliz. Caminhava de alma cheia. Sempre houvera afinal um ser humano que lhe estendera os braços. Um homem que sofrera com o pecado da sua vida. E perdoara-lhe. Agora, mais do que nunca, a consistência da sua vontade era indestrutível. Chegara ao Alto da Estrada. A taberna do Ti Chico Bento ainda estava aberta. Ouviam-se vozes e de uma pequenina janela saía uma luz mole, alternada de sombras. O Ti Zé da Estrada, pela primeira vez em doze anos, ia visitar o reino de Baco com um sorriso nos lábios...(em continuação, pág. 105- ex. XXXVI)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

domingo, 14 de outubro de 2012

100 ANOS DEPOIS, DE NOVO NO «REVIRALHO»



Hoje, ao passar numa rua, deparei-me com uma frase pintada numa parede, que perguntava: PS, CDS, PSD, até quando?
Esta simples pergunta encerra um número enorme de questões, que decerto já passaram pela cabeça de muitos de nós, pelo menos nos que têm votado num destes três partidos, que é o meu caso. Esta pergunta tem toda a razão de ser. Desde o 25 de Abril, apenas houve um pequeno período em que o governo esteve entregue ao PCP (no tempo do Gonçalvismo). Por isso, todos os erros são atribuídos a estas três organizações pensantes, que se vai dizendo agora, que foi tudo menos erros, insinuando-se que as más políticas foram premeditadas, para beneficiar a nata deste pobre país. Uma coisa é certa- os erros foram cumulativamente colossais, os fundos que vieram da CEE foram colossais, a fiscalização sobre a aplicação desses fundos foi nenhuma, as riquezas súbitas e enormes diz-se que são brutais…mas de uma coisa eu tenho a certeza- o país sofre como eu nunca o vi sofrer, porque havia muito dinheiro que foi sorvido, cujo sofrimento, no entanto, não é compartilhado (compartilhado… como se tal fosse possível num país onde grassa o egoísmo), não é sentido por todos, pois há-os aí que, muito embora vivam num país em crise, mantêm-se incólumes, vivendo num protectorado, que o sistema, esta dita democracia, criou.
No final do séc. XIX, caso fosse costume sujar as paredes com inscrições, estiveram criadas as condições para que, numa qualquer parede deste reino, surgisse uma frase pintada que poderia perguntar: Regeneradores, Progressistas, até quando?
Estes foram os dois partidos políticos que, entre 1891 e 1910, governaram Portugal de uma forma soberba, á semelhança dos de agora, pois então já se está a ver a qualidade, que, entre si, intercalavam o poder e a oposição. Este período ficou conhecido para a história como o «Rotativismo». O povo apelidou-o de «O Reviralho». Terminou, como sabemos, com a queda da monarquia em 1910.
Por vezes a história repete-se, quando a pouca vergonha começa a ser demais. Resta saber o que é que poderá cair.
Mas que estou farto de PS, CDS e PSD, sem dúvida nenhuma que estou. Vejamos que história nos terá para contar o próximo acto eleitoral para as legislativas. Estou muito curioso. Mas que voltámos ao reviralho, lá isso voltámos. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

UM CONDE COMO PRÓXIMO DOENTE


...Meu pai, porquê essa cara? – perguntei eu, intrigado com a expressão do meu pai.
- Ó Joaquim, então, é o Conde D. Rodrigo Corga.
- Sim, eu sei quem é. Mas porquê essa cara?
- Tu vais a casa de um conde…
- Não meu pai, eu devo de ir a casa de um doente. Já é tempo de essas coisas da nobreza irem sendo esquecidas e de o deixarem de impressionar ainda tanto. Não é rapaz? – perguntei eu, dirigindo-me ao moço.
- Pois que assim será, sim senhor – respondeu o rapaz – mas o meu amo precisa do senhor doutor.
- Quem está doente?
- Ele mesmo – disse o jovem.
- Pois aguarda um pouco, que já te acompanho. Enquanto esperas, vai lá atrás à cozinha das cocheiras, que a ti Celeste te há-de dar alguma coisa para comeres e beberes e mais à tua mula.
- Obrigado senhor doutor – disse o rapaz, que levando um sorriso a iluminar-lhe o rosto, logo se dirigiu para as traseiras da nossa casa, levando a mula pela rédea.
         Voltei para dentro e dirigi-me ao consultório, munindo-me do que me fazia falta para a consulta de um doente: o estetoscópio, ferramentas cirúrgicas e uma grande variedade de fármacos, guardados em pequenos frascos de vidro que ia comprando numa botica de Coimbra, fármacos esses que faziam parte da Farmacopeia Geral do Reino – a Medicamentorum Sylloge, que fez parte de uma das disciplinas da matéria médica, na Universidade de Coimbra.
         O meu pai seguiu-me.
- Tens que ir bem ataviado, Joaquim. Faz a barba e leva a melhor roupa que tiveres.
- Meu pai, não me aborreça com esses ditos. Se tem algum jeito o que vossemecê está a dizer?!
- Não tem jeito? Não julgues tu que por o teu pai ser lavrador, não sabe reconhecer quando a vida nos dá uma oportunidade de avançar. Esta visita que vais fazer ao senhor conde pode ser muito importante para a tua vida de médico. O senhor conde é um homem com conhecimentos importantes. Se gostar de ti, pode muito bem fazer com que o teu nome chegue longe. E é importante que vás bem parecido.
- Meu pai, eu prefiro ver no senhor conde apenas um doente.
- Quer dizer que tanto se te dá, como se te deu, que o senhor D. Rodrigo Corga seja o doente que vais ver a seguir.
- Sim, meu pai. È isso mesmo.
- Tu não deves estar bom do miolo. Eu sei onde queres chegar, porque não sou parvo. Mas segue o conselho de um ignorante: não ponhas o raio da politica à frente da tua profissão.
- Meu pai, um homem sem convicções é um trapo, um boneco.  O meu pai repare no que as sua palavras escondem, mesmo sem ter noção disso… que pelo facto do meu próximo doente ser um conde, que o devo tratar com mais respeito do que trato os meus outros doentes. É por isso que faz falta o liberalismo. Tem de haver uma maior igualdade entre os homens.
- Olha Joaquim, eu muito melhor do que tu conheço essas injustiças de que falaste, porque as tenho sentido na carne. Toda a vida a fidalguia tentou mangar de mim, mesmo a fidalguia que não tem um cruzado no bolso. A politica é uma coisa muito ordinária. Basta vermos o que se tentou fazer há poucos meses com a Abrilada, em que o infante D. Miguel teve a coragem de se virar contra seu próprio pai e rei. Mas não imagines tu que, se algum dia o liberalismo vencer, os fidalgos vão acabar. Os fidalgos nunca acabam. Mesmo que a monarquia venha a ser mais chegada ao povo, nunca irá botar de fora os seus fidalgos. Os nobres continuarão a ser nobres e ricos, e o povo continuará a ser povo e pobre. Toma tino nestas palavras que te eu disse. Faz pela vida Joaquim. Foi para teres uma vida boa que te fiz médico, não para andares por aí a espalhar ódios pelos fidalgos. Para eles eu pouco valho, mas isso não acontece contigo, pois tu és médico. Todos os doentes te merecem os maiores cuidados, mas os fidalgos exigem de ti uma vénia; e não penses que irão ser os pobres que farão o teu nome chegar longe. Faz a barba a atavia-te como deve de ser.
         E o meu pai virou-me as costas e foi-se embora...(em continuação, pág. 23- ex. X)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PELOS CAMINHOS PRATICANDO A MEDICINA


...Fiz o meu exame final em Maio de 1823. Era doutor. Munido de canudo na mão, rumei à casa paterna. Malhal de Sula aguardava-me em apoteose. Os meus pais, com um sorriso de orelha a orelha, rodeados pelos homens e mulheres que trabalhavam por sua conta, receberam-me com imensa alegria e inchados de orgulho. O seu filho era o primeiro doutor produzido naquelas bandas. A partir daquele momento Malhal de Sula deixara de ser apenas local de fortes vinhedos. Passara também a ser a residência de um médico, do único médico existente em muitos quilómetros em redor.
         Na dependência mais recatada da casa, que passou a ser a mais nobre, o meu pai montou um consultório para o meu futuro trabalho. Mobília de excelente carvalho, a estrear, constituída por uma enorme mesa pintada de preto, uma cadeira de costas altas, duas cadeiras de braços, destinadas aos pacientes, uma pequena cama para consultas mais aprofundadas e um enorme candelabro de cobre, onde podiam arder em simultâneo quinze velas. O consultório possuía uma enorme janela, que enchia de claridade natural toda a dependência, virada para um pequeno mas belo jardim, pintado pelas cores de várias espécies de flores, obra a que o meu pai se deu ao trabalho de criar, na expectativa de assim emprestar ao consultório uma maior dignidade. Fora proibido, por lei imposta pelo meu pai, que pelas proximidades do jardim passassem carros de bois e gente palradora, evitando assim que o sossego, que àquele espaço era devido, fosse importunado.
         E os meus doentes, lentamente, começaram a chegar. Eram filhos e filhas de outros lavradores ricos, filhos e filhas de um ou outro fidalgo que existiam na Mealhada, no Luso e até da Pampilhosa. Mas ao final de alguns meses dei-me conta de que nenhuma gente pobre do povo eu tivera como paciente. Era verdade que não iriam ser os pobres do povo que me fariam ganhar dinheiro. Mas, naquela época, ser médico representava ser acérrimo defensor da dignidade humana… numa altura em que a dignidade e a vida de um homem podiam apenas depender da palavra de um outro homem.
         Com tanta pobreza, fome e tanta podridão que pela Serra do Buçaco escorrera, após a batalha, era certo que a doença germinava em cada canto. Por essa razão resolvi que a minha actividade clínica deixaria de se restringir ao meu consultório. Ir-me-ia dar a conhecer ás gentes que me rodeavam e intervir, se assim achasse necessário. Falei com o meu pai sobre a minha resolução. A principio, a ideia de atender doentes fora do consultório, não lhe pareceu bem. Que diabo, um médico era um médico! Os doentes tinham que o procurar e não ao contrário. Mas depois de lhe explicar que o meu conceito da prática da medicina se baseava na obrigação moral de actuar onde fizesse falta, e não de fazer falta apenas a alguns, o meu pai compreendeu o meu ponto de vista e concordou comigo. Ele sabia que por aquelas terras existia muita gente a sofrer de graves doenças. E assim, um dia se me apresentou com uma bonita caleche, puxada por um garboso cavalo.
         Em 1824 já o nome do doutor Joaquim Passos Lopes corria de boca em boca. Tinha eu então vinte e quatro anos de idade.
         Foi num dia quente de Agosto desse ano, que a Malhal de Sula chegou um criado. Viera montado numa mula. Eu encontrava-me no consultório a trabalhar numa lista de doentes, que do mesmo lugarejo apresentavam febres altas e diarreia, quando o meu pai me bateu à porta.
- Joaquim, sou eu.
- Meu pai, abra a porta. Nunca mais perde a mania dessas cerimónias – disse eu, aborrecido, por sentir no meu pai uma atitude de servilismo sempre que se dirigia ao consultório.
         O meu pai abriu a porta e disse:
- É que está lá fora um criado a preguntar por ti.
- Um criado? Criado de quem?
- Não o entendi bem. Fala muito depressa. Os bofos quase que lhe saiam pela boca. Vai lá e vê o que ele quer.
         Levantei-me da minha mesa de trabalho e fui à porta da entrada. A porta dava para um alpendre com uma pequena escadaria. No final dos degraus encontrava-se um rapaz dos seus quinze anos, com ar muito atrapalhado, segurando com as duas mãos o barrete que lhe tapara a cabeça.
- Então rapaz, o que é que há? – perguntei eu.
- Eu venho em demanda do médico, senhor doutor Joaquim Lopes.
- Sou eu mesmo. Vens de onde?
- Venho do Luso, senhor doutor, a mando de meu amo.
- E quem é o teu amo?
- O senhor Conde de Cértima.
         O meu pai olhou para mim com uma feição muito séria...(em continuação, pág. 20- ex. IX)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009