domingo, 31 de outubro de 2010

DE REGRESSO


...Ligado a um ventilador, Serôdio confiava que a máquina lhe mantivesse a vida.
Em resultado das agressões de que fora vítima, sofrera múltiplas lesões: costelas partidas, fractura de um braço, fractura da cana do nariz e o pior de tudo- aquela violenta pancada com a cabeça na esquina da parede provocara-lhe traumatismo craniano, pelo que havia três meses que se encontrava em coma profundo.
A principio a sua mãe achara que era ilusão de óptica, mas depois confirmou que afinal era verdade. Serôdio mexia a mão direita e nos seus lábios havia movimento.
A mãe de Serôdio saiu a correr do quarto do hospital a fim de avisar alguém. Sim, era verdade, Serôdio acordava lentamente e finalmente regressava à vida.
A mãe e dois médicos que agora o rodeavam estavam ansiosos por saberem em que estado físico ele se encontrava, depois de regressar da batalha que durante três meses mantivera com a morte.
Os globos oculares movimentavam-se por debaixo das pálpebras fechadas. As mãos e os pés mexiam-se energicamente, o que era um óptimo sinal. A sua parte motora em principio não fora afectada. Restava saber como estaria a sua condição sensorial e principalmente a intelectual.
Enquanto Serôdio era avidamente observado pela mãe e pelos médicos, ele próprio ia, segundo a segundo, tomando consciência do seu corpo. Na mente bailavam-lhe imagens confusas de uma linda senhora vestida de branco, de rostos amigos que antes não vira e de uma certa mensagem relacionada com uma tal alma gémea, a sua alma gémea, que o acompanhava havia muitos séculos. Era incrível! E essa alma gémea era... sim, era ela, não tinha dúvidas nenhumas... D. Silvina.
No despertar para a vida, no meio do movimento brusco dos olhos ainda fechados e de espasmos musculares, Serôdio ia balbuciando: « D. Silvina... Silvina... alma gémea».
- O meu filho pronunciou o nome Silvina- comentava a mãe de Serôdio, fixando os médicos com um olhar que demonstrava um misto de felicidade e estranheza- quem será esta Silvina?
- A senhora não deve ligar importância ao que o seu filho diz, mas à forma como fala. Parece que articula bem as palavras. O resto são apenas reacções a um estado profundamente traumático, do qual finalmente se liberta- explicou um dos médicos.
- Sim, só pode ser isso- disse D. Amélia, mãe de Serôdio, que teria ficado muito feliz se em vez de ouvir «Silvina» da boca do filho que despertava de um coma profundo, antes tivesse ouvido a palavra «mãe»...(em continuação, pág. 55- ex. XVII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

ESPREITANDO A ETERNIDADE

...Para espanto de Serôdio, o modo de locomoção era algo incrível. Flutuavam!! Guiado por aquela bela e misteriosa senhora, Serôdio ia passando por cenas que à sua frente se iam projectando em telas invisíveis. Aquelas cenas não lhe eram desconhecidas... eram-lhe até muito familiares. Serôdio viajava pela sua própria vida. Estava-lhe a ser feita uma retrospectiva de tudo o que ele fizera na vida, até àquele momento.
- Isto è fantástico- dizia Serôdio.
- Reconheces aquela criança?- perguntou a senhora de branco, referindo-se a imagens que surgiam de um menino que se baloiçava num balancé.
- Aquele sou eu. Lembro-me perfeitamente. E ali está o ... o meu irmão! È verdade, eu tenho um irmão. Onde è que ele anda que nunca mais o vi?
- O teu irmão irá fazer parte de um momento crítico da tua vida futura.
- Um momento crítico?
- Sim, será uma prova para ti e para ele.
- Mas, se somos irmãos, que prova poderá ser essa?
- Vocês são irmãos, mas nesse momento futuro não se irão lembrar disso.
- Não?
- Não, porque o teu irmão embora saiba que existes, não te vê desde que eras uma criança, aquela criança que há pouco pudeste observar. O teu irmão não te irá reconhecer. Pelo teu lado, tu não te vais lembrar sequer que tens um irmão.
- Mas se me lembro agora!
- Enquanto encarnado lembraste-te?
- Não.
- Pois vais voltar a esquecê-lo- afirmou a senhora.
- Porque razão deixou o meu pai que eu me esquecesse do meu irmão?
- Tu e o teu irmão não são filhos do mesmo casamento. Vocês têm mães diferentes. O teu irmão è quinze anos mais velho do que tu. Um dia, em conversa, o teu pai e o teu irmão discutiram. O teu pai criticou a ex-mulher e o teu irmão defendeu a mãe. O teu irmão decidiu então não mais ver o pai. Já está arrependido, mas passaram-se muitos anos. O teu irmão já criou raízes no afastamento do pai. Foi uma decisão muito má, essa que o teu irmão tomou. O teu pai sofre com isso, mas perdeu o paradeiro do filho mais velho. Não se vêem há catorze anos.
- E o meu irmão lembra-se de mim?
- Sim, ele sabe que tu existes em algum lugar.
- Sinto-me tão bem com tudo isto que a senhora me revelou. Posso saber quem è?
- Eu? Eu sou a tua permanente amiga. Fui encarregada de te acompanhar nesta paragem desta tua vida terrena.
- Quer dizer então que a minha vida vai continuar?
- Sim, o teu Karma precisa de ser completado. Quando reencarnaste no corpo que tens hoje, obrigaste-te a padeceres algumas dificuldades.
- E em alguma delas vou cruzar-me com o meu irmão?
- Assim será. Como já te disse, será uma prova para os dois. Reconheces a tua alma gémea?
- Eu... a minha alma gémea...
- Esforça-te um pouco. Lembrarte-ás. Agora vamos viajar. Existem espíritos teus amigos que estão ansiosos por comunicarem contigo.
- Quem são?
- Quando os vires logo os reconhecerás. E vais recordar ainda alguns momentos de algumas vidas passadas. Aproveita este pequeno intervalo nesta tua vida para fazeres um balanço de ti mesmo, fazeres uma revisão de toda a matéria que vai preencher os teus dias futuros, tomares consciência do nível em que está a tua espiritualidade e repores energia, a energia que vem do Alto e que a todos consola. Vamos?
E Serôdio embrenhou-se na eternidade...(em continuação- pág. 53- ex. XVI)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

NÚMERO 61- CÓDIGO DE CONTACTO

...- Tens recebido noticias do Álvaro?- perguntou a amiga.
- Sim, ele está bem. O meu Álvaro dava um óptimo jornalista, pois manda-me autênticas reportagens de guerra. Apetece-me dizer que tenho África em directo.
- Deve ser óptimo ter um namorado que goste assim de escrever.
- È muito bom- respondeu Catarina- comunicando-se assim constantemente, ele sente-se mais vivo e quase comunga o dia a dia comigo. E eu, pelo meu lado, tenho a responsabilidade de o integrar nas coisas banais e nas coisas importantes que me vão acontecendo, para alimentar essa comunhão. E no tempo que gastamos a escrever cartas, e na ânsia que vivemos em as receber, os meses passam mais depressa. Quase sem darmos por isso já passaram nove.
- Eu acho que quando arranjar um namorado, vou escolher um homem que tenha o serviço militar já cumprido.
- Porquê?- perguntou Catarina, rindo.
- Não gosto muito de escrever. Se o meio de atenuar a saudade fosse apenas através das cartas, iria fazê-lo por obrigação e não por devoção, como conviria.
- Estás enganada Isabel. Irias fazê-lo por amor, que è algo totalmente diferente. Irias reparar que a lapiseira quase escreveria sozinha. E se amasses verdadeiramente o teu namorado, irias compreender que as cartas seriam o único meio que vos restava de se amarem.
- És feliz Catarina?
- Se sou feliz? Sob certas condicionantes posso dizer que sim. Tenho uns pais maravilhosos, tenho os meus amigos, tenho-te a ti, tenho-o a ele através dos aerogramas- dizia Catarina que com um pálido sorriso fixava o rosto da amiga. Esta segurou-lhe nas mãos e apertando-as disse-lhe:
- Querida amiga, podes sempre contar comigo. Mas agora tenho de me ir embora. Está a chegar a hora do eléctrico. Ficas?
- Sim, fico. Vim para estudar um pouco.
- Então até amanhã Catarina.
Ali, no primeiro andar, apenas mais duas mesas estavam ocupadas. Era estranho entabular-se uma conversação com um amigo, sobre um assunto tão sério, e seguidamente ficar-se só. Era como se esse amigo, por momentos nos tivesse ajudado a enfrentar os adversários da nossa vida, e nós, encorajados com essa ajuda, tivéssemos redobrado as forças. Mas o amigo ia-se embora e compreendíamos que aquela ajuda fora apenas uma ilusão. O adversário, a saudade, era sempre tão forte, tão intenso, tão presente, por mais cartas que se escrevessem.
Catarina ali se manteve por bastante tempo. Após muitas páginas de filosofia estudadas, muitas páginas de sebenta preenchidas com anotações, abandonou o Nicola e nem uma linha lera do livro Contacto. Afinal não sabia porque o trouxera. Eram quase seis da tarde. A noite quase se instalara. A paragem do eléctrico ficava mesmo em frente ao café de onde Catarina acabara de sair. Naquela paragem, instalada no largo passeio, existia grande aglomeração de pessoas. Ali estavam para apanharem as várias carreiras de eléctricos e tróleis que serviam toda a cidade. Para Catarina seria o 4, o que trazia escrito num pequeno rectângulo, na parte superior « Cruz de Celas ». Como o tempo esfriara. Aconchegou melhor o seu grosso casaco preto ao corpo. Os livros tinha-os colados ao peito e abraçava-os. Observava as pessoas que passavam. De vez em quando sorria a crianças que a observavam.
Finalmente surgiu o seu eléctrico. Já levava bastante gente e naquela paragem entraram mais umas quantas pessoas. O condutor do eléctrico, com o pé fez soar um dispositivo sonoro que se encontrava no chão, bem junto a uma base metálica, que suportava uma roda de que o condutor se servia para travar e destravar o eléctrico. Parecia uma roda de leme. Dois fortes batimentos metálicos que o condutor provocara e o eléctrico pôs-se em movimento. Catarina conseguira arranjar um lugar sentada, na parte da frente, junto ao compartimento do condutor. Já existiam alguns passageiros de pé, que de alguma forma atrapalhavam os movimentos do cobrador dos bilhetes, com a sua mala gasta, de cabedal castanho, que trazia a tiracolo e de onde retirava moedas, com as quais ia fazendo os trocos.
Ela não reparara, mas no eléctrico entrara um jovem que a observava intensamente. Era o mesmo que estivera sentado na mesa do café, quando Catarina ali entrara.
Ele tentava disfarçar a sua presença o mais que podia. Aquela loira não podia aperceber-se de que ele ia ali. Se calhar já nem se lembrava. Haviam trocado um olhar tão rapidamente! Ela ficara desconfiada. Mas que raio havia aquele livro ter de tão de especial, que o tivesse obrigado a ele, um jovem rapaz cheio de vida e com um promissor futuro como engenheiro, a aguentar todas aquelas horas meio escondido, aguardando que aquela sujeita saísse do café, obrigando-o a ele a persegui-la no interior de um eléctrico apinhado de gente, para tentar descobrir onde residia ela. O seu pai não era nenhum parvo. Se ele ambicionava ter o livro de capa preta que aquela loira levava no regaço, ele lá sabia porquê.
Chegado o 4 ao Largo da Conchada, no início da Rua António José de Almeida, Catarina saiu. O seu perseguidor atrasou a saída o mais que pôde. Já o eléctrico se punha de novo em movimento quando o rapaz saltou para o exterior. A loira levava-lhe um avanço de cerca de vinte metros. Contornou uns poucos de prédios e entrou numa rua, que abria, formando uma espécie de largo, assinalada com uma placa onde estava escrito « Rua Frei Tomé de Jesus ». Havia necessidade de anotar o nome da rua e foi o que o jovem fez, sem perder de vista a rapariga.
Catarina entrou em sua casa sem nunca se ter apercebido de que era seguida. O jovem deixou que ela desaparecesse no interior da habitação e aproximou-se para ler o número da porta. Era o número 61. Muito bem! O número 61 da Rua Frei Tomé de Jesus correspondia a uma pequena vivenda pintada de vermelho. Anotou a observação e foi-se embora. Caramba, que o pai nunca mais lhe pedisse fretes daqueles. Se ao menos o pai lhe tivesse dado a possibilidade de ele se poder comunicar com a loira!! Agora assim...(em continuação, pàg. 68- ex. XV)

in VISITADOS

Novembro/1999

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

EM COIMBRA, NO CAFÉ NICOLA




....Como sempre, o Nicola estava cheio. Catarina elegera um canto daquele espaço como seu. Por isso o procurava sempre. Ficava no primeiro andar, pois o Nicola tinha um primeiro andar, frequentado mais pelos clientes habituais. E esses eram na maioria jovens estudantes, que a troco de uma bica, ocupavam mesas por horas a fio. Mas a gerência não se importava, pois se por um lado os estudantes transmitiam ao café « o status dos tesos », por outro lado era bem verdade que os mesmos estudantes também escolhiam o Nicola para conviverem, e nessas horas, sem estarem preocupados com as Matemáticas e as Físicas, sempre eram mais generosos para com a gerência do café.
Catarina atravessou o corredor formado entre as mesas e o comprido balcão. Mesmo para aqueles que estavam habituados à sua presença, o facto de mais uma vez aparecer, nunca passava despercebido. E naquele dia ela irradiava luz e fazia os corações de alguns baterem mais apressadamente.
No regaço transportava três livros: um compêndio de filosofia, outro de literatura e um romance de capa preta, onde a meio existia uma mancha amarela, uma fonte de luz, rodeada por uma massa disforme que dava a percepção de ser uma grande concentração estrelar. Imediatamente abaixo surgia a lua em quarto minguante, e mesmo no fundo da capa aparecia a palavra « Contacto », escrita em letras grandes de cor cinzenta. Aquele era um dos livros que Álvaro lhe emprestara, e embora tivesse muita vontade e muita curiosidade em lê-lo, quando tinha o impulso de iniciar a sua leitura, algo havia que a fazia sentir angustiada. Por essa razão era, que havendo já passado nove meses, desde a partida do seu namorado para Angola, só na semana anterior iniciara a leitura do livro. Na penúltima carta que escrevera a Álvaro mandara-lhe dizer:
« Meu querido, finalmente consegui libertar-me daquele patético sentimento de angústia, sempre que tomava o livro Contacto nas mãos e me propunha a lê-lo. Ontem lutei contra mim própria e li o primeiro capítulo. Não foram muitas as páginas. Só li vinte, mas já surgiu uma personagem com quem eu estou a simpatizar- a Ellie, embora ela seja doidinha por matemática, o que até me faz arrepios. No pouco que li, já percebi que a ficção que aqui se faz deve ser baseada em sólidos conhecimentos científicos...»
Catarina caminhava devagar, dirigindo-se para as escadas de ferro que a levariam ao primeiro andar. O livro Contacto ia no seu regaço, com a capa virada para onde se encontravam as mesas. Qualquer um que ali estivesse sentado, perfeitamente observaria a capa preta e lhe leria o título. Catarina foi obrigada a parar, pois um empregado passou à sua frente transportando uma bandeja, onde equilibrava várias chávenas de café e alguns copos de água. Nessa sua paragem fugaz reparou numa mesa bem perto de si, onde se encontravam dois homens que ela nunca vira. Um era jovem e o outro bem mais velho. Ambos a observavam intensamente. Todavia percebeu nos seus olhares intenções e sentimentos diferentes. O mais novo corria-a gulosamente com os olhos, expressando desejo devasso. O mais velho mantinha o olhar parado, fixo num ponto do seu corpo que ela não podia determinar. Via naquele olhar uma espécie de surpresa. Sentiu-se perturbada e ainda o empregado não acabara de passar, já ela forçava a passagem, tendo ainda empurrado o pobre homem que quase se viu defraudado na sua arte de, com perícia, fazer chegar aos clientes todo o saboroso conteúdo, transportado nas frágeis chávenas. Desconfiada, ao chegar às escadas, deitou um olhar disfarçado à mesa onde se encontravam os dois homens. Eles ainda a observavam. Subiu as escadas, e quando chegou ao topo, olhou para a sua mesa predilecta, e viu que lá se encontrava uma das suas melhores amigas. Ficou satisfeita e encaminhou-se para lá.
- Olá Catarina- disse a amiga.
- Olá Isabel- respondeu Catarina sentando-se- está uma pessoa tão bem disposta e de repente fica-se nervosa...
- Porquê?- perguntou a amiga.
- Ali em baixo estão sentados dois tipos que me olharam de uma maneira...
- Que esperas tu minha querida? Se até há mulheres que te admiram fisicamente, que hão de pensar os homens!
- Desses olhares frívolos e banais estou eu habituada, e já não me incomodam. Mas a maneira como principalmente o mais velho me olhou, deixou-me intrigada. Nunca sentiste possuíres qualquer coisa que de repente sentes ser pertença de outrem?
- Não sei o que queres dizer.
- Olha, nem eu...Isabelinha, sê minha amiga, e vai ali ao parapeito, olha para baixo e vê se encontras nalguma mesa dois homens com aspecto de serem pai e filho, bem parecidos.
- Está bem- disse a amiga de Catarina que se levantou, foi ao fim do recinto do primeiro andar, olhou para baixo, observou atentamente todas as mesas e regressou- não existe ali ninguém com aspecto de pai e filho.
- Mesmo naquela mesa que está em frente à máquina do café?- perguntou Catarina.
A amiga voltou ao parapeito e atentamente observou a tal mesa. Regressando disse:
- Na mesa não está ninguém.
- Óptimo. Assim já me sinto melhor- retorquiu Catarina sorrindo... (em continuação, pág. 65, ex. XIV)

in VISITADOS
Novembro/1999

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

NA SOMBRA DE ANTÓNIO AVILAR VEM O CAMINHANTE

...O Caminhante sofria. As lágrimas corriam-lhe abundantes pelo rosto barbado e endurecido pelas mágoas da vida. O seu olho cego tinha a única utilidade de ajudar a fazer brotar as tristezas que lhe escureciam a vida. No seu minúsculo casebre rangia os dentes e furiosamente agredia as paredes do pobre lar. Vencido pelo destino, tomou uma resolução - ir dar-se a conhecer ao Padre José Soares. Não suportava mais aquela situação sozinho. O padre era a pessoa certa para o poder ajudar. O sol de outono estava a pôr-se no horizonte salgado de S. Martinho do Porto. Era o momento.
Deu um pouco de água ao rosto e convictamente partiu em direcção à casa do pároco. Encontrou-o pelo caminho.
- Santas tardes senhor padre.
- Viva homem de Deus. Não vais ao caldo?
- Primeiro preciso de alimentar o espírito.
O padre parou.
- Queres-te confessar?
- Quero sim senhor padre. Quero-me confessar a Deus e aos homens - e duas lágrimas pesadas, carregadas de escuridão, lhe desceram pelo rosto.
- Estou a ver - disse o padre José Soares - vamos até minha casa. Não podes por mais tempo manteres-te um incógnito. É isso não é?
- É sim senhor. E será muito mais do que isso. Preciso de ajuda.
- Assim eu tivesse podido ajudar a todos, como te posso ajudar neste momento. Vamos a isso.
Os dois homens entraram na casa do pároco. Uma casa que ele habitava havia já vinte e um anos. Com o desaparecimento do morgado Vitorino, não mais recebera visitas. O Caminhante era o primeiro. O padre José Soares abria a sua porta àquele homem simples, porque nele sentia estarem latentes aqueles valores humanos de que ele próprio tanto precisara. Também a sua vida se tornara mais sombria desde o desaparecimento do seu pupilo, do pequeno Leandro e do José Chambão.
- Senta-te homem - disse o padre José Soares, sentando-se também - abre-me esse espírito.
- Preciso muito de ajuda espiritual senhor padre. Sou um homem só. Desgracei a minha vida na herdade onde trabalho, numa noite que já tem doze anos.
- Ali na herdade? Há doze anos? - perguntou o padre intrigado.
- Senhor padre, chamo-me... António Avilar. Sou do Bombarral e participei no assalto em que morreu o morgado e o capataz.
Ao ouvir aquelas palavras, como que empurrado por força invisível, o padre José Soares levantou-se de um salto, foi até à janela mais próxima, mãos postas junto ao rosto, mantendo-se em silêncio. O Caminhante, um António Avilar de rosto transformado pelas agruras da guerra, sentiu que algo muito sério se passava no íntimo do padre.
- Como disseste que te chamas?
- António Avilar, senhor padre.
- Diz-me então António, porque razão vieste para Alfeizerão?
- Vim para tentar reparar o mal, que sem querer, ajudei a fazer.
- Como é isso possível? Deste-me a certeza de que o meu querido Vitorino está morto.
- Vitorino? Quem é o Vitorino senhor padre?
- Vitorino era o morgado de Alfeizerão. Que reparo podes fazer? Que remédio tens tu para a morte?
- Nenhum senhor padre. Mas posso tentar devolver os bens ao menino que eu raptei.
O padre José Soares não aguentou mais. Virou-se repentinamente. Os olhos estavam endurecidos com a chama do desgosto e da raiva.
- Foste tu que roubaste ao berço o pequenino Leandro?
- Fui senhor padre, para o salvar da fúria do Barreto Raposo. Eu não matei ninguém. Vim enganado, era jovem. O ideal republicano fervia-me no sangue.
- Que fizeste tu ao menino?
- Levei-o para minha casa. Lá anda pelo Bombarral. Está um belo rapazinho.
- Deus seja louvado - ria e chorava o padre - o pequenino Leandro está vivo e mora no Bombarral.
- Mas senhor padre, ele não se dá por esse nome. Ele chama-se Carlos Avilar. Foi o nome que eu lhe dei.
- Pois fica sabendo que esse rapazinho, quando tu o tiraste ali do solar, já se chamava Leandro Vital de Lourena Fernandes. Que alegria a Lucinda vai ter quando souber.
- A Lucinda Matias?
- Essa mesma - disse o padre.
- É ela a mãe do pequeno?
- Não, a mãe do pequeno morreu quando ele nasceu. Ele e o irmão.
- O Helder - disse António Avilar.
- Como sabes?
- Eles são iguais senhor padre.
- Confirmasse agora a tua história - disse o padre - efectivamente são gémeos. Tu a fugires com um para um lado e a Lucinda com outro para outro lado, concretizaram a separação dos dois.
- A Lucinda apercebeu-se da nossa chegada?
- Apercebeu. Na altura tinha o Helder ao colo e com ele fugiu. Dás-me então a certeza de que o responsável por tudo isto é o Barreto Raposo?
- É verdade sim senhor. Quando ele descobriu que eu fugira, perseguiu-me. Fui obrigado a sair de Portugal.
- Bem a Lucinda tinha razão ao dizer que reconhecera a voz desse Raposo. Qual foi o teu destino?
- A guerra, a maldita guerra...(em continuação, pág.97, ex. XXXIII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998