sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A SENTENÇA DE AKHENATON


...Depois da partida do deus Horus, o faraó, tomado de uma profunda ira, alvoroçou todo o palácio, ordenando que toda a gente estivesse bem acordada. Pressentindo profundas mudanças no humor do faraó, Nefertiti e as aias quedaram-se num respeitoso silêncio. O faraó enviava mensageiros- que viessem o vizir de Tebas, os hatiuás e os escribas. A todos o faraó tinha determinações a dar; e passado algum tempo, do meio da noite começaram a afluir ao palácio real os altos funcionários do reino, que ainda um tanto ou quanto estremunhados, questionavam as razões que levariam o faraó a uma tão inesperada reunião.
     Sentados no chão, de pernas cruzadas, formando um semi-circulo em redor do imponente trono do faraó, formado por uma escadaria composta por dez degraus, encimada por um patamar enorme, forrado de peles de leopardo, onde estava colocado o cadeirão real, cravejado de ouro e pedras preciosas, os altos funcionários aguardavam pelas palavras de Amenhotep, o quarto. Este, levantou-se do seu trono e com olhar chamejante fixou os seus súbditos. Em silêncio desceu a escadaria que o conduzia até ao chão; depois, firmando o vácuo, disse:
- O Egipto tem uma nova rainha. Se não o sabíeis, ficais agora a sabê-lo; mas espero que esta noticia já não seja novidade para vós, pois como altos servidores do faraó, devereis estar atentos a tudo o que de bom e de mau se passa na terra egípcia.
     Mas já todos o sabiam, pois muitos olhos haviam visto o faraó a levar uma sacerdotisa do templo de Amon-Rá.
- O vosso faraó- continuou Amenhotep, o quarto- no entanto pagou um preço alto pela conquista da sua rainha. Perdi a bênção dos deuses! Mas não fiquem deveras preocupados, porque eu estou calmo e ciente da minha razão. Eu sou faraó! Eu sou o Egipto! O faraó necessita de descendência, como tal é urgente haver uma rainha. O faraó, porque vai ser pai da descendência real do Egipto, tem por direito escolher para rainha a mulher mais nobre e pura que encontrar; e a minha escolha recaiu sobre uma sacerdotisa de Amon-Rá. O deus supremo não gostou da minha escolha. O deus supremo sentiu-se ofendido por eu ter escolhido uma sua sacerdotisa para rainha do Egipto. Eu coloco então a seguinte questão: terá a ofensa de Amon-Rá legitimidade? Tem Amon-Rá o direito de se opor à eleição de uma sua sacerdotisa para rainha do Egipto? Não, vos respondo eu!! Onde estão, em Amon-Rá, os espíritos dos faraós que compuseram as dinastias anteriores a nós? É com uma atitude destas que o deus supremo revela o seu respeito pelas dinastias que nos legaram o maravilhoso Egipto que hoje possuímos? Não!! E sabeis porquê? Porque no âmago da sua essência, Amon-Rá não é egípcio!! Podeis perguntar-me se eu tenho provas?! Que melhor prova é senão o facto de Amon-Rá ter eleito para seu Sumo-Sacerdote um estrangeiro?! Como pode ser possível que um não egípcio ocupe o mais alto cargo religioso do Egipto? Só assim se compreende que Amon-Rá não tenha ficado contente com a eleição de uma sua sacerdotisa para rainha, mãe da futura descendência egípcia. Em mim estão condensados todos os poderes dos deuses, pois eu sou deus na terra. Tenho a capacidade mental, espiritual, psicológica e politica de Amon-Rá. E tenho algo que ele não tem… eu sou leal à nação das pirâmides, sou leal ao imenso e magnífico Nilo. Eu tenho de ser o Egipto, porque sou faraó, mas principalmente porque sou egípcio. Assim, determino que a partir deste momento fiquem proibidos quaisquer manifestações religiosas em honra de Amon. O templo de Tebas vai ser encerrado, e o seu Sumo-Sacerdote, o estrangeiro Masahemba, passa a ser considerado prisioneiro, como tal, transformado em escravo. O deus supremo volta a ser Aton, o magnânimo deus da desaparecida Mênfis. Qualquer culto a Amon-Rá será punido com o chicote, e se as manifestações se mantiverem, a punição poderá ir até à pena de morte. A partir deste momento o faraó passa a chamar-se Akhenaton, faraó ao serviço do deus Aton. Que o sol ilumine Lucsor e Karnak somente na bênção de Aton. Irei fundar uma cidade a que chamarei Amarna, como tributo a Aton; e enquanto lá não puder viver, terei o meu próprio tabernáculo a Aton, aqui no meu palácio. Vizir de Tebas, tens em algum escriba as qualidades necessárias para poder desenvolver a prática de sumo-sacerdote?
- Sim, divino senhor. O escriba Efreiménus. Estudou e praticou a filosofia e espiritualidade dos deuses.
- Pois que Efreiménus passe a viver na casa do faraó, e canalize as suas orações para Aton. Posto isto fazei com que as determinações do faraó Akhenaton sejam cumpridas. E logo pela manhã quero a meus pés o estrangeiro Masahemba.
     O palácio esvaziou-se. Os altos funcionários não sabiam o que dizer. Não houve qualquer oportunidade a que se pronunciassem; e sentiram que se o fizessem não sairiam dali vivos. O faraó não estava a actuar bem… mas era o faraó. E as suas cabeças respondiam pelo não cumprimento das suas determinações. Os altos funcionários iriam fazer cumprir a determinação de proibir o culto a Amon-Rá. Mas estavam dispostos, no mais secreto dos seus seres, honrar Amon com as suas preces. Dissesse o faraó o que dissesse, Amon-Rá era o Egipto. Que Amon-Rá velasse pela terra egípcia e destronasse aquele faraó o quanto antes...(em continuação, pág. 43, ex. XIV)

in  A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

MOINHO DE MARÉS EM AVEIRO, UM MONUMENTO RARO


Passeando por Aveiro, sustamos o nosso passo na emblemática Ponte-Praça, fixemo-nos um pouco nas águas da ria, virados para nascente, e deixemos que as memórias de Aveiro venham ter connosco.
Um século depois da recuperação da vila de Aveiro para a coroa (que aconteceu em 1306, por intermédio de El-Rei D. Dinis), a vila estava em franco desenvolvimento. Por essa razão, no dia 8 de Janeiro de 1406, D. João I mandou passar carta de licença ao seu escrivão Álvaro Gonçalves, para fazer em Aveiro moendas de pão «no esteiro do mar que entra polla ponte do dicto logar, acima da dicta ponte, que moese com agoa do mar»- segundo consta num documento da chancelaria de D. João I, em arquivo na Torre do Tombo.
Moenda de pão significaria a farinha produzida da moagem de uma determinada quantidade de cereal.
Nasceu assim, a 8 de Janeiro de 1406, uma forma de moinho pouco comum- o moinho de marés, que tal como o nome o faz entender, utilizava a energia das marés como força motriz das mós.
Este moinho de marés, ou o que resta dele, é um dos monumentos mais antigos de Aveiro.
Com o assoreamento da barra de Aveiro, ocorrido na segunda metade do séc. XVI, as marés deixaram de conseguir penetrar na ria, o que originou que o moinho de marés deixasse de poder trabalhar, pelo que entrou em ruína, tendo, no entanto, as entradas das suas azenhas conseguido resistir á passagem do tempo.
O moinho de marés, construído há 607 anos, é um monumento que os aveirenses vêem todos os dias, pois trata-se do conjunto de arcos mergulhado na ria, que sustenta o edifício da velha Capitania do Porto de Aveiro.
Na verdade, quanta história humana se esconde no silêncio das pedras!
Agora, que da Ponte Praça estivemos a observar 607 anos de história, podemos continuar o nosso caminho, num Domingo do início do séc. XXI, com a certeza de que para trás de nós existe uma longa e velha tradição.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

DE ASPIRANTE A SOLDADO...EM MAFRA


Quatro anos se passaram. Na sua contínua e silenciosa viajem em torno do Astro Rei, a Terra girou mais de um milhar de vezes sobre o seu eixo, oferecendo aos seus habitantes a dádiva do sol, que neles fazia crescer a agitada palpitação da vida e ainda a retemperante quietude da luz da lua.
No emaranhado de países a guerra ditou a sua triste lei e os homens cresceram um pouco mais na sua perfídia.
No mundo ocidental, a humanidade disse adeus ao Papa Paulo VI, conheceu num brevíssimo pontificado o Papa João Paulo I, e viu surgir um dos grandes chefes do Vaticano, um enorme líder espiritual, um fervoroso peregrino de Fátima de Portugal: o Papa João Paulo II.
Neste nosso pingo de terra, numa falésia da Europa plantado, nesses quatro anos conhecemos a crise política e social, com a sucessiva queda de vários governos constitucionais, e a morte do primeiro ministro, Francisco Sá Carneiro, ocorrida num acidente de aviação em Camarate, com origens profundamente nublosas.
No Arquipélago dos Açores, os separatistas da Frente de Libertação dos Açores (FLA), provocavam incidentes graves, tendo inclusive montado cerco ao Comando Regional da Policia de Segurança Pública em Ponta Delgada. No Alentejo, a agitação popular foi enorme, com todos os actos sensatos e insensatos que tiveram lugar no decorrer da chamada «Reforma Agrária».
No mundo da arte, no que concerne aos artistas das palavras, Portugal pôde de alguma forma sorrir de alegria: o livro «Os Bichos» de Miguel Torga foi premiado em França; no Canadá foi inaugurada uma exposição sobre Alexandre Herculano; Fernando Namora recebeu a medalha de ouro da Societé Encouragement au Progrés de France; por fim David Mourão Ferreira foi agraciado com a Legião de Honra Francesa.
Aveiro era uma cidade fria. Corria o mês de Dezembro de 1981. Nesses quatro anos Serôdio passara por várias fases. Começara por manter uma luta feroz contra o seu próprio organismo, na tentativa de recuperar todas as suas faculdades motoras. Com muito sacrifício e paciência, ao fim de um ano de exaustiva terapia, os membros do lado direito começaram finalmente a obedecer-lhe. Então intensificou mais os treinos, para mais depressa recuperar a sua forma física. Já escrevia com delicia. Memorizar o que lia è que ainda era um problema, embora aprendesse que se quisesse armazenar alguma informação na memória, teria que apenas ler algumas linhas diariamente. Era pouco, mas já era um avanço. Um avanço que no entanto nenhum significado tinha para quem se propunha  tirar um curso superior.
Serôdio reflectiu imenso. Aquela inferioridade não o podia transformar num homem derrotado. Se a vida não podia seguir pelo caminho planeado, teria de se encontrar um outro rumo. Poderia ser mais sinuoso, mas a vida não podia parar nem ele alguma vez se transformaria num inútil. Por isso, naquela bela tarde de meditação, enquanto corria pelo parque da cidade, decidiu dar-se voluntário para a tropa.
O tempo passou e pelo Natal de 1981, ali estava o soldado Velasques, gozando um fim de semana de licença.
O início da sua vida militar foi acabrunhante e frustrante. Tivera sido incorporado no Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra. Mas dada a sua incapacidade memorizadora, o comando da Escola Prática de Infantaria de Mafra decidiu eliminar Serôdio daquele curso. Ele bem que tentou explicar qual a deficiência de que era vítima e qual a sua origem, mas o comandante do curso não foi sensível aos apelos de Serôdio, no sentido de que houvesse alguma benevolência para com ele. Se não estava apto para responder ao que dele se exigia, em termos de assimilação de conhecimentos, teria de ocupar um lugar cujo factor intelectual era de menor valia. Foi desclassificado do curso de Oficiais Milicianos e incorporado no Contingente Geral. Era um sério candidato à classificação de «básico». Serôdio sofreu imenso com aquela humilhação, mas cerrando os dentes e os punhos, seguiu em frente. Três meses volvidos foi com muita tristeza que viu os seus antigos colegas do C.O.M serem promovidos a aspirantes, enquanto ele não passava de um soldado raso. Decidiu lutar afincadamente contra a sua inferioridade. Teria de ser capaz de reter na memória aquilo que lia.
O tempo avançou e naquele fim de semana, próximo do Natal de 1981, Serôdio ultrapassara os seus recalcamentos. Mais alguns meses e a tropa pertenceria ao passado. Havia que pensar no futuro e Serôdio já tinha tomado uma resolução. Nesse fim de semana iria comunicá-la aos pais...(em continuação, pág. 66, ex. XXI)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

SANTO AMARO EM ALFEIZERÃO

Por esse Portugal fora devem algumas centenas as festas populares, que pululam montes e vales, sendo a grande maioria de cariz religioso. E quem gosta da tradição, ainda se vai deliciando com a preservação de hábitos antigos, muito embora seja cada vez menos o povo que ainda responde á chamada da fé.


Alfeizerão, essa bonita e deliciosa vila do concelho de Alcobaça, no coração do Oeste português, portas meias com o Ribatejo, a que um dia já chamei de Moura do Ocidente, não foge á regra. E é em Janeiro, tendo o frio agreste como companheiro, que se celebra a festa em honra de Santo Amaro. São nove novenas que se celebram na capelinha dedicada ao Santo, que têm lugar durante nove dias antes do dia 14 de cada Janeiro. Depois, no Largo de Santo Amaro, o povo acorre ao pinhão e á quermesse, ao frango na brasa e á boa febra, aguardando pela enorme fogueira que todos os anos se faz junto ao coreto, que vai iluminar e aquecer os corações de todos os que, nestas festividades, sentem algo de muito bom e reconfortante. Há trezentos e muitos anos que é assim.

Depois, faça chuva ou sol, tem lugar a obrigatória procissão de veneração ao Santo Padroeiro pelas principais ruas da vila.

Foram apenas nove anos de vivência diária em Alfeizerão. Mas preencheram-me para toda a vida. E todos os anos, em Janeiro, mesmo estando longe, recordo que o Santo Amaro está a descer ás ruas da terra do Pão de Ló, essa nobre Alfeizerão, fundada pelos árabes no séc. VIII.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

OLHOS DO ESPIRITO


...Serôdio voltou a ficar só. A conversa que tivera com a mãe revelara-lhe que deveria ter muita precaução. Não podia falar da sua experiência a ninguém. Se a sua mãe reagira assim, o que não poderia acontecer com as outras pessoas!! Corria o risco de cair no ridículo. Se ele apregoasse aos quatro ventos que visitara o mundo dos mortos, ninguém lhe daria crédito. Talvez pensassem que o estado de coma de que fora vítima, lhe tinha transtornado o cérebro. A experiência porque passara era só sua, não havia razão para ter vontade de a dar a conhecer às outras pessoas. Pensando bem, deveria ser difícil aceitar uma outra existência que não a terrena. Afinal, ele próprio nunca perdera tempo a pensar no seu próprio eu. Era o Serôdio e isso tinha-lhe bastado até lhe surgir a senhora de branco. Ele sabia da existência do mundo espiritual, porque no fundo era um privilegiado. Muitos homens e mulheres, por muitos anos que tenham vivido, nunca tiveram a felicidade de passar pelas sensações que ele havia passado. Como podiam então eles saber que a vida não se resume à acumulação de bens materiais? Como podiam eles saber que a vida è essencialmente sabermos dar e receber, entender verdadeiramente a palavra amor, saber olhar o nosso semelhante com os olhos do espirito? Ele próprio percebera-o através de uma dádiva. Haveria nisso grande mérito? Quantas pessoas não existiriam no mundo, que de uma forma empírica praticavam o bem, pessoas que com certeza teriam um olhar meigo, transmitiam paz e bondade. E ele lembrava-se de que já estivera na presença de algumas pessoas assim.
Acima de tudo, ele necessitava de ser uma boa pessoa. Esse era o caminho do Criador, essa era uma das partes que compunha a valorosa mensagem que lhe haviam transmitido. Ele era muito mais complexo do que alguma vez havia imaginado.
E toda aquela reflexão sobre si próprio servira como uma espécie de bálsamo para atenuar as preocupações que o atormentavam.
Abriu a janela e apreciou a ambiência. Agora a Viela da Fonte dos Amores não lhe parecia tão lúgubre e enfadonha...(em continuação, pág. 63- ex. XX)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003