sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O NINDA

...Ao longe avistava-se o verde denso da floresta equatorial. Naquela imensa clareira, onde o maciço arvoredo fora rasgado, estava situado o aquartelamento do Ninda. Camaratas feitas de madeira perfilavam-se longitudinalmente sobre quatro linhas imaginárias, formando um rectângulo com as dimensões de um campo de futebol. No lado interior das camaratas estendia-se a parada, onde os militares faziam as suas formaturas diárias. No lado exterior era a vastidão de Angola, a área onde o perigo espreitava a qualquer momento, onde uma mira traiçoeira podia apontar a qualquer um. A cerca de cinquenta metros das camaratas existia uma vala que circundava todo o aquartelamento, com um metro e meio de profundidade por dois metros de largura. Tinha aquela vala por objectivo dificultar o acesso ao aquartelamento. Acompanhando toda a linha interior da vala, era visível a arrepiante vedação defensiva em arame farpado. Para reforçar a defesa, em toda a volta do aquartelamento rectangular, foram construídos seis abrigos, feitos de tábuas e argamassa, envoltos com pilhas de sacos de areia. No interior de cada abrigo posicionava-se uma sentinela, que permanentemente vigiava a exuberante floresta. De um desses abrigos, numa noite, partira um alerta. Uma rajada de metralhadora avisara toda a companhia ali aquartelada que do lado de fora existia perigo.
Fora uma bela noite de luar. Um soldado, que acabara de sonhar com um beijo macio e ardente da sua distante namorada, percepção essa trazida por aquela lua brilhante, desassossegadora do coração dos homens, viu subitamente alguns vultos mancharem a luz azulada do luar. Firmou bem a visão e a audição. Sentindo que havia movimento a aproximar-se da vala, não hesitou. A sua G3 cuspiu fogo e anunciou a chegada dos «turras» , o inimigo, o «in». De imediato a noite no exterior do arame farpado se encheu de inúmeros pontos vermelhos de fogo. As Kalachnikov terroristas disparavam .
Por entre vozes de comando e berros de surpresa e aflição, a companhia corria pela parada térrea, aparentemente atarantada. Mas a defesa estava montada e pré concebida. Apenas no Ninda haviam explodido duas granadas, lançadas pelas bazucas inimigas, e já a companhia dava a sua resposta. Muitos « very-lights » foram lançados. Iluminando na sua queda lenta de pára-quedas toda a área envolvente do aquartelamento, as luzes da noite afugentaram os inimigos para mais longe, para a protecção da floresta. Mas o ataque continuou, pois as armas soviéticas do «in» tinham um longo alcance. Balas e granadas fustigaram o Ninda por um período que aos soldados portugueses pareceu eterno. Rastejando, colados ao chão, oprimidos pela humidade e o calor, tentavam ser imunes ao fogo terrorista, ao mesmo tempo que tentavam o mais possível serem dissuasivos. Depois, a calma regressara. As balas deixaram de zumbir e assobiar. As granadas pararam de espalhar o seu enxame mortífero. Lentamente a companhia recompunha-se do ataque. O soldado que sonhara com a namorada, mantinha-se deitado, espreitando pela pequenina abertura do abrigo, protegido pelos sacos de areia. No meio da sua história de amor, fora acordado, quem sabe, se por alguma farpa do deus Marte, e tivera tempo e discernimento para dar o alerta. Sabia agora que tudo na vida tinha o seu espaço e o seu tempo. Ali, no seio daquela floresta bela, luxuriante, fervilhante de vida, mas também inóspita, traiçoeira, perigosa e letal, não havia lugar para o amor, porque o amor è doçura, carinho, suavidade, vida. E ali era a guerra. E na guerra só existe brutalidade, bestialidade, e o perigo sempre eminente de perder a vida e ganhar a morte. Como escaldava o cano da G3 daquele jovem soldado...(em continuação- pág. 54, ex. IX)

in VISITADOS

Novembro/1999

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ENTRADA PARA O DESCONHECIDO



- ... Quando eu e a minha mulher regressámos a casa, apenas encontrámos o nosso filho. A Catarina já se tinha ido embora. Ele estava possuído por uma angústia profunda.
- Sei bem o quanto essa angústia doeu senhor Victor. Disse o senhor que essa confraternização se passou três dias antes do embarque para Angola. Eu embarquei para África no mesmo dia e no mesmo navio que levou o Álvaro. Portanto, três dias antes, nesse mesmo dia, o meu estado de espírito era muito idêntico ao do seu filho. Sentíamos a nossa vida parar. Já no porto de Lisboa, quanta amargura não inundou aquelas pedras, amargura encerrada em cada lágrima que ali foi derramada pelas milhares de pessoas que ali afluíram. Choravam, os que partiam e os que ficavam. Que sensação estranha e vazia foi aquela que sentimos, quando o porto de embarque se vestiu de um branco ondulante, o branco dos lenços com que nos acenavam. Para muitos um último adeus. Para todos a fervorosa esperança no regresso. Ao entrarmos naquele imenso navio, o Vera Cruz, foi como se entrássemos por uma porta que ocultava o desconhecido. Entrámos num espaço sem horas nem dias. Ali não havia passado nem futuro. E o presente que vivíamos não era nosso. Era um presente emprestado, pois o nosso presente ficara aqui. Por essa razão a nossa vida parara. Éramos muitas centenas que ali estavam, sulcando as ondas de um Atlântico cada vez mais desconhecido...


... E em cerca de quinze dias o Vera Cruz transpôs a distância entre Lisboa e Luanda.
Bravos Lusitanos. Que destino o vosso. Fostes o apêndice mais avançado da história. Não tivessem os Portugueses de Quinhentos sonhado com um império, não estaríeis vós agora a chegar a Luanda.
De vermelho lusitano se tingiu muita da história sangrenta de África. Não deixeis, vós, bravos lusitanos, que Alcácer-Quibir faça parte das vossas vidas, porque há muito sol para ver, muito luar para apreciar, muito amor para amar, muitos filhos para nascerem, muito para dar a Portugal, muitos dias para se viver português.
Só Portugal é nosso...(em continuação- pág. 51- ex. XVIII)

in VISITADOS

Novembro/1999

domingo, 24 de janeiro de 2010

SOLIDÃO SALGADA


Nesta solidão salgada
Que me purifica a alma
Busco o equilíbrio do meu ser
Que me transmita calma.

Este mar que me abençoa
Tão velho, mas sempre igual
É um pregão que apregoa
A alma do meu Portugal.

Deste Portugal sem idade
Tendo o mar por companheiro
Nasceu a palavra saudade
Tesouro de um povo altaneiro.

Dos negros penedos onde me sento
Olho a imensidão da história
Ouço segredos do vento
Orgulhos da nossa memória.

O ser lusitano me preenche
Numa vela ao vento enfunada
Em mim, um marinheiro que
O meu coração sente
Nesta solidão salgada

06/01/2010

Ao JSimão, que me corre nas veias, o meu obrigado por este momento de sal.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

UM COMPADRE OLEIRO

...Américo Afonso encontrava-se sozinho na sala de jantar da Casa das Leis. Pedira aos pais para comparecerem ali, pois precisava de ter uma conversa com eles. Enquanto aguardava a sua chegada, memorizava as palavras e o modo que concebera para lhes transmitir o que pretendia. Era assunto sério e delicado. Américo estava nervoso, mas também determinado a levar por diante as suas intenções.
- Então que temos, menino?- perguntou D. Vitoriana com o seu ar bem disposto, arrancando Américo às suas reflexões.
- Enfim chegaram - disse Américo.
- Pareces estar um pouco agitado - observou o Doutor Sebastião.
- Sim, é verdade meu pai. Não o posso negar. Estou um pouco nervoso.
- Então o caso é mais sério do que eu supunha - disse D. Vitoriana.
- Sim, o caso é sério porque se trata da minha vida e a de mais alguém - respondeu Américo.
- Não me digas que o assunto é “rabo de saias” - disse o pai de Américo.
- Pois é isso mesmo. Eu quero-me casar...
- Mas filho, isso é uma notícia extraordinária - disse D. Vitoriana - ao tempo que eu esperava por essas palavras...
- Com a Luísa Avilar - disse Américo.
- Luísa Avilar? Eu já ouvi este nome. Quem é? - perguntou o Doutor Sebastião a uma estupefacta D. Vitoriana.
- Tu queres casar com a nossa criada? - perguntou a mãe de Américo.
- Minha mãe, onde está a sua alegria? - perguntou Américo receosamente.
- Eu estou a entender bem? - perguntou o pai de Américo - tu queres casar com a criada cá de casa?
- Quero. O meu pai vê problema nisso?
- Se vejo problemas? Andaste a estudar em Coimbra para casares com uma criada?
- Não meu pai. Andei a estudar em Coimbra para me formar em direito. O seu raciocínio não é lógico.
- Não é lógico? Um prestigiado advogado como eu, ser sogro de uma criada... bonito o caso!
- Meu pai, eu caso-me para o fazer feliz ou para ser eu feliz?
- Mas que pergunta é essa meu filho? É óbvio que eu só pretendo o melhor para ti. E é por isso que estou estupefacto. Para mim, uma noiva tem de ser uma donzela. E a Luísa, como mãe de dois filhos, já não pode aspirar a ser donzela. Isso não te entristece?
- Meu pai, por vezes numa donzela pode-se esconder uma mulher reles. Vi muito disso nos anos que passei em Coimbra. A Luísa não é propriamente uma carta fechada. Já deu provas do que vale. Além de bela, é uma verdadeira mulher. Que melhor posso eu pretender?
- Das tuas palavras posso depreender então que a opinião do teu pai não conta!
- O meu pai merece-me todo o respeito - disse Américo - mas não vivemos propriamente na Idade Média. Eu caso-me somente com a mulher que eu sinto que me fará feliz. E aí só o meu sentimento manda.
- Mas filho, o casamento é a projecção da nossa posição social - disse o Doutor Sebastião.
- Um casamento feliz é a projecção da nossa posição social, meu pai. Com a Luísa Avilar a meu lado, toda a vida se me abre em esperançosas perspectivas. Sem ela não tenho alento para coisa alguma. Não era a minha felicidade que os meus pais almejavam?
- Ora uma destas! - dizia o pai de Américo.
- Então Sebastião, vamos ser compreensivos - disse D. Vitoriana.
- Tu também?! - retorquiu o Doutor Sebastião.
- Eu quero o bem e a felicidade do nosso filho. E mais a mais, a Luísa Avilar é uma boa rapariga. É trabalhadora, honesta...
- É a mulher perfeita minha mãe - disse Américo - ou ela ou nenhuma. E como eu não abdico da sua companhia, será com ela que me vou casar. Os dotes e as riquezas, ela oferecermos-à com a abundância de bons sentimentos que possui.
- A tua decisão é então irreversível? - perguntou o Doutor Sebastião.
- Não pode ser de outra maneira meu pai. Além do mais sou um homem de honra.
- Isso quer dizer o quê? - perguntou o pai de Américo.
- Quer dizer que os meus pais, brevemente, vão ser avós. Por isso resolvi conversar convosco mais depressa do que desejava.
- A Luísa está grávida? - perguntou D. Vitoriana.
- Assim é, minha mãe.
- Então o caso já vai adiantado - disse o Doutor Sebastião.
- Por isso mesmo, meu pai, pelo tempo que já tive para poder ajuizar, estou tão certo das minhas convicções.
- Que podemos nós fazer Vitoriana? É o nosso único filho. Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé. Que venha o meu compadre oleiro, por amor do meu filho.
- Meu pai, a diferença entre esta casa e a casa de Luísa, é que aqui há mais dinheiro do que lá. Aqui existem livros e lá não. Mas tal como aqui, lá reside a dignidade, a educação e o respeito pelo seu semelhante. Meu pai, como mulher eu não encontraria melhor do que a Luísa por essas famílias abastadas que para aí vivem.
- Está bem meu filho. Convenceste-me. A inesperada notícia de que vou ser avô tirou força a todos os meus argumentos. Que dizes Vitoriana?
- A Luísa não é uma estranha para mim. Se ela representa a felicidade do meu filho, é com carinho que a recebo como mãe do meu neto. Uma boa dona de casa ela será. Boa mãe já o é. Que seja bem vinda.
Que pais maravilhosos Américo Afonso tinha. A natural oposição à ideia de terem Luísa Avilar como nora, depressa se desvaneceu perante a inabalável determinação de Américo. Era o dia 10 de Agosto de 1922. Américo saiu de casa em busca de Luísa. Encheu o peito com o ar do meio-dia. O sol estava escaldante. Magnífica luz a do sol, que quase torna transparentes as almas boas que se encontram felizes...(em continuação- pág. 84, ex. XXVII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Á DESVENTURA LADRAM OS CÃES

...Percorrendo a distância despovoada que ia do Alto da Estrada à herdade, chegou o caminhante ao solar. Quatro torres erguidas aos céus davam-lhe uma aparência de fortaleza. Ao lhe perpassar este pensamento pela mente, ficou imóvel. Olhou fixamente a casa senhorial. Era decerto uma fortaleza bastante vulnerável. À visão do solar, o seu rosto escurecido pela barba espessa e negra, endurecera. O sangue corria-lhe forte nas veias, agitando os seus sentimentos. Que segredos em comum existiriam entre o solar e o caminhante?
Com a sua aparição dois cães começaram a ladrar furiosamente, pelo que surgiu um homem a averiguar a causa da agitação. Era o verruga. Detectando a presença do estranho, de imediato se dirigiu a ele ameaçadoramente, dizendo:
- Que queres daqui farrapeiro?
- Procuro trabalho - disse o caminhante sem denunciar medo - quero falar com o senhor Barreto Raposo.
- O “nhor” Barreto Raposo tem muitos cuidados para estar a perder tempo contigo. “Desparece” daqui antes que eu te empurre.
- Empurrar alto lá - respondeu o caminhante - só quero pedir trabalho. Não estou a ofender ninguém.
- Estás-me a ofender a mim, que já te disse para ires embora e “inda” aqui estás.
- Ainda não fiz ao que vim. Se o senhor Barreto Raposo não está, voltarei cá noutro dia.
- Não vai ser preciso - disse o fivelas que estando dentro do solar, ao som da discussão veio ver o que se passava - se è para pedires esmola já cá não devias estar.
O caminhante olhou para aquele homenzarrão que acabara de surgir.
- O senhor é que é o dono da herdade?
- Eu mesmo. Que queres?
- Venho pedir trabalho.
- Que sabes tu fazer? - perguntou o fivelas.
- Faço todos os trabalhos da lavoura.
- Bom, um par de braços nunca é demais. Se eu não gostar do que fazes vais embora. Como te chamas?
- Já me chamaram tanta coisa, que já esqueci o meu nome.
- Não me digas que vieste da mesma terra aqui do verruga e do meu outro empregado, o mouro, a terra onde não põem nomes aos homens.
- Não posso afiançar isso ao senhor Barreto Raposo, porque também já esqueci a terra onde nasci. Ando sozinho neste mundo. Preciso de trabalho para poder comer uma côdea de pão.
- Se queres comer essa côdea tens de mostrar o que vales. Vai para aquele casario ali mais abaixo e procura lá um buraco para ficares. Lá moram os jornaleiros da minha herdade. Mas ouve Zé Ninguém, nada de graças nas minhas terras. O mouro e o verruga conhecem algumas habilidades que não são muito do gosto daqueles que me desagradam. Percebes?
- Pode o senhor Barreto Raposo ficar descansado, que este seu criado apenas se vai preocupar em o servir bem.
- Pois que assim seja Zé Ninguém. Pergunta por lá onde fica o pasto sul. Quero-te lá ao romper do dia. Alguém te há-de dizer o que deves fazer.
- Muito agradecido fico senhor Barreto Raposo. Com sua licença cá vou.
E o caminhante dirigiu-se para o casario, doendo-lhe a mão direita da força com que apertara o bordão. Aquele diálogo extenuara-o. Era humilde mas não ignorante. Sabia perfeitamente quando era tratado sem o mínimo de respeito. “Zé Ninguém” chamara-lhe o outro. E não se enganava. Perdera tudo na vida. Mas a dignidade, essa havia de a recuperar. Não podia morrer sem ser de novo um homem honrado.
Apreciando a paisagem, o caminhante chegou ao casario. Três porcos foçavam num charco. Um cão ladrava à sua passagem. Muito ladram os cães aos desventurados da vida! Uma mulher surgiu à porta de uma das casas. Ficou com ar assustado ao vê-lo. Toda ela estava coberta de preto.
- Procura alguém? - perguntou a mulher.
- Sou um novo jornaleiro cá da herdade. Procuro um sítio para ficar.
- Vá à seara, para o lado daqueles carvalhos. Lá encontrará alguns homens. Fale com o meu marido, o Daniel Matias, que ele há-de ajudá-lo.
- Obrigado santinha. Que Deus a guarde.
E o caminhante seguiu pela direcção que Lucinda, pois era dela que se tratava, lhe indicou...(em continuação- pág. 80, ex. XXVI)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

domingo, 17 de janeiro de 2010

MÚSICA DE UMA VIDA- VIENS, VIENS



1973- vivendo sofregamente os meus 17 anos, ainda calcorreando Coimbra, me apaixonei por esta Viens, Viens, de Marie Laforet.
Não a ouvia há 37 anos. Continua bela!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

DUAS BALADAS TRISTES: ROSSILHÃO E OLIVENÇA

...Portugal, o país a que pertence o meu grupo espiritual, começou por ser constituído por gente de rija tempera, desde o mais humilde servo ao mais ilustre senhor. E todos estavam impregnados de um forte sentimento nacional, defensores acérrimos da terra que era a sua, como o comprova a história.
Descoberto meio mundo por este pequeno país ibérico, que é o nosso Portugal, em que a sua força não residia no território (que é actualmente tão grande como o era nesse tempo de enorme reputação internacional), mas antes na vontade férrea de vencer das suas gentes, e no formidável espírito empreendedor dos seus governantes, subitamente algo aconteceu que nos foi tornando lentos de raciocínio, nada crentes nas nossas potencialidades como povo, transformando-nos tão pequenos como pequeno é o país. E essa infeliz mutação, uma vez mais no meu sempre questionável ponto de vista, deu-se na infeliz campanha de Álcacer-Quibir, no reinado de D. Sebastião. O país foi de tal forma ferido, que ainda hoje, passados que são quatrocentos e vinte e oito anos, se fala, mesmo que por graça seja, que se aguarda que D. Sebastião regresse numa manhã de nevoeiro, para trazer a esperança ao país.
O povo nunca mais foi o mesmo. As inteligências governativas tornaram-se muito pouco perspicazes, más gestoras do universo português. E fomos decaindo, decaindo. De grande potência no mundo, passámos a país mundialmente ignorado. Este meu pequeno devaneio acontece na relação directa das minhas recordações, enquanto português que fui, na minha última vivência carnal.
Em resultado da execução do rei francês Luís XVI, a coroa espanhola escandalizou-se com esse acto de barbárie, pelo que resolveu afrouxar os ânimos aos revoltosos franceses. Para tal convenceu a coroa portuguesa a embarcar nessa aventura, pelo que a rainha D. Maria I, já então não muito senhora das suas faculdades mentais, mandou um grupo expedicionário, que incorporado no exército espanhol, foi combater o exército revoltoso francês, na que ficou chamada « a campanha de Rossilhão», que teve lugar no ano de 1794. Foi uma completa vitória para o exército francês, derrota total para Portugal e Espanha. Dado o mérito dos políticos portugueses daquela época, que não entendo como o não perceberam, Espanha, depois da derrota, negociou a paz com a França, mas a França não quis ficar em paz com Portugal, ou se ficasse, seria na condição de Portugal fechar os seus portos aos navios ingleses, que por seu turno andavam em guerra com França. Não esqueçamos que por essa época os Estados Unidos haviam alcançado a sua independência da coroa britânica, com o auxílio da França. Que França nos teria feito frente no tempo dos reis D. Afonso Henriques, D. João I, D. João II ou D. Manuel I?
Portugal, pequeno que era, pequenino ficou. A França e a Espanha agigantaram-se e nós… mediocridade das mediocridades, perdemos a cidade de Olivença para os Espanhóis, na que ficou chamada e inofensiva «guerra das laranjas», ainda em resultado da nova aliança franco-espanhola, não tendo sido sequer levado em conta o facto de o príncipe D. João, herdeiro do trono de Portugal, estar casado com a infanta Carlota Joaquina, filha dos reis de Espanha.
Portugal terminava mal o século Dezoito e começaria pior ainda o século Dezanove.
A diplomacia portuguesa caiu numa inércia constrangedora, apesar dos políticos portugueses pressentirem o que aí vinha. E veio!
A esta distância temporal de todos esses acontecimentos, revela-nos a história quão fracos foram os nossos políticos e diplomatas do início do século XIX. Enquanto se faziam convenções entre Portugal e França, que iludiam os portugueses na falsa certeza de que esses acordos de paz eram para ser cumpridos, a França, conjuntamente com Espanha, arquitectava o plano de invasão de Portugal. Não tínhamos qualquer crédito. Apenas um mérito nos pode ser reconhecido: o de não termos cedido ás exigências do governo francês, de fecharmos os nossos portos aos navios britânicos e de não termos confiscado os bens aos súbditos ingleses residentes em Portugal. O nosso país soube ser leal à sua antiga aliança com a coroa inglesa. Nesse particular, Portugal foi bem português. A Inglaterra, pressentindo o que se preparava, em 1806 enviou uma esquadra a Portugal para negociar a forma como iria decorrer o apoio militar e politico ao nosso país, num provável confronto contra a França. Nessa época eu era ainda uma frágil criança. Não tinha consciência do terror que estava prestes a abater-se sobre o meu reino; e o povo também o não sabia.
Um general francês que dois anos antes estivera em Portugal desempenhando o cargo de embaixador francês, o general Junot, rebentando pelas costuras de cinismo e hipocrisia, invadiu Portugal em 1807 à frente de um poderoso exército. Através de um tratado que se realizara pouco tempo antes, em Fontainebleau, a terra lusa tinha o seu destino traçado: ser dividida em três partes - uma a ser oferecida ao rei da Etrúria, outra parte para a coroa espanhola e a terceira parte para ficar em poder do grande Napoleão, chefe supremo da França do início do século XIX.
Quantos sacrifícios passaste, Afonso Henriques, para conseguires fazer do Condado Portucalense um país, um reino orgulhoso de si, do povo que o constituía, que veio a criar páginas belas de relatos heróicos, onde, do orgulho nacional sobressaiam nomes como Egas Moniz, D. Nuno Álvares Pereira O Condestável, D. João I, D. João II, D. Manuel I, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Luís Vaz de Camões… próximos estavam os tempos em que iria ser necessário recordarmos os grandes acontecimentos da nossa história, como a batalha de S. Mamede, a batalha de Aljubarrota ou a revolução de 1640, e neles obtermos o alento necessário para fazermos frente à ignomínia que aí vinha, porque caso contrário, Afonso Henriques, o teu sonho de fazer deste pequeno território ibérico um país livre, ir-se-ia esfumar ao fim de seiscentos e sessenta e quatro anos...(em continuação- pág. 6- ex. II)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

próxima edição estimada para finais de Março/2010

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

ECOS DE GUERRA

Do lugar em que me encontro, ao qual os homens não têm acesso, recordo a última vez que passei por esse mundo de verdadeiro purgatório, em que os espíritos que nele existem lutam e trabalham pela sua ascensão, sem disso terem consciência. Acredito que para muitos, melhor dizendo, para imensos, muito estranho significado terá o teor destas palavras; talvez mesmo não tenham elas qualquer significado. Mas não é para agradar aos homens que as escrevo. Este é o caminho que encontrei para melhor me compreender, reflectindo sobre esse percurso e mais me aproximar de Deus. Não sei se , efectivamente, Deus encontrará em mim uma maior elevação pelo facto de as ter escrito, mas impelido a fazê-lo pelo meu «eu superior», apenas me resta escrever, ou melhor dizendo, ditar para que alguém escreva por mim, convicto de que, ao fazê-lo, estou no caminho certo, percorrendo a estrada que Deus traçou.
Aqui onde me encontro, aos interesses mundanos não é dado qualquer valor. No entanto, como não é de mim, na actualidade, que estou a escrever, mas antes de quem fui na última vez que por aí passei, terei obrigatoriamente de falar dos interesses que aos homens dizem respeito.
Nunca fui grande político; aliás, não fui político de qualquer espécie. Mas a política, que é a actividade humana mais abominável para o vulgar cidadão, deste tempo e de todas as eras, é também ela que lhe determina a vida, que interfere profundamente na existência de todos os homens, quer eles queiram quer não queiram. Por isso a política é abominável! Má, hedionda, cruel, porque foi criada por mentes perversas, talvez quando os homens deixaram de ser nómadas. O mundo inteiro era a sua casa. A partir do momento em que se sedentarizaram, fizeram da sua casa um espaço muito mais exíguo, obrigando-se a viver uma existência com muito mais regras. Os mais inteligentes, porventura, tiveram então a oportunidade de se superiorizarem aos mais modestos de intelecto. E assim terão nascido os primeiros líderes, que se rodearam dos que lhes eram mais próximos, relegando para segundo e terceiro planos os restantes. Os rejeitados, vendo que a vida lhes iria ser mais difícil no interior dos grupos, arquitectaram planos de alianças com aqueles que os líderes protegiam, promovendo a intriga e a suspeita, numa tentativa desesperada de se tornarem mais fortes, no intuito de derrubarem os líderes e virem a ser eles os donos de uma vida mais rica, mais divertida e muito mais fácil. Esta, no meu sempre questionável ponto de vista, terá sido a forma como nasceu a política.
Como disse, nunca fiz política, muito longe estive dos grandes centros onde ela decorria cínica, falsa, perigosa, até assassina. Mas em mim senti bem os seus efeitos. E nesta malha, qualquer um de nós, embora não seja político, pratica a política todos os dias, pois ela nasce-nos debaixo dos pés.
Nasci em Portugal, há duzentos e seis anos, no ano de 1800. Muito má época para um homem nascer. O meu pai, um lavrador abastado, tinha uma pequena quinta, muito próxima da Mealhada, quinta essa conhecida na zona como «Malhal de Sula».
O bom povo da Mealhada não o sabia, mas no ano em que nasci haviam passado onze anos sobre um acontecimento, ocorrido muito longe, que iria determinar uma mudança profunda no viver das gentes da Europa - falo da Revolução Francesa, A Tomada da Bastilha, que teve lugar no dia 5 de Setembro de 1789. No seguimento dessa revolução, o rei francês Luís XVI foi executado na guilhotina, no ano de 1793, o que provocou um choque terrível em todas as cortes europeias, incluindo no reino de Portugal, onde foi decretado quinze dias de luto nacional pela morte do rei de França. Acho que na Mealhada o povo não andou de luto pela morte daquele rei, pois tal não lhe chegou ao conhecimento; pelo menos o meu pai não se recordava de ter andado de luto pelo falecimento desse monarca, de quem ele nunca ouvira falar. Mas das consequências dessa morte já o meu pai se lembrava bem, pois sentiu-as na carne...(em continuação, pág. 3- ex. I)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

CORRECTO E AFIRMATIVO

Nos últimos dias de 2009 estive num pequeno lugar, encarrapitado no cume de um monte, chamado Antas, ás portas das Caldas da Rainha. Ali travei conhecimento com um senhor simpático,chamado Manuel Bento. O senhor Manuel Bento, homem baixinho, um típico português do antigamente, que faz de tudo um pouco, uma espécie de homem dos sete ofícios, que também trata caprichosa e carinhosamente a sua horta e lavra o seu pedaço de chão, onde se inclui a verdejante vinha, anda aí pelos sessenta e tal. Em dia frio, com o natal a despontar, a lareira crepitava deliciosamente, e pelo meio de dois dedos de conversa, a saborear a doçura tradicional e nostálgica da velhoz e do belharaco, lá se bebeu um copo da bela pinga palheta que o meu anfitrião orgulhosamente me ofereceu, saída ainda de pipa de madeira, com sabor a Portugal invernoso.
Durante a conversa que mantivemos, o senhor Manuel Bento, de quando em vez, usava a expressão «correcto e afirmativo». Aquilo soava-me a linguagem militar. Com vontade de lhe perguntar porque razão repetia tantas vezes a expressão, mas sem o fazer, obviamente, como que me lendo a mente, o senhor Manuel Bento explicou-me que se habituara a usá-la. Durante dois anos servira-lhe como código. Como código? Sim, um código pelo qual se ficava a saber que uma coisa tinha sido bem compreendida, explicou-me ele. E onde fora usado essa código? Angola, entre 1967 e 1969. E depois afeiçoara-se ao código, que o começou a usar no seu dia-a-dia. Já lá vão 41 anos!
O encontro com o senhor Manuel Bento fez-me reflectir. Quem diria, quem adivinharia que na figura daquele homem de aspecto frágil repousa um guerrilheiro português?
Este encontro, caso o não soubesse, provou-me que por aí, por esse Portugal, no mais recôndito lugar, podemos dar de caras com um desses heróis, envergando a roupagem de um simples agricultor.
Neste preciso momento, na faixa etária compreendida entre os 56 e os 70 anos, vive a juventude que entre 1961 e 1974 não teve direito a ser jovem. São os milhares de soldados, que na guerra do ultramar aprenderam a ser homens. Foram para África quase meninos e de lá vieram martirizados veteranos. São as milhares de namoradas e esposas desses soldados, que durante anos enviaram mensagens de esperança e de amor nos aerogramas- os «bate-estradas» na gíria militar, e rezavam preces em sufocos de alma, muitas preces... são as milhares de viúvas cujas preces não foram ouvidas.
Mas nós, 35 anos depois, não pensamos nestas coisas. A guerra do ultramar, a guerra colonial, como agora se lhe chama, pois proferir a palavra «ultramar» é quase uma heresia, é apenas história. Mas não é! Ainda vive, pois que os seus protagonistas ainda são gente.
Gente desiludida por certo, por sentir que no país que amam, e pelo qual tanto sofreram, não existe por eles o menor apego, a menor consideração, a mais singela homenagem.
Ao senhor Manuel Bento e aos muitos milhares, como ele, portugueses como eu, que em Angola, Moçambique e Guiné ofereceram a juventude e a vida a todos nós, eu presto a minha enorme e emocionada homenagem.
A sociedade portuguesa tem uma abissal divida para com os combatentes do ultramar.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

MASAHEMBA- O SUMO SACERDOTE


...Aquele era o templo com maior expressão de todo o Egipto. E só a ele era dada a possibilidade de entrar na casa do deus supremo, Amon-Rá; claro está que não se podia contar com o Sumo-Sacerdote, nem com as sacerdotisas, pois esses eram parte integrante do templo.
A liteira parou. O cortejo real chegara mesmo junto ao pórtico. Escravos colocaram-se de cócoras, servindo de degraus, para que o divino rei pudesse sair da liteira comodamente. Alguns escravos, que previamente se haviam colocado junto ao colossal pórtico, munidos de compridas trombetas, vendo chegar o cortejo real, haviam tocado os seus instrumentos, pelo que, à chegada do faraó, já o Sumo-Sacerdote abrira as enormes portas, de par em par, no que foi ajudado pelos escravos, que para fazerem tal tarefa, teve o Sumo-Sacerdote de lhes vendar os olhos, para que olhares ímpios não tornassem impuro o purificado ambiente do templo.
O faraó, nas duas ou três vezes que acompanhara o pai ao templo, já vira aquele Sumo-Sacerdote. Era pois aquele o tal Masahemba, protegido de Amon-Rá. Era um homem bastante jovem, não ultrapassando as setenta e cinco estações. Era alto. Não utilizava qualquer tipo de adorno no corpo. Como vestes envergava apenas uma peça de linho puro, que lhe estava cingido à cintura, caindo até aos pés, surgindo de tronco completamente nu. Notava-se que nas veias lhe corria sangue de preto e de branco. Desde a cabeça aos pés, não tinha o Sumo-Sacerdote um único cabelo. A pele brilhava-lhe. O Sumo-Sacerdote untara-se de óleos purificantes. Convinha fazê-lo, pois recebia o faraó.
Amenhotep, O Quarto, avançou em direcção ao Sumo-Sacerdote. Conforme caminhava, via os súbditos ajoelharem-se e encostarem a testa ao chão. Não seria de boa conduta olhar o faraó de cabeça levantada.
Chegado o faraó junto do Sumo-Sacerdote, este ajoelhou-se e beijou os pés do seu rei. Era-lhe permitido tocar o faraó, na condição de sacerdote de Amon-Rá. O Sumo-Sacerdote só se ergueu quando recebeu a ordem do faraó para o fazer.
- Como te chamas?- perguntou o faraó ao Sumo-Sacerdote, como se não soubesse a resposta.
- Masahemba, divino senhor- respondeu o Sumo-Sacerdote, com um sorriso, observando o rosto do faraó.
- Como te atreves a olhar-me nos olhos ?- perguntou o faraó, com expressão de desagrado.
- Tu és jovem, meu divino senhor. Decerto que ainda não tiveste tempo de te informares sobre o que me é permitido fazer. Mas eu digo-te: sou um homem, mas não um simples homem. Estou um degrau acima da condição humilde de qualquer homem, em relação a ti, pois tenho a capacidade de me comunicar com Amon-Rá. A tua veneração ao magnânimo deus Sol, a ele chegará, mas terá de ser obrigatoriamente através de mim. Por essa razão ganhei o direito de te poder olhar nos olhos.
- És então uma espécie de deus !
- Não, divino senhor. O meu ser, por mais radioso que seja, não conseguiria aniquilar a sombra do mais humilde dos deuses. Sou apenas um homem a quem Amon-Rá dá ouvidos.
- És influente ?
- Não, divino senhor. Nem tu, feito de realeza, podes ter influência sobre as decisões divinas, quanto mais eu, um humilde servo.
- Acho-te arrogante, Masahemba. Não simpatizo contigo.
- Entristecem-me as tuas palavras, divino senhor. Eu estou aqui para te servir.
- Já que aqui estás para me servires, eu quero que tu substituas um dos meus escravos no transporte da minha liteira.
- Não o posso fazer, divino senhor. As minhas funções de teu servo, baseiam-se exclusivamente na tua devoção a Amon. Fora disso não te poderei servir.
- E se eu te obrigar ?
- Eu fá-lo-ei… mas talvez tenhas algumas explicações a dar a Amon-Rá.
- Eu estava a brincar contigo- disse o faraó com um sorriso.
- Ainda bem, divino senhor. Quando quiseres entrar no templo…está sempre tudo preparado para o teu tributo a Amon.
E ambos se internaram pelas sombras do templo. O Sumo Sacerdote guiou o faraó até a um enorme salão, onde as paredes estavam juncadas de pinturas que referiam a junção do Alto e do Baixo Egiptos. Ali, o faraó foi deixado sozinho, para que pudesse entrar num período de reflexão, e assim, espiritualmente, se aproximar do deus Amon-Rá.
Por seu turno, o Sumo Sacerdote Masahemba dirigiu-se a um tanque sagrado, no qual, por intermédio de canais, a água entrava, vinda directamente do rio Nilo.
Depois de descer uma pequena escadaria, tocou com os pés a água. Fechou os olhos e submergiu-se até ao peito. Durante algum tempo procedeu ás abluções. Com as mãos servindo de conchas, lançou água por todo o seu tronco; depois, purificado, foi ter com o faraó. Em pleno silêncio fez-lhe sinal para que o seguisse, e na sala mais isolada do templo, em frente a um tabernáculo, envolto em fumos provenientes da combustão de plantas sagradas, deu início ao ritual de oração a Amon-Rá, em que, tendo os braços estendidos na direcção do tabernáculo, dizia que ali ficariam depositados todos os sentimentos de amor e preces, que naquele dia o deus na terra Amenhotep, o quarto, ali viera oferecer...(em continuação, pág. 13, ex. IV)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sábado, 2 de janeiro de 2010

A COROA DUPLA- ALTO E BAIXO EGIPTO



...E os deuses abandonaram o palácio do faraó. Ao passarem a ombreira da porta do salão real, tornaram-se transparentes e voláteis, seguindo o seu destino- MassiftonRá, o eloquente palácio dos deuses, localizado nas profundezas do rio Nilo, bem perto da antiga capital, Mênfis.

Apenas passadas sete noites após a sua coroação, o faraó resolveu sair e mostrar-se ao seu povo. Foi-lhe preparada uma enorme escolta, a qual era formada por elementos do exército, alguns escribas que iam anotando as reacções do povo à primeira aparição em público do novo faraó, e dezenas de escravos, que ás costas carregavam a enorme e luxuosa liteira, em que o faraó se fazia transportar. Percorria as ruas, sentado no seu trono, fixo à enorme liteira, usando uma túnica azul e adornado convenientemente, com colares preciosos. Na cabeça ostentava, orgulhosamente, a coroa dupla. Dos seus dois metros a cima do nível do chão, ia observando o seu povo, que à sua passagem se ajoelhava, em sinal de submissão e adoração.
Tinha por destino o templo de Amon-Rá. Não era capaz de aceitar com bom grado o facto de um estrangeiro ocupar um cargo tão elevado, como era o de Sumo- Sacerdote. Mas essa era a vontade de Amon. E Amon era o deus supremo, e era egípcio. Se assim o queria, decerto estava consciente das qualidades do tal Masahemba, que embora não sendo egípcio no nascimento, era-o decerto na alma. E ter alma egípcia era o que realmente importava. Iria agradecer a Amon-Rá e ao deus da terra- Geb, o facto de o Nilo ter depositado no solo tão enorme quantidade de nutrientes. Segundo informação dos escribas, a próxima estação de Shemu iria ser extremamente generosa para com o Egipto.
O cortejo real ia percorrendo as empedradas ruas de Tebas, cidade juncada por inúmeros e belos templos, como o de Karnak , dos quais se destacava tanto na grandiosidade, como em beleza, o templo de Amon-Rá. As ruas fervilhavam de povo, que ocupado nas suas fainas diárias, parava por momentos para prestar homenagem ao seu faraó, que passava.
Percorridas algumas centenas de metros, o faraó divisou finalmente o templo que tinha por destino. Era um edifício soberbo. De altura media mais do que vinte homens colocados uns sobre os outros; uma quadriga do exército, com os seus quatro cavalos em alto galope, levaria tempo para percorrer toda a dimensão do templo, na sua largura. O edifício, era todo ele construído com maciços e vigorosos blocos de pedra.
Toda a frontaria do templo estava pintada de amarelo, vermelho, e preto (tintas feitas a partir de um mineral chamado ocre). Na parede haviam sido desenhadas, em tamanho natural, figuras de variadas cores, que representavam o faraó nas suas inúmeras actividades, entre a vida no seio dos homens, e o mundo dos deuses, em que o faraó surgia como um seu igual. A entrada do templo era composta por um pórtico enorme, ladeado por dois colossais obeliscos, de pedra de alabastro, (símbolo de oração, a mesma simbologia que tem a cruz nas igrejas cristãs) recheados de hieróglifos, que explicavam a razão de ser daquele templo, e onde se podia ler que apenas a família real o podia frequentar. Por essa razão o faraó já por várias vezes nele entrara, quando acompanhava o seu pai, o anterior faraó, Amenhotep, O Terceiro. Mas era a primeira vez que o jovem rei entrava naquele espaço, na qualidade de faraó, o que lhe transmitia uma inebriante sensação de poder... (em continuação- pág. 10- ex. III)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

NA AURORA DE 2010

Estas são as primeiras palavras que escrevo no ano de 2010, que tem neste momento 55 minutos de existência. Completar-se-á este ano um século sobre a implantação da República em Portugal, depois de 767 anos de monarquia. Um século depois, pergunto: valeu a pena?
O «reviralho», que muito contribuiu para que o sentimento republicano ganhasse força na sociedade portuguesa do final do século XIX, em que o partido do governo passava para a oposição, e a oposição passava a ser governo, e seguidamente se assistia ao inverso, repetidas vezes, e o país mantinha-se imutável, na cauda da Europa, tem uma nova versão, modernizada, é certo, mas igualmente ineficaz. Vivemos o reviralho do século XXI. A coisa joga-se entre o PS e o PSD, mas estando um ou outro, os resultados práticos são os mesmos- o enorme crescimento do país!
Com tantos ultrajes à decência moral, que têm acontecido ultimamente, por vezes considero que faço uma má gestão deste espaço. Mas eu vivo num penedo por onde passa a poesia coimbrã, o penedo da saudade. Não é a política que me move. Nunca foi e nunca o será. Se o tivesse sido, hoje, provavelmente, quem sabe, poderia muito bem ser uma figura do Estado. Por essa razão não quero transformar este pedaço de mim numa coisa árida.
Sou, com muito orgulho, um jovem de Abril. A 25 de Abril de 1974, pelas ruas da minha adorada Coimbra, enrouqueci de tanto gritar as palavras de ordem da liberdade. Uma persistentemente me persegue: O Povo Unido Jamais Será Vencido. Onde pára esse ideal? Foi para isto que o 25 de Abril foi feito? Que povo é esse que jamais será vencido? Apenas 35 anos depois quem somos nós? Que coisa horrível, torpe, facínora, criminosa é esta que dá pelo nome de BPN e BPP? Esta fraude, corrupção, o que lhe queiram chamar está muito acima do meu limitado entendimento. Não tenho a verdadeira noção do que aquilo é, nem quero ter, para evitar uma vergonha maior. Mas tive uma pequena noção, quando ouvi, há uns tempos, um comentador na televisão dizer que o caso Alves dos Reis, comparado com o caso BPN era uma brincadeira. Deu para perceber a profunda gravidade da situação.
Na minha triste ingenuidade, há 35 anos, eu, fazendo parte do povo, estava convencido que ao depormos o fascismo,nos iamos tornar invencíveis- unidos jamais iriamos ser vencidos. Era novo demais para saber que a lei do dinheiro está acima de qualquer coisa, principalmente em países em que os lobos vestem o fato e a gravata de inocentes e honestas ovelhas, escondendo o nefasto parasitismo que lhes empapa a alma. E parece que não há lei que os detenha.
2143- data em que Portugal completará mil anos como país independente. Iremos comemorar essa data, ou, pelo contrário, vamos deixar que a alcateia nos parasite e esvazie a nossa vitalidade, a ponto de chegados a essa data nada sermos, nada termos para comemorar?
Desculpem este disparate. O que se pode esperar de um ano que apenas tem uma hora de vida?