quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

FELIZ ANO DE 2010

A todos os que têm visitado e comentado este blogue, desejamos as maiores felicidades para 2010.
Uma palavra muito especial para os autores dos blogues Mari Amorim Brincando com a Rima, Pouso da Verdade, Oficina de Estética, Observatório 234, 3vial, Coimbra B, A Alma e a Rosa, Arte Poética e Viajar Pela Leitura, com quem fiz um excelente intercâmbio de idéias em 2009,e que me fizeram sentir intelectualmente vivo.
Em 2009,neste blogue, viajámos pelo mundo e o mundo por nós viajou.
Que esta profusão de idéias e ideais se mantenha em 2010.
A todos, bem hajam!

domingo, 27 de dezembro de 2009

DA PERSPECTIVA DO ASSALTO AO ASSALTO EM EXECUÇÃO

...- Fico contente por isso. Mas falemos agora um pouco do motivo pelo qual aqui estamos reunidos. Se o meu sobrinho aparecer, o que faremos?
- Eu fico aqui sentado com o jovem moço. A senhora vai para a sua cama. Isto è assunto de homem- opinou o criado negro.
- O Armando tem razão D. Silvina. Se alguém aparecer, irá ter uma boa surpresa.
- Se vocês me fazem esse favor, eu então vou-me deitar. Não sei se conseguirei dormir, logo se verá. Obrigado pelo teu apoio, Serôdio.
- Não tem que agradecer D. Silvina. Apenas faço o que acho que está certo.
- Sim, mas tão jovem e com esse sentido de justiça...
- Fartei-me da arrogância e má educação do seu sobrinho. È só isso.
- Então boa noite- disse D. Silvina, que de imediato abandonou a sala africana.
Com a ausência de D. Silvina, Armando Mapuchi teve o ensejo de, pela primeira vez desde que chegara a Portugal, poder conversar amistosamente com um branco. E foi isso mesmo que aconteceu. Serôdio falou das suas experiências europeias. Armando expôs as suas aventuras africanas. E mais uma aliança ali nasceu. Serôdio sentia-se feliz. A sua aposta em se deslocar àquela casa, deslocação essa feita com tanta relutância, acabou por o premiar com a obtenção de duas almas amigas. Aquele momento havia de vir a ser precioso para a sua vida. Mas era impossível ao jovem Serôdio saber disso.


A casa estava em profundo silêncio. Os pêndulos de um antigo relógio de parede marcavam ritmada e monotonamente a passagem do tempo.
Eram duas horas da madrugada. Na sala africana, mergulhada agora na escuridão, Serôdio e Armando dormitavam, sentados nos enormes sofás. A noite confundia-os com os objectos existentes no grande salão. O cansaço vencera a expectativa de que ambos estavam imbuídos. Mas, naquele momento, sem que se apercebessem disso, não estavam realmente sozinhos. Narciso Conde e os seus três amigos punham em prática aquilo que o colega de Serôdio ouvira na casa de banho do café.
Perfeito conhecedor de toda a casa Lobito de Benguela, Narciso galgara o gradeamento exterior e silenciosamente deslocara-se com o seu grupo para as traseiras da casa, onde sabia existir uma porta que dava para a cave. Maquinando havia muito aquele acto, um dia conseguira apropriar-se de uma de três chaves daquela mesma porta. A sua tia nunca dera pela falta da chave, nem tão pouco o tição que lá trabalhava em casa. Ele sabia que aquela porta quase nunca era utilizada. Por outro lado, a vida pouco ocupada da tia não lhe trazia grandes preocupações de segurança.
Junto à porta, cada um dos rapazes enfiou um capuz de lã preta na cabeça, que lhes dava até ao final do pescoço. Apenas tinha três orifícios: para os olhos e para a boca.
Narciso meteu a chave na fechadura. Com máximo cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível, rodou a chave na fechadura e a porta abriu-se. De imediato os quatro penetraram na cave No interior havia um forte cheiro a bafio. Com uma pequena lanterna Narciso Conde procurou a porta interior que dava acesso à casa propriamente dita. Em busca da tal porta, foi iluminando montes de objectos que ali se foram impregnando de pó: uma cómoda velha, cadeiras muito usadas, duas camas desmontadas cujas peças se amontoavam no chão, uma enorme pilha de jornais velhos e duas bicicletas com os pneus vazios. Finalmente a circunferência luminosa passou pela tal porta. Daí a um instante estavam os quatro no primeiro andar. Pé ante pé, percorreram o longo corredor e finalmente entraram na sala africana. Narciso de imediato se dirigiu para o quadro que representava a caçada ao leão, nas savanas africanas. Nenhum dos quatro dera pelas presenças de Serôdio e Armando, que recostados nos sofás, lentamente entravam cada vez mais num profundo sono.
O quadro que escondia o tão desejado cofre, estava a ser retirado da parede por dois dos rapazes do grupo de Narciso. Ao poisarem-no no chão, não se aperceberam de que um jogo de lanças indígenas se encontravam ali perto, cruzadas e colocadas na vertical, pelo que, com um dos lados da enorme moldura, embateram nas lanças. Com um grande estrépito as armas caíram ao chão. Os momentos que se seguiram foram de grande confusão. Acordados pelo barulho das lanças, Serôdio e Armando saltaram dos sofás, como que espicaçados por um alarme interior.
- Eles já cá estão, eles já cá estão- gritava Serôdio.
Assustados e espavoridos com aquelas inesperadas presenças, os quatro intrusos atropelavam-se uns aos outros, na ânsia de fugirem, enquanto Armando, ainda meio atarantado, tentava desesperadamente encontrar o interruptor da luz.
Passado o momento da surpresa, os intrusos verificaram que se encontravam em vantagem. Embora os olhos estivessem habituados à escuridão, foi um pouco a tactear que tentaram a fuga. Armando barrou-lhes o caminho, pelo que dois deles se envolveram numa luta corpo a corpo com o criado negro. Nesse momento a sala africana foi inundada pela luz. D. Silvina, alertada pelo barulho dos berros de Serôdio e Armando, de imediato acorreu ao salão e ligou a luz num interruptor existente próximo da porta da sala africana, que dava acesso aos quartos. O que viu deixou-a pregada ao chão. O cofre embutido na parede encontrava-se exposto, desprotegido, enquanto que o quadro que o escondia estava no chão. Quatro encapuçados, com garruços pretos enfiados na cabeça, encontravam-se no meio da grande sala, estando dois deles a lutar com o pobre Armando. Serôdio, também ele colocado ao centro do salão, tentava fazer frente aos restantes dois. Por um momento todos se imobilizaram... (em continuação- pág. 30- ex. IX)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

ESTAÇÃO VAZIA

No meu calendário da vida
De dias e meses já esquecidos
Tive esperança de encontrar
Uns sonhos há muito perdidos.

Numa estação vazia
Tirei um bilhete sem préstimo
Mais um caminho sem rumo
Mais um favor
Que à vida eu peço.

Dá-me um pouco do teu sol
Felicidade fugidia.
Abraça-me com o teu carinho
Faz da minha noite o teu dia.

Naquela estação vazia
Sem passageiros nem bagagens,
Perdi o comboio da vida.
Cansado e desiludido
Me abandono á tristeza
De inóspitas imagens.

Mas um sorriso me aqueceu
Um carinho me iluminou
E numa ansiada promessa
De um amanhã de esperança,
Um novo comboio chegou.

Pela vida já viajo.
Afinal alguém me espera.
Coração em sobressalto,
Não sejas tão pessimista.
Sê flor, sê airoso,
Sê a própria Primavera.
Olha o mundo com candura.
E nele sente o bem
Que na esperança perdura.

29/09/1999

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ARMANDO- MEMÓRIA DE GUERRA

...- Mas como pode a senhora confiar assim em mim, se apenas me conhece há meia dúzia de horas?
- Há coisas na vida que nunca hão-de ter explicação. Acontecem num segundo e duram uma vida inteira. A minha confiança em ti è uma dessas coisas. Para mim, és alguém que eu sempre conheci. És decerto o amigo que me fazia falta.
- Mas eu só tenho dezassete anos...
- E então? Eu não te estou a pedir em casamento- disse D. Silvina sorrindo, o que fez com que Serôdio ficasse corado- apenas sei que és alguém onde eu me posso apoiar, caso precise, como faria com um filho.
- A senhora D. Silvina pode contar que eu a ajudarei até onde puder.
- Obrigado Serôdio. Mas falemos um pouco de ti. Tão jovem como és, com certeza que terás inúmeros projectos para a tua vida.
- Sim, realmente assim è. Não são assim tantos projectos como isso, mas os suficientes, caso se realizem, para me garantirem um bom futuro.
- E que projectos são esses?
- Quero tirar medicina.
- Queres ser médico então!
- Sim.
- Estás em que ano?- perguntou D. Silvina.
- Estou a terminar o segundo ano do curso complementar. Mais um mês fica pronto. Depois terei um ano de propedêutico. Se tudo correr bem, para Outubro de 1978 entrarei na faculdade de medicina.
- Os teus pais devem estar muito orgulhosos de ti.
- Sim, penso que sim- respondeu Serôdio com um pouco de timidez, que lhe era peculiar sempre que falava de si próprio- eu não lhes tenho dado problemas, cumpro com as minhas obrigações, dou-lhes o meu afecto, só há razão para sermos felizes.
- Não tens irmãos?
- Não, sou filho único. Quando um dia tiver a minha vida bem orientada, os meus pais hão-de viver comigo.
- És um filho de ouro!
- Eu gostaria que a senhora D. Silvina fosse a nossa casa, conhecer os meus pais. Pelo que vejo a senhora vive muito sozinha. Os meus pais sabem ser bons companheiros.
- Com certeza que irei Serôdio. Tu tens razão. Desde a morte do meu marido, a minha vida tem sido uma completa solidão.
- Mas, a senhora e o seu marido nunca tiveram amigos?
- Sim, muitos. Esta casa esteve muitas vezes cheia deles. Mas com a morte do Raúl, talvez prevendo que recorresse a eles para sobreviver, ou talvez porque só fossem mesmo amigos do Raúl, o que è certo è que com o seu desaparecimento desapareceram também os amigos. Sobrou apenas o Armando.
- Ele chama-se só Armando?
- Não, ele chama-se Armando Mapuchi. È muito bom criado e muito bom homem também.
- Ele não sente saudades da família?
- Essencialmente ele sente saudades de Angola. A família já a esqueceu, porque com a guerra civil que grassa por lá, ele convenceu-se de que toda a família morreu.
- Porquê?- perguntou o rapaz.
- O pai dele foi soldado do exército português. Ele está convicto de que por causa disso todos os seus familiares terão sofrido represálias por parte dos soldados da UNITA e do MPLA. Angola mergulhou num banho de sangue. O Armando teve muita dificuldade em adaptar-se à forma de viver dos europeus. Somos uma sociedade com demasiadas regras. O facto de há muitos anos trabalhar para nós, ajudou-o na adaptação à vida em Portugal.
- Ele nunca arranjou nenhuma mulher?
- Penso que não. È um homem dócil, extremamente servil e vive amargurado com o sofrimento do seu povo. Está-nos imensamente agradecido por o termos trazido para Portugal.
- No entanto vivem cá tantos angolanos e angolanas...
- Que não gostam de mim por inveja- interrompeu o criado negro que naquele momento entrava na sala- sabem que eu não tenho dificuldades, nem sou explorado como eles são. Para me ofenderem , dizem-me que eu continuo a ser criado de quem ajudou a manter o colonialismo. Mas eu não me ofendo. Eles só è mesmo dor de cotovelo. O meu lugar è nesta casa, porque o senhor coronel e a senhora salvaram-me da catana da UNITA ou do MPLA. Por isso è nesta casa que eu tenho de fazer a minha vida. O jovem moço perguntou se eu tinha mulher. Eu digo-lhe. A mulher que estava para viver comigo morreu no Lobito, numa poça de sangue.
- Armando, tu nunca me disseste isso- retorquiu D. Silvina.
- Pois não senhora, não valia a pena. Eu não quero mais mulher.
- Desculpe Armando, por minha causa estamos a recordar coisas tristes.
- Não faz mal jovem moço. Todo o dia eu penso nela um bocadinho.
- Bem, mas è melhor realmente falarmos de outras coisas, senão não tarda estamos os três a chorar- disse D. Silvina.
- Eu não tenho razão para chorar, senhora. Aqui eu sou feliz- disse Armando...(em continuação, pág. 26- ex. VIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

VOTOS DE BOAS FESTAS



A todos os que têm tido a simpatia de visitar este blogue desejamos um Santo Natal.
Uma palavra muito amiga, em particular, para os blogues Viajar Pela Leitura, Mari Amorim Brincando Com A Rima, Coimbra B, Observatório 234, Pouso da Verdade e Oficina De Estética, que comigo têm interagido de forma extremamente divertida e salutar.
Que este Natal seja o pronúncio de uma vida mais risonha, mais justa, mais saudável e mais solidária para a humanidade. Seria decerto a melhor prenda de Natal.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

MISTÉRIO NAS FOLHAS CAÍDAS



Por entre testemunhas carcomidas pelo tempo, a memória dos homens sussurra lembranças há muito esquecidas, atrozes ecos guardados no silêncio das folhas caídas.
São mistérios de um povo.
São murmúrios de Alcácer-Quibir.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

VOCCES CARMELI



Vocces Carmeli é um grupo de Aveiro, composto por vozes e instrumental, do qual nos orgulhamos de ter pertencido.
Porque o Natal se aproxima, e na esperança que uma meiga e humilde memória contribua para a pacificação dos homens, este blogue decidiu dar-vos a conhecer a música que os Vocces Carmeli dedicaram à memória do Santo Padre João Paulo II.

domingo, 6 de dezembro de 2009

CONTACTO- O LIVRO DA ESPERANÇA NO REGRESSO

...O escritório era pequeno. Ali existia uma secretária feita em madeira, uma estante e três cadeiras. Na parede encontravam-se três fotografias penduradas e emolduradas por molduras de madeira, onde se podia ver o pai de Álvaro, o enfermeiro Victor, em três momentos de confraternização com colegas seus, momentos esses que para ele deveriam ter um significado especial. Em cima da secretária estava um pequeno candeeiro curvo, pintado de preto e uma outra moldura, esta poisada no tampo da secretária, onde Álvaro exibia todo o seu franco e amistoso sorriso, na companhia dos pais, por ocasião do vigésimo aniversário do casamento deles.
Na estante existiam três prateleiras que estavam repletas de livros. Catarina abriu as duas portas envidraçadas de par em par, e com o olhar começou a percorrer as quarenta ou cinquenta lombadas que ali existiam. Deteve o olhar numa lombada preta onde se podia ler a palavra « Contacto ». Catarina retirou o livro, enquanto Álvaro colocado atrás dela, com o rosto colado ao rosto dela, a envolvia com os seus braços, que se cruzavam por cima dos seios dela. Catarina perguntou:
- Que livro è este?
- Desde que me lembro de ser gente, que vejo esse livro aí. O meu pai deve-o ter comprado há muitos anos.
- È um livro técnico, è um romance ou o que è?
- Penso que è um romance. Um dia tive curiosidade em o folhear. È uma história sobre o espaço.
- O espaço? Então è ficção científica!
- Acho que sim. Mas existe aí uma coisa nada normal.
- O que è?
- Esse livro não tem o nome do autor.
- Não? Será que foi o teu pai que o escreveu?
- O meu pai? Não, nunca foi muito dado à escrita. A sua especialidade são as injecções e os pensos.
- Então o livro não è teu, pois não?
- Não, mas se quiseres podes levá-lo. Nunca vi o meu pai demonstrar grande interesse por esse livro. Aliás, penso que nos últimos vinte anos eu fui a única pessoa que lhe mexeu. E depois, o livro ao estar contigo não pode ficar em melhores mãos.
- Obrigado Álvaro. Eu adoro ficção cientifica.
E Catarina abriu o livro. Depois da página de rosto, na página seguinte surgiu uma pequena dedicatória, que dizia: « para Alexandra que atinge a maioridade no milénio. Possamos nós deixar à tua geração um mundo melhor do que a nós foi deixado ».
- Misteriosa esta dedicatória- disse Catarina.
- Porquê?
- Este milénio será o ano 2001, presumo eu. Se esta Alexandra atinge a maioridade no ano 2001, quer dizer que nesse ano irá fazer dezoito anos, pelo que se presume que terá nascido em 1983. Como pode isto ser possível, se ainda faltam dez anos para chegarmos a 1983? E se tu dizes que o livro já aqui está pelo menos há vinte anos, è verdadeiramente incrível. Como pode alguém indicar tão peremptoriamente o ano de nascimento de outra pessoa décadas antes de esse ano chegar?
- O que leva a crer que aí dentro estará magnífica ficção cientifica. Lê-o e manda-me dizer o que de mais espectacular encontrares. Vou ficar ansioso pelo teu contacto acerca do « Contacto ».
Enquanto ela escolhia outros livros, ele embrenhava-se mais e mais no corpo dela. Os lábios dele passeavam-se pelo pescoço dela, as mãos dele estavam frenéticas e exploradoras. Mansamente, imperceptivelmente, desabotoaram os botões da camisa dela. Ele sentiu a pele dela aveludada, quente, sensual. Catarina fingia manter-se interessada nos livros, mas a sua voluptuosidade traiu-a. Repentinamente se virou para Álvaro e loucamente se beijaram.
Por algum tempo todo o mundo teria de esperar. Até África, até Angola, ali não representavam nada. O amor sempre os transportara para um mundo diferente. Mas naquele momento, o amor era infinitamente mais intenso. Tinha o poder de alcançar para lá do corpo, porque no fundo, bem lá no abismo dos seus sentimentos, eles sentiam não ter a certeza se mais alguma vez se voltariam a amar. Iriam ser separados por um oceano de dúvidas, um mar inteiro de preces...(em continuação- ex. XVII- pág. 50)

in VISITADOS

Novembro/1999

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

PROMESSAS...APENAS PROMESSAS, JÁ QUE ANGOLA É UMA CERTEZA

...A tarde foi-se escoando. A pouco e pouco a sala ficou vazia. Depois de fortes abraços, molhados por lágrimas de dúvida sobre o destino daquele bom amigo, que a maldita guerra chamava, Álvaro e Catarina ficaram sós. Os próprios pais de Álvaro saíram para poderem proporcionar aos dois namorados alguns momentos de intimidade. Álvaro, apoiando os cotovelos no parapeito de uma das janelas da sala, fumava um cigarro e observava o horizonte, encontrando-se demasiado deprimido para poder falar, agora que a sala estava em silêncio. Catarina passava os olhos pelos inúmeros discos, que formavam uma pilha desordenada. Ela quebrou o silêncio.
- O Demis Roussous è o meu cantor preferido.
- Porquê?- perguntou Álvaro.
- Porque è belo, è suave, è melódico, è humano, e através dele pude, abraçada a ti, viver alguns minutos incríveis. Não vou mais esquecer aquela canção...- e chorando correu para os braços de Álvaro.
- Então Catarina...minha loirinha, onde está a tua coragem?- perguntava Álvaro, que com a cara levemente apoiada na cabeça de Catarina, via possíveis imagens de guerra, onde o vermelho do sangue se misturava com o extraordinário verde de uma vegetação luxuriante. De coração apertado afastou-a de si e agarrando-lhe os braços disse- porquê essas lágrimas Catarina? Choras por eu me ir afastar de ti ou choras com medo de me perderes?
- Álvaro, por amor de Deus não digas isso.
- Então minha querida, por amor de Deus te peço que não chores. Em todas as pessoas e especialmente em ti, o que eu preciso de ver é um sorriso de confiança e de esperança. Lágrimas não. Essas só escurecem o meu horizonte.
- Desculpa Álvaro, foi uma pieguice. Chora-se por tanta coisa. Chora-se às vezes por coisas sem importância. É evidente que chorei apenas por já sentir saudades tuas. Se calhar, durante vinte e quatro meses não te vou ver. È muito tempo. Apenas chorei por isso.
Álvaro sorriu e acariciando com as mãos as faces de Catarina disse:
- Desculpa minha loirinha. Fui um pouco rude. São os nervos. Não posso negar que estou um pouco apreensivo, mas acho que é natural.
- Claro que é natural- dizia Catarina enquanto o beijava nos lábios- tu não vais propriamente para uma festa. Ninguém põe cobro à guerra! Há quantos anos existe guerra no Ultramar?
- Começou em 1961. Já passaram doze anos.
- Caramba, ou a ganham ou a perdem, mas manter-se a situação assim indefinidamente...
- É o preço do colonialismo. Os povos autóctones evoluíram um pouco, já conseguem pensar em independência. Além dessa evolução, há que contar com o apoio que recebem de forças externas, que no fundo apenas querem suceder a nós, portugueses, à frente dos destinos das colónias. Graças a esses apoios externos, a guerra tem-se arrastado por todos estes anos e está para durar.
- Achas bem ou mal ires combater os pretos que querem a independência da sua terra?
- Se eu digo que não está certo ir combatê-los, sinto trair a Pátria. Se eu digo que está certo combatê-los, sinto que não gostaria de ver os espanhóis entrarem pelo meu país dentro e subjugarem a minha vontade e a minha liberdade. Mas depois penso que toda esta situação começou há cerca de quinhentos anos. África foi colonizada pela Europa. De então para cá milhões de brancos são tão africanos como os negros descendentes daquelas primitivas e remotas tribos. No contexto actual, não consigo sentir outra coisa que não seja responder afirmativamente à ajuda que o país me pede.
- Que o país te impõe...- corrigiu Catarina.
- Prefiro sentir que o país me pede ajuda. Mas, esta conversa está demasiado política. As paredes têm ouvidos e a Pide chega a todo o lado. Esqueçamos agora a guerra e pensemos em nós. Quando olho para ti, como o faço agora, percebo que me vai ser muito difícil suportar a tua ausência. Escreves-me sempre está bem?
- Vou-te escrever todos os dias meu amor. Se calhar até mais do que uma vez por dia. Que mais me resta fazer senão tentar estar em permanente contacto contigo?
- E eu, minha loirinha, nem sempre terei tempo para te escrever, mas ocuparás por completo o meu coração e a minha mente. E hei-de ver se através de cartas conseguirei transportar África até junto de ti.
- Mas não te esqueças de mandar também o teu amor.
- Juro que não, minha loirinha. Hei-de te enviar um amor ardente, inflamado pela saudade e pelo calor tropical. Mas tentarei revelar-te também as maravilhas naturais de Angola, que eu penso existirem, porque sei que és uma óptima leitora.
- Podes daqui levar alguns livros para os eventuais momentos de ócio.
- Já pensei nisso, mas decidi não levar nenhum livro. O meu espírito vai estar demasiadamente ocupado e preocupado com outras coisas, para que possa ter serenidade, pedida a uma boa leitura. Mas tu podes levar todos os livros que eu aí tenho. Lê-os por mim. Cada livro que tenhas lido terão sido um ou dois meses que passaram. Manda-me dizer quais os livros que estás a ler, quando começas e quando acabas, está bem?
- Prometo-te meu querido.
- Vamos então ao escritório do meu pai. Os livros estão lá arrumados...(em continuação- ex. XVI- pág. 47)

in VISITADOS

Novembro/1999

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

AI MONDENGO...MONDENGO...



Há alguns anos, numa povoação nos arredores de Aveiro, morava um homem, que, segundo reza a história, dialogava constantemente com Baco. Em bom português, era um borrachola inveterado. Esse homem tinha um cão- o Mondego. Num dia de festa na terra, chegou a casa, pela noite, mais bêbado do que era costume. A mulher, cansada de lhe aturar as bebedeiras, que felizmente eram compostas por um vinho fácil, agarrou-o por um braço e pô-lo na rua, ordenando-lhe que fosse cozer a bebedeira para onde a tinha apanhado. O homem saiu, numa amargura cambaleante, sem antes ter dedicado umas carícias ao seu velho e fiél amigo, o Mondego, que ao aspirar o bafo que vinha do dono se afastou rapidamente. Raio de vida, até o cão o abandonava!
O homem regressou ao recinto da festa, tendo-o encontrado completamente vazio. A falar com os seus botões, amaldiçoando, em segredo, a mulher que daquela forma desumana o tratava, para ali se encostou na barraca dos frangos, procurando por alguma garrafa de pinga esquecida, mas não encontrando nada, pois tudo andava com uma sede desgraçada, que as garrafas era um ver se te avias,deitou-se num comprido banco de suma a pau e adormeceu.
Pela manhã, compondo a gravata sebenta de nódoas de vinho, tentando aparentar boa figura, enchendo o peito para absorver o ar da manhã, ganhando coragem para assim enfrentar o previsível mau humor da esposa, tomou a direcção de casa. Ao chegar, foi recebido pelo seu fiél cão, que aos saltos e abanando freneticamente a cauda, demonstrava a sua alegria por ver o dono. O homem, sensibilizado por aquela demonstração de carinho, disse:
- Ai Mondengo, Mondengo, largas terras tem o mundo. Ainda te lembras de mim, cãozinho?
O herói chegava a casa, depois da sua extenuante, longa e perigosa jornada!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O CAMINHANTE

...Andava com passos sofridos e desalentados. O fardo da vida era enorme. Chegara a Lisboa havia dois meses, em Março último, no dia em que dois portugueses partiam de avião, numa viagem de aventura atravessando o Oceano Atlântico. Não se admirara com o avião. Já anteriormente vira alguns. Que onda de alegria varria a capital nesse dia. A vida era assim mesmo. Para uns a glória, para outros a humilhação, a tristeza. Saboreara um pouco a felicidade do povo lisboeta e logo de seguida metera pés ao caminho, por esse Portugal dentro. Dinheiro não tinha, por isso caminhava. De vez em quando carroceiros aliviavam-lhe a caminhada, transportando-o por alguns quilómetros. Visitara o seu primeiro destino. Corria o ano de 1922. Como tudo mudara. Não tivera forças para alterar o percurso da vida, a vida de quem o amara. Ele não sabia até que ponto estaria à altura de voltar a ter uma vida normal. Na dúvida, preferiu deixar as coisas ficarem como estavam. As feridas da alma podem fazer desaparecer o tino a um homem.
Envergava umas calças amarelas muito largas e remendadas. Vestia uma camisa aos quadrados vermelhos e castanhos, com o colarinho e os punhos coçados. Por cima usava um casaco castanho de fazenda, com muitos anos. Calçava uns socos com falhas na madeira. Um chapéu preto com minúsculos rasgões completavam o traje. Estava cego do olho esquerdo, por isso usava uma venda. Tinha uma cicatriz muito pronunciada no rosto abundantemente barbado, que começava na sobrancelha esquerda, atravessava obliquamente o rosto e terminava junto à orelha direita. A tiracolo levava um bordão apoiado no ombro direito. Na ponta do bordão tinha atado um saco onde transportava os seus parcos haveres. Procurava trabalho. Encaminhava-se para o seu segundo destino - Alfeizerão. Finalmente lá chegara. As poucas pessoas que foi encontrando no caminho olhavam-no desconfiadas. Ele não se importava. De que outra maneira as pessoas se poderiam sentir ao verem um estranho, com uma tão estranha aparência?
Atravessou a pequena aldeia. Viu uma taberna aberta. Nela entrou. Que enorme pipa ali existia. Estavam dois homens encostados ao balcão de pau cru. Do lado interior do balcão encontrava-se o taberneiro.
- Santas tardes a todos - disse o caminhante.
- Santas tardes - responderam os três homens com ar desconfiado.
- Podem-me dizer se aqui é Alfeizerão? - perguntou o caminhante.
- É aqui mesmo - respondeu o taberneiro.
- Ponha-me aí um copo de três. A garganta está seca - disse o desconhecido.
- Tem dinheiro para pagar? - perguntou o taberneiro.
- Ainda vou tendo uns centavos.
- Quer tinto ou branco?
- Tinto, dá mais força ao sangue.
- Tiozinho, vem de muito longe? - perguntou um dos dois fregueses.
- Venho, venho de muito longe - respondeu o caminhante fixando o seu único olho no interlocutor - venho aqui a Alfeizerão para procurar trabalho. Ouvi dizer que existe aqui uma herdade valente, que está a precisar de braços para trabalhar.
- É verdade - respondeu o taberneiro.
- Quem é o dono? - perguntou o caminhante.
O taberneiro não respondeu. Fixou atentamente o caminhante, perplexo com a pergunta, sem alento para dar a resposta.
- O dono é o senhor Barreto Raposo - respondeu um dos fregueses.
O caminhante fixou o chão. Depois disse para o taberneiro:
- Qual é a sua graça?
- E porque razão quer saber?
- Eu espero ficar seu freguês, caso o senhor Barreto Raposo me dê trabalho, e mal ficará o freguês não saber o nome do homem que lhe vende o vinho - respondeu o caminhante.
- Pois seja. Chamo-me Chico Bento. E o seu nome qual é?
- O meu... eu lá sei se tenho nome. Chame-me o que quiser. Para que lado é a herdade?
- O tiozinho desce por essa estrada fora. Há-de passar junto a uma capelinha. Continue em frente que o caminho o há-de levar até lá. Logo verá um solar. Chama-se Vila de Ló - respondeu um dos fregueses.
- São todos cá de Alfeizerão? - perguntou o caminhante.
- Só eu sou de cá - respondeu o taberneiro - eles são do Bombarral.
- Bem me pareceu - respondeu o caminhante.
- Bem lhe pareceu? Alto lá com a conversa - disse um dos fregueses.
- Não se zangue. Não falei por mal. Também passei pelo Bombarral e achei que vocês falam à moda de lá. Mas incomodei-os com alguma coisa?
- Não, não - responderam os dois homens.
- Ainda bem. Vou então procurar a tal Vila de Ló. Tenho que ver se ganho algum dinheiro para o deixar na sua taberna, senhor Chico Bento. Vale a pena. A pinga é boa. Até mais ver.
Ti Chico Bento veio à porta ver o desconhecido afastar-se em direcção ao solar. Limpava as mãos a um pano cheio de nódoas de vinho. Aquele homem intrigara-o.
- É um pobre diabo - disse o taberneiro.
- Acha? Cá a mim aquela cicatriz diz-me que é sujeito de brigas, tal qual o mouro e o verruga.
- Não me pareceu - respondeu o taberneiro.
- Não sei se o fivelas o aceitará.
- Ora, ora, o fivelas quer é bons braços. As cicatrizes não o incomodam - respondeu Ti Chico Bento - mas aquele homem não há-de ser mau diabo...(em continuação- pág. 78)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

terça-feira, 24 de novembro de 2009

PASSAGEM DE AUSÊNCIAS



No reboliço adormecido da cidade, na noite que molhada acontece, sobre as águas plàcidas da ria os candeeiros inúteis iluminam a passagem da ausência dos homens. A solidão impera!
A noite se abandona ao Outono.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

QUANDO AO PEQUENO ALMOÇO SE SERVE...PAIXÃO

...Com a chegada do novo ano, o de 1922, as ocupações profissionais de Américo Afonso tomaram um novo rumo. Um caso em que ele trabalhava adquiriu subitamente contornos que exigiram de Américo um maior dispêndio de tempo. Teria realmente a matéria do facto sofrido alterações ou, pelo contrário, não teria sido antes o advogado a sofrer modificações? Teria a certeza do amor de Luísa influenciado a perspicácia de Américo? Teria ele ganhado maior profundidade na sua pesquisa? É possível que sim. A serenidade de espírito transformou-o num advogado mais eficiente. Por isso a sua alegria no trabalho era muito maior. E por tudo isto, passava menos tempo em casa.
Já se estava em Fevereiro de 1922. Sobre aquela transformadora noite de Natal se haviam passado dois meses. Mas o romance de Luísa e Américo parara à porta da casa do oleiro. Nem mais um passo os dois avançaram. Tendo aberto os corações um ao outro, alimentavam a paixão com olhares breves mas intensos. Era o silêncio amordaçado de duas bocas... que falavam sem palavras. Ocasionalmente se encontravam. Mas em cada dia que passava, para Américo e Luísa existiam dois momentos de verdadeira expectativa e delícia: para ela, quando de manhã arrumava o quarto ocupado por ele durante a noite. Para ele, quando à noite ocupava o quarto arrumado por ela durante o dia. E por estes momentos solitários, mas arrebatadamente vividos, se foram espraiando os dias.
Numa radiosa manhã de Março Luísa dirigiu-se bem cedo, como sempre, para a Casa das Leis. Ao entrar deparou-se com D. Vitoriana e o Doutor Sebastião Afonso, prontos para saírem.
- Bom dia Luísa - disse D. Vitoriana.
- Bom dia minha senhora.
- Estás admirada de nos veres prontos para sair, não é?
- Realmente estou - respondeu Luísa.
- Pois é. Eu e o senhor Doutor Sebastião temos de ir às Caldas da Rainha tratar de assuntos. Só voltaremos à noitinha. Por isso, tu em arrumando os quartos podes ir embora.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana.
- O meu filho ainda dorme. Esteve até tarde a trabalhar no escritório. Mas não deve almoçar em casa.
Luísa sentiu então o seu coração bater mais forte. Sem o saber, pela segunda vez, D. Vitoriana dava oportunidade a que Américo Afonso e Luísa se encontrassem.
Finalmente os patrões saíram. Dois meses de reflexões sobre a sua condição de mulher jovem, viúva e de novo apaixonada, conscientemente apaixonada, desinibiram-na relativamente à relação com Américo Afonso, a qual no seio de intensos fogos silenciosos que consumiam o seu ser, tentava florescer. Ela voltava a não ter controle sobre si mesma. Na ânsia de não fazer barulho, logo bateu com um pé na perna de uma cadeira, fazendo com que aquela fizesse barulho ao cair. Rasgou o pleno silêncio em que a casa ficara mergulhada, depois da saída dos patrões, dando a sensação a Luísa de que a queda da cadeira ecoara por toda a casa, parecendo-lhe que quase fizera estremecer as paredes. Américo estava ali. Luísa foi arrumar o quarto dos patrões. Passou pela porta do quarto de Américo. Parecia que tinha íman, tal era a força atractiva que a puxava para ali. Depois do quarto arrumado, passou pelo escritório. Arrumou a papelada o melhor que pôde. Embora não soubesse ler, demorou os olhos nos rabiscos feitos por Américo. Não pôde esperar mais. Ele tinha de saber que ambos estavam sozinhos. E que melhor maneira havia do que levar-lhe o pequeno almoço ao quarto?
Como todos os dias, só com a diferença de que naquele momento ia muito mais apressada, foi à padaria comprar pão fresco e à leitaria o costumeiro litro de leite. Ao reentrar em casa, tudo se mantinha em silêncio. Na cozinha preparou um lindo tabuleiro forrado com uma pequena toalha de linho. Nele colocou uma chávena com um pires, dois bules, um de café e outro de leite, dois pães, um açucareiro, uma bonita colher de prata e dois potes, um com manteiga e outro com compota de pêssego. Aquele tabuleiro estava um regalo. Olhá-lo abria de imediato o apetite ao pequeno-almoço.
A Casa das Leis era bastante grande. No andar térreo encontravam-se a cozinha, um grande espaço que servia de antecâmara de acesso à casa, onde se tinha desenrolado a patética cena entre Luísa e Américo Afonso, momentos antes de iniciarem a histórica jornada até casa de Luísa, na anterior noite de Natal, o escritório do Doutor Sebastião e a sala de jantar. Através de umas largas escadas se subia ao primeiro andar onde se situavam os quartos dos hóspedes e dos residentes, e o escritório de Américo Afonso. Todas as divisões possuíam generosas janelas que davam uma forte luminosidade a toda a casa.
Luísa segurando o magnífico tabuleiro subiu as escadas e dirigiu-se ao quarto de Américo. Bateu levemente. Não obteve resposta. Bateu de novo. Continuava o silêncio. Insistiu com mais força, equilibrando o tabuleiro numa só mão. Finalmente uma voz roufenha disse:
- Minha mãe, que quer?
- Não é a sua mãe, seu mandrião. - De dentro do quarto não se ouviu qualquer resposta. No entanto existia movimento. Ouviu-se um arrastar de chinelos. Luísa mantinha-se imóvel, com um leve sorriso nos lábios de deusa. A maçaneta da porta rodou e surgiu o rosto de Américo, com os olhos entreabertos, lutando contra a agressividade da luz matinal.
- És tu Luísa?
- Sou eu sim senhor. Vim trazer-lhe o pequeno-almoço. O Américo não tem fome?
- Eu... fome? Sim, sim, estou esfomeado - disse Américo ainda atónito.
- Américo, será que eu posso entrar? Este tabuleiro já pesa!
- Entrar? No meu quarto? Mas claro... pois... eu vou tomar o pequeno-almoço no quarto!!
Depois de Luísa ter entrado, Américo espreitou o exterior com ar intrigado. Estava admirado por a mãe ter mandado Luísa trazer-lhe o pequeno-almoço ao quarto.
- Estou admirado com a minha mãe. Mandar-te aqui com o pequeno-almoço?!
- Os seus pais não estão em casa. Foram às Caldas. Como sei que o Américo trabalhou até tarde, lembrei-me que talvez lhe fosse agradável tomar o pequeno-almoço no quarto. Fiz mal?
- Ò anjo da minha vida, como podes perguntar se fizeste mal?! Eu ainda não estou em mim. Além de nós, mais ninguém está em casa?
- Mais ninguém. O Américo tome o seu pequeno-almoço, que depois eu virei arrumar o quarto - disse Luísa enquanto abria as portinholas de madeira das janelas, que mantinham o quarto resguardado da luz solar.
- Não meu amor, talvez Deus não me torne a dar uma oportunidade como esta de te poder ter nos braços.
Luísa estava estática. Os seus grandes olhos fixavam os olhos de Américo Afonso. Os lábios entreabertos suplicavam por um beijo. Ele aproximou-se. Envolveu-a com os seus braços. Luísa não esboçou resistência. Américo Afonso aproximou os seus lábios dos dela, embrenhou-se nos seus longos e belos cabelos negros e o mundo reduziu-se ao espaço daquele quarto. O belo tabuleiro ficou abandonado, inútil. O café e o leite arrefeceram nos bules. Numa dança de corpos escaldantes, onde a roupa não tinha lugar, Luísa e Américo caminhavam no reino de Cupido. Tudo era belo e simples. Quanto mais conheciam daquele reino mais queriam conhecer. Percorreram todos aqueles caminhos até à exaustão. O mundo era perfeito...(em continuação- pág. 75)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O POVO É SOBERANO

Nestes dias em que, em Portugal, se assiste a esta espectacular mostra de decência moral, a voz do povo, mesmo que vinda da profundidade do século passado, é de uma actualidade impressionante. A voz do povo, embora seja do povo, sempre foi e continuará a ser uma voz genuína, verdadeira e incomodativa.

Gosto do preto no branco,
como costumam dizer.
Antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.


Quantas sedas aí vão,
quantos colarinhos.
São pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos.


Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.

António Aleixo (1899-1949)

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

FARAÓ, DEUSES- O EGIPTO



...Naquela específica estação de Peret, em que, desde então, já se passaram dez mil e cinquenta e nove estações, ocorreu um evento da mais alta importância para o meu país: um novo faraó chegava ao poder. Intitulou-se Amenhotep, O Quarto. E aqui se iniciam as minhas memórias muito particulares, aquelas mesmas que apenas existem na minha textura de pedra semi-preciosa.
Antes de se apresentar aos homens, o novo faraó deveria apresentar-se aos deuses. Sim, era conveniente. O faraó, se queria ter um reinado feliz, em que perspectivava vir a reinar com justiça e sabedoria, a fim de trazer a prosperidade ao seu povo, teria de se encontrar sempre em harmonia com os deuses, pois neles iria beber os conhecimentos que dele fariam um faraó amado por todo o Egipto.
A apresentação aos deuses era feita de forma extremamente secreta. O faraó, na condição de deus entre os homens, era o único homem à face da terra, que tinha a possibilidade de contactar, fisicamente, os seres divinos. Assim, numa noite dessa específica estação de Peret, o salão real de Amenhotep, O Quarto, recebeu a visita dos deuses preponderantes na vida egípcia: Aton, Amon-Rá, Nut, Geb, Osíris, Ísis, Hórus e Ánubis. Existia ainda um deus de que todos falavam, mas do qual apenas queriam distância- Seth, o deus maldito, o deus que apenas trazia confusão e caos. Por essa razão, Seth não se encontrava no salão real. Não é que o próprio não quisesse estar presente, pois Seth adoraria abençoar o novo faraó com a sua maléfica sombra, mas tal não lhe era permitido pelo deus mais poderoso - Amon-Rá.
À luz de pequenos archotes, que iluminavam as paredes do palácio real, plenamente pintadas com ilustrações alusivas à relação existente entre o faraó e os deuses, estes iniciavam o novo rei no seu reinado, com a simbólica cerimónia da coroação do faraó, coroação essa efectuada por Amon-Rá, que na cabeça do novo faraó colocava a coroa dupla, simbolizando a união do Alto e do Baixo Egipto.
Amon-Rá, alto, bem entroncado, de cabelo loiro e olhos de um azul profundo, todo ele transmitindo energia, a própria energia do sol, envergando apenas uma leve túnica de azul celeste, pegando com ambas as mãos a coroa dupla, se aproximava do novo faraó, dizendo:
- A ti, Amenhotep, O Quarto na escala dinástica, te confiro os poderes de, nesta abençoada terra do Egipto, seres o meu representante, bem como dos restantes deuses, no mundo impuro dos homens. É teu dever e obrigação velares para que aos homens nunca falte o pão e a justiça. O pão, como símbolo da prosperidade e felicidade do povo por quem és responsável; a justiça, como garante da aplicação de todas as leis universais, ás quais tens acesso, para que a «maet» esteja sempre presente em cada dia do teu reinado. Apenas através dela conseguirás uma boa harmonia entre os homens, e como tal, entre ti e a sabedoria dos deuses a quem deves lealdade. Se tudo isto for legado do teu reinado, abençoado faraó serás.
E proferidas as palavras divinas, Amon-Rá colocou coroa dupla na cabeça do novo faraó. Este, vestindo uma túnica de um branco quase transparente, bordada a ouro, e tendo como adorno um enorme colar ao pescoço, feito de peças de marfim e pedras preciosas, que lhe cobria os ombros, parte das costas e do peito, levantou-se do seu trono, ajoelhou-se em frente de Amon-Rá e beijou-lhe as mãos. Seguidamente ergueu-se, dirigiu-se aos restantes deuses ali presentes, e um a um, pegou-lhes nas mãos, beijando-as também. Depois regressou ao seu trono e sentou-se. Olhou para todos os deuses que se encontravam na sua presença. Depois, fixando apenas o deus supremo- Amon-Rá, o novo faraó disse:
- Aqui me tens, divino e mestre Amon. O teu conhecimento e a tua vontade servirão de orientação para a minha conduta. O meu reinado irá representar a tua verdade. Que Horus me auxilie em tão enorme tarefa.
- Horus, o rei solicitou o teu auxílio. Tens algo a responder-lhe ?- perguntou Amon-Rá ao deus Horus, ali presente.
- Pelas atribuições designadas pelo concelho de Massiftonrá, cabe-me velar pela integridade moral, ética e intelectual de todos os reis, que no Egipto reinem. Amenhotep, O Quarto, podes ter a certeza de que sempre estarei atento à tua conduta, não só como rei, mas também como homem. O meu auxílio será prestado sempre que necessário; para isso bastará ao rei solicitar-mo.
- Já és faraó- disse Amon-Rá, dirigindo-se ao novo rei- reina com amor, sabedoria e justiça. Se assim o fizeres, terás ajudado a que o Egipto seja o Império dos Impérios. Toma por exemplo todo o trabalho desenvolvido pelo teu ancestral Menés, faraó a quem deves a coroa que usas neste momento. E lembra-te Amenhotep, O Quarto, não julgues que é pelo simples facto de seres coroado faraó que ganhas o estatuto de deus na terra. Chegaste a faraó por herança, mas para chegares a representante dos deuses na terra, tens de mostrar que o mereces. Os homens consideram-te o representante dos deuses no seu seio, mas nós, que somos os deuses, poderemos não ser dessa opinião. Por isso te abençoou-o e te revelo a minha confiança em ti. Em relação ao culto a que a mim farás, determino que o sumo-sacerdote do Templo de Tebas, ao deus Amon-Rá, continue a ser Masahemba.
- E porquê esse Masahemba?- perguntou o faraó.
- Amenhotep, O Quarto, a palavra de um deus não é para ser questionada - disse o deus Hórus.
- Perdão- retorquiu o jovem faraó, baixando o olhar.
- A tua interpelação não foi maldosa, eu sei. Apenas curiosidade- disse Amon-Rá em tom paternal- mas eu não quero que no trono do Egipto esteja um faraó, em cuja mente possa existir uma minúscula semente, que seja, de dúvidas. Por isso te respondo. Masahemba é filho de um homem que veio de um reino do sul, trabalhar para o Egipto. Esse homem dedicou-me toda a sua vida, a ponto de a perder, quando numa discussão, esbirros de Seth desonraram o meu nome. Já no Rio dos Mortos, em domínios de Osíris e Ánubis, eu prometi a esse homem que lhe protegeria o filho- Masahemba. O meu Sumo- Sacerdote não é egípcio, mas o seu bem estar tornou-se no juramento de um deus- o meu juramento; por essa razão Masahemba, enquanto for vivo e tiver forças para o fazer, será o meu Sumo- Sacerdote e um egípcio da mais alta estirpe. É esta a minha vontade. Nós, deuses, também temos destas coisas. Faraó Amenhotep, O Quarto, que a próxima estação de Shemu te seja extremamente favorável. Seria um óptimo sinal iniciares o teu reinado com colheitas abundantes...(em continuação- pág. 6)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A AMETISTA



Sou uma pedra. Tal afirmação parece ser uma estupidez, mas não é. É que eu sou mesmo uma pedra! É claro que não sou uma pedra qualquer; nem tão pouco sou apenas uma pedra especial. Sou muito, mas muito mais do que isso. Começo por ser uma pedra semi-preciosa, mas não é a semi-preciosidade que me transmite este carácter tão peculiar. As pedras não têm o dom da memória e da comunicação; no entanto eu tenho memória, uma longa memória, e como se está a ver, consigo comunicar. Assim fossem todas as pedras e a história do mundo seria muito rica e completa. Se todas as pedras tivessem memória e pudessem comunicar as suas recordações, cada templo, cada monumento, transformar-se-iam num relato vivo das vidas humanas e dos acontecimentos importantes ou não, que se escondem na mudez das pedras de que são feitos os templos e os monumentos.
Eu tenho memória, e na minha textura, encerro a memória de um homem a quem eu acompanhei pela profundidade dos tempos. Esse homem foi a causa da minha existência; por tal razão o protegi.
Estou a escrever em português, mas a minha língua original é muito, muito diferente desta. É verdade, tenho também a capacidade de ser poliglota. Por tudo isto imagine-se o incomensurável poder do meu criador- conseguir dar vida e identidade a um elemento, ainda que semi-valioso, não passa, no entanto, de um elemento inerte.
Espreguiço-me de tanta inactividade. Fui criada há dez mil e cinquenta e nove estações, tendo passado a esmagadora maioria delas apenas observando. Bem, quando me refiro a inactividade, refiro-me à física, pois no que concerne à actividade mental e intelectual, tenho sido uma moira de trabalho. Observei, interpretei, interiorizei e compreendi todo o ambiente que me rodeia; por outras palavras, acrescentei ás memórias da minha própria identidade as recordações históricas que pertencem ao chão onde me depositei há dez mil e trinta e oito estações, ou seja, vinte e uma estações depois de ter sido criada.
A memória das minhas origens é fértil em beleza, capacidade criativa, inteligência, amizade, amor e magia; mas também tem o seu lado sórdido: a inveja, a cobiça e a maldade. E no meio de tudo isso, existem acontecimentos de que os homens de hoje em dia são sabedores, mas também existem os acontecimentos que tiveram lugar paralelamente aos anteriores, que apenas são substância na estrutura fria de mim própria; e são os acontecimentos, vizinhos dos que constam na história universal, que constituem a minha memória. E só em mim existem; escusam de os procurar nas vossas enciclopédias, porque lá não os encontram. Tal é a força do meu ser!

O primeiro momento destas minhas recordações, tem início precisamente há dez mil e cinquenta e nove estações, em plena estação de Peret, quando as águas do rio Nilo regressavam ao seu leito. Mais uma estação das cheias que terminava. Como sempre acontecia, era a época em que os «felas», nome dado aos camponeses do Egipto, iniciavam as sementeiras. As terras estavam moles pela saturação de água do rio Nilo, e impregnadas de sedimentos que o rio nelas depositara, tornando-as extremamente férteis. Era uma imensa azáfama. Os homens, de tronco nu, apenas envergando um saiote de linho, que lhes rodeava a cintura, curvados sobre a terra amiga, manuseando as suas alfaias. Eram milhares e milhares, que se iam distribuindo pelas margens do Nilo, rodeados sempre por exóticas palmeiras e tamareiras, próprias dos climas tropicais. Ali residia uma das grandes riquezas do Egipto- a sua agricultura.
É verdade, eu sou egípcia; é sobre o Egipto que vos quero falar, que convosco quero partilhar as recordações daquele meu país distante, geograficamente falando, mas muito mais distante no tempo...(em continuação, pág. 3)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

LARANJAS AMARGAS EM OLIVENÇA

Da minha consulta ao médico galego a que fiz menção no tópico «sopram bons ventos da Galiza», ficou-me o espanto que ele denotou pelo facto dos seus amigos portugueses não demonstrarem qualquer interesse pela questão de Olivença. No entanto, isso não quer dizer que todos os portugueses assim procedam. Ainda hoje Olivença é assunto de conversa em Portugal; ainda hoje é fonte de algum azedume em relação a Espanha, muito embora o governo português considere que Olivença é folclore. Possivelmente é pelo facto de folclorizarmos questões internacionais, que fomos empurrados para a cauda da Europa e de lá não saímos. Ganhámos gosto à «lanterna vermelha» e não há quem nos consiga fazer sentir que estar-se sempre no fim do comboio pode não ser grande ideia. E se porventura alguém surge com um pouco mais de iluminação, é um «bota-abaixismo» que é de fugir.
Corria o ano de 1792 quando a revolução francesa decapitou o rei Luís XVI. Este acto pôs em polvorosa as grandes potências monárquicas europeias, que em uníssono decidiram fazer guerra à jovem república francesa. Nesse sentido a Península Ibérica comungou do sentimento de afronta, pelo que Portugal e Espanha enviaram os seus exércitos para combaterem a barbárie francesa, na que ficou conhecida como a Campanha do Rossilhão...que correu muito mal para espanhóis e portugueses. Durante os três anos seguintes, as batalhas que então aconteceram tiveram sempre como derrotados os Ibéricos.
E porque nessa altura já estava instituída a nacional pasmaceira, o ministro e general espanhol Manuel de Godoy, ao serviço se Suas Majestades os reis espanhóis Carlos V e a rainha Maria Luisa,assinou, em segredo, a paz com os franceses, em 1795, através do Tratado de Basileia. Em resultado desse tratado, o ingénuo governo português viu-se a braços com um gravíssimo problema: estava sózinho em guerra com a França. Portugal tudo fez para fazer a paz, mas Napoleão Bonaparte determinou que a paz apenas seria possível com uma condição: Portugal deveria fechar os seus portos a todos os navios ingleses, exigência que, pela aliança de séculos, era impraticável e foi-o.
Mas que grande Rossilhão arranjámos! A França manteve-se como potência inimiga de Portugal, e vendo que a Inglaterra continuava, impávida e serena, a utilizar os nossos portos, fez com que a Espanha nos invadisse. E assim, Godoy, à frente do exército espanhol, em Maio de 1801, entrou em Portugal pelo Alentejo, tomando algumas localidades, entre elas Olivença. Essa invasão foi plenamente pacífica. Mesmo sem o recurso às armas, Portugal deixava-se invadir. Tempos viriam, que não tardariam, em que os portugueses se iriam tornar em exímios soldados. Espanha fez uma invasão pacífica, porque os reis espanhóis eram pais da rainha portuguesa, à época D. Carlota Joaquina. Manuel Godoy, em demonstração da sua pacifica conquista e lealdade para com os seus soberanos, enviou à coroa de Espanha um ramo de laranjeira, cortado de uma laranjeira alentejana. Esse acto apelidou essa guerra como a guerra das laranjas. Assim ficou conhecida para a história.
Em Junho desse ano de 1801 foi assinada a paz entre os dois países ibéricos, no Tratado de Badajoz, com a obrigação de Portugal fechar os seus portos aos navios ingleses, obrigando-se Espanha a entregar todas as localidades tomadas. Portugal continuou a não fechar os portos aos ingleses e Espanha entregou todas as localidades tomadas, excepto Olivença. Não contente com isso, poucos anos depois uniu-se aos franceses no decurso das invasões francesas a Portugal.
Em 1808, o general inglês Beresford entrou em Olivença, à frente de tropas portuguesas, reconquistando a cidade para a bandeira portuguesa, mas, incompreensivelmente, entregou-a à administração espanhola. Já nessa altura a corte portuguesa se encontrava no Brasil.
Poucos anos depois Napoleão foi, finalmente, derrotado, pelo que capitulou no Tratado de Viena. Nesse Tratado foi reconhecida a nulidade do Tratado de Badajoz, pelo que Olivença deveria ser entregue a Portugal, o que não aconteceu. Por essa altura, Portugal tomou Montevideu, pretendendo com essa conquista fazer uma moeda de troca- Montevideu por Olivença. Aconteceu então a independência do Brasil e Portugal deixou de ser a potência dominante naquela zona do mundo. Naturalmente Montevideu regressou à posse de Espanha...adeus Olivença.
Olivença, hoje Olivenza, conta uma história apenas portuguesa, bem patente nos seus monumentos: um castelo eregido por D. Dinis, uma torre mandada construir por D. João II, o palácio do Conde de Olivença, Rui de Melo, que ostenta um magnífico portal carregado de símbolos portugueses- a Cruz de Cristo, Esferas Armilares e as Cinco Quinas, a Igreja de Santa Maria Madalena, construída por Frei Henrique de Coimbra, o prelado que disse a primeira missa em terras de Santa Cruz. Guarda-se o Foral Manuelino datado de 1510.
Dizemos que o tempo tudo resolve. A experiência diz-nos que esta expressão é muito verdadeira. Se assim é, em relação a Olivença, o tempo já resolveu.
Mas a história, que muito se traduz no que as pedras nos têm para contar, continua a dizer-nos que o que o tempo resolveu, resolveu-o mal.
O meu médico galego disse-me que a língua portuguesa é proibida em Olivença. Se assim for, percebe-se bem porquê.
Quando o corpo não fala a língua da alma, corre-se o risco de perigosas incompatibilidades.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

ENTRE LOBITO E AVEIRO SE CONTA UMA AMIZADE

...- Dos três filhos do meu irmão, o Narciso è o sobrinho por quem nutro menos simpatia, isso è certo. De certa forma a opinião que tenho dele vai de encontro à descrição que tu dele fizeste. Acho-o pouco simpático, muito exibicionista e demasiado convencido. Resumindo, deve muito à boa educação. Mas de forma alguma responsabilizo o meu irmão por isso. Aos seus três filhos ele deu, por igual, uma boa educação. Mas as pessoas não são todas iguais. Os filhos são uma fonte de alegrias, mas também podem criar grandes problemas aos pais.
- Onde estão os filhos da senhora?
- Eu não tive filhos meu caro jovem. Deus não me concedeu essa graça- disse a senhora tristemente.
- Foi pena, porque a senhora D. Silvina teria dado uma excelente mãe.
- Porque dizes isso? Tu não me conheces.
- Habituei-me a viver com um sexto sentido, que me informa sempre quem são as boas e as más pessoas. E para fazer essa distinção não preciso de muito tempo. A senhora è uma óptima pessoa.
D. Silvina sentada no sofá, com as mãos sobre as pernas, sorriu levemente. Quando ia falar, foi interrompida pela entrada do criado negro. Armando segurava um enorme tabuleiro, onde transportava um bule, duas chávenas e um prato repleto de convidativos bolos secos. Ao colocar o tabuleiro numa pequena mesa, feita também de pau preto, situada entre a patroa e Serôdio, D. Silvina disse:
- Sabes Armando, este jovem veio-me avisar de que o meu sobrinho Narciso se prepara para esta noite vir assaltar esta casa, na companhia de mais três rapazes.
- Senhora, isso não pode ser verdade.
- E porque não?- perguntou D. Silvina.
- Porque eu nunca conheci ninguém que fosse roubar a própria família.
- Isso não è razão para não dar crédito ao que este jovem veio cá dizer. Infelizmente há por ai muitos casos desses.
- O menino Narciso è mau, mas acho que não faz isso à tia dele.
- Porque è que tu dizes que ele è mau, Armando?
- Porque ele trata-me sem respeito nenhum, por eu ser preto.
- Eu nunca me apercebi disso- disse a senhora.
- Pois não, porque trata-me mal e chama-me nomes só quando a senhora está longe.
- Já me devias ter contado isso.
- E ir aborrecer a senhora? Nem sei porque è que eu disse isto agora.
- Come jovem- disse D. Silvina, dirigindo-se a Serôdio- está à tua vontade. Podes-me repetir o teu nome?
- Chamo-me Serôdio.
- Serôdio? È fora do vulgar.
- Sim, não se vêem muitos- respondeu o rapaz.
- Agora não sei que medidas hei-de eu tomar para prevenir a minha segurança, numa hipotética situação como essa.
- A senhora chama a policia- disse Armando.
- Policia? Não! Caso esta história esquisita se venha a tornar realidade, eu não posso fazer isso ao meu irmão. Mandar o seu filho para a prisão, Deus me livre.
- Eu compreendo- disse Serôdio depois de beber um pouco de chá e de já ter comido dois bolos- mas como se irá sentir o seu irmão se o Narciso vier a fazer algum mal à senhora?
- Antes de fazer mal à senhora ele tem de passar por mim. As catanas ainda...
- Armando, proíbo-te de teres pensamentos violentos. Se ele cá vier tudo se há-de resolver.
- Se a senhora D. Silvina não se importar, eu posso cá pernoitar. Ficamos os três acordados, com as luzes apagadas. Se eles entrarem, acendemos as luzes e recebêmo-los.
- E os teus pais não se importam que chegues tarde a casa?
- Eu telefono-lhes. Eles compreenderão. Estão habituados a confiarem em mim- respondeu o rapaz sorrindo.
- Então assim seja. Jantas cá em casa e conversamos um pouco. Se nada acontecer tanto melhor. Não haverá razões para preocupações, e eu com certeza terei encontrado um amigo.
- Já encontrou D. Silvina, já encontrou- disse Serôdio com um expressivo sorriso a inundar-lhe o rosto.






O pai de Serôdio não ficara nada satisfeito ao saber que o filho se encontrava quase na qualidade de guardião de uma viúva. Mas como também achou aquela história um perfeito disparate, sem o mínimo de credibilidade, não insistiu para que o filho se viesse embora. Se tinha cabimento um sobrinho ir assaltar a tia! Uma imaginação fértil por parte dos rapazes, bem ao jeito das histórias do Robin dos Bosques… e uma viúva, que por certo se sentiu seduzida pela ideia de ter um jovem rapaz a velar por ela, eis no fundo ao que ficava confinada aquela questão. Mas servia este assunto para demonstrar a nobreza de carácter que o seu filho Serôdio possuía. Sim, porque o seu filho Serôdio no fundo estava plenamente convencido de que na realidade existia um ladrão, que naquela noite iria atacar a casa da viúva, onde o seu filho corajosamente o aguardava. Deixá-lo viver aquela fantasia! Era inofensiva e fortalecia-lhe o ego.
Entretanto na casa « Lobito de Benguela» o jantar decorrera magnificamente. O criado negro, Armando, cozinhara um suculento frango de caril. Serôdio achara a comida fortemente apaladada, com sabor africano. Bebera quase duas garrafas grandes de gasosa. Depois do jantar, o rapaz e a senhora de preto instalaram-se na sala africana. Ao fim de algumas horas de convívio, ela considerava Serôdio como uma pessoa muita amiga. No fundo do seu intimo, nascia a vontade de o adoptar como seu filho, um filho que ela nunca pudera ter.
- A senhora D. Silvina tem esta sala deslumbrantemente decorada- disse Serôdio.
- Mas olha que a decoração não è minha- disse D. Silvina tratando o rapaz por um tu muito mais cordial e afectuoso- eu vivi muitos anos em África, mas sempre abominei a selvajaria. Acho pouco cristão caçarem-se os bichos por mero desporto. Mas fui-me habituando. O meu falecido marido adorava tudo isso. Para a Metrópole foi enviando os trofeus de caça que ele considerava serem os mais bonitos. Numa casa que tenho perto de Vagos encontram-se lá muitos mais. Esta casa onde estamos, foi toda desenhada por ele. E esta sala, que è o salão nobre, decorou-a ao seu inteiro gosto. Depois da sua morte eu não toquei em nada, respeitando assim a sua vontade.
- Viveram então muitos anos em África?!
- Sim, mais propriamente em Angola. Fizemos quase toda a nossa vida no Lobito, por isso o nome da nossa casa. Casámo-nos na igreja pequenina que se encontra ao lado do Museu de Santa Joana, em 1944. Eu tinha vinte anos de idade. O Raúl era mais velho do que eu dois anos. Nessa altura era alferes da Academia. Quando rebentou a guerra em Angola, em 1961, o Raúl tinha sido recentemente promovido a major. Ele foi mobilizado e eu quis ir com ele. O meu marido gostou tanto daquela terra, que pediu ao Estado Maior para lhe prolongarem a comissão de serviço. Por lá ficamos até ao vinte cinco de Abril. Durante esses anos, muitos carregamentos o meu marido enviou para aqui. Hoje temos um grande espólio africano, que em muito enriquece o nosso património.
- Na sua opinião, senhora D. Silvina, caso o seu sobrinho aqui venha mesmo, o que terá ele em mente? Algo desse espólio?
- Não, dinheiro, apenas dinheiro- respondeu a senhora- tenho ainda o mau hábito de guardar uma certa quantia em casa, e o meu sobrinho Narciso sabe perfeitamente que guardo esse dinheiro num cofre que se encontra embutido na parede, por detrás daquele quadro- e apontou para um enorme quadro, onde indígenas se espalhavam por uma savana de África, de lança em riste, na caça a um leão, que no meio deles, de juba alvoroçada, tentava escapar ao cerco que lhe era montado- reparaste Serôdio, com que naturalidade eu te revelei a existência do cofre?
- Realmente, eu nem sei que diga...
- Não digas nada. Isto è sintoma de que confio em ti...(em continuação- pág. 23)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A LOBITO DE BENGUELA- UMA MIGALHA DE ÁFRICA

...- O jovem moço acompanhe-me- disse o criado negro sorrindo.
Quando ambos entraram no interior da casa, por momentos Serôdio perdeu-se nos motivos exóticos que se viam por toda a parte: eram peças de mobiliário em pau preto, desde magníficas estantes exibindo cenas em baixo relevo de uma qualquer mashamba, passando por belas estatuetas de arte indígena, que colocadas junto às paredes, contavam ao visitante histórias de Angola. Depois existiam ainda os soberbos troféus de caça. Logo à entrada uma cabeça de impala com a magnífica pelagem castanha e compridos chifres, dava as boas vindas a quem entrava. Ao fundo de um comprido corredor, o visitante deparava-se com uma enorme cabeça de búfalo africano, que com a armação de poderosos cornos e um olhar vítreo e feroz, fazia nascer um arrepio na espinha a quem pela primeira vez olhava para aquele troféu. Serôdio passou pela cabeça do búfalo, mas instintivamente desviou-se dela o mais que pôde.
Guiado pelo criado negro entrou finalmente num enorme salão. África inteira explodia ali. Por cima de uma lareira, uma portentosa e quase viva cabeça de leão vigiava todo o salão, ostentando as suas poderosas mandíbulas, cravejadas de arrepiantes e enormes dentes, e ainda uma imponente juba. Por toda aquela divisão eram visíveis ainda uma cabeça de javali africano, um suricata embalsamado, mantendo-se na vertical como se na realidade estivesse em posição de vigilância, dois enormes dentes de elefante, que se posicionavam cruzados, exibindo o branco sujo do marfim, e imensos artefactos africanos, desde alfaias agrícolas até armas de guerreiros tribais, tais como lanças e compridos escudos de couro forrados a pele de leopardo e de chita.
Maravilhado com tanto exotismo, Serôdio não dera pela presença da senhora vestida de negro. Ela, de imediato simpatizara com aquele moço. Alto, magro, olhos de um azul profundo, cabelo curto espetado de um loiro escuro, irradiava bondade e simpatia. Apercebendo-se de que ele não dera conta da sua presença, deixou-o deleitar-se um pouco com aquela fechada e silenciosa migalha de África. Depois perguntou:
- Aprecias motivos africanos?
Ao som daquela voz feminina, Serôdio caiu em si com um pequeno tremor.
- Desculpe-me minha senhora, não reparei que a senhora estava presente.
- Sim, eu notei isso. Chamo-me Silvina, Silvina Conde de Mendonça- disse a senhora estendendo a mão direita para um cumprimento.
- Eu chamo-me Serôdio Almeida César Velasques- disse o rapaz, retribuindo o cumprimento.
- Aprecias África?
- Sim, embora nunca lá tenha estado. Deve ser um continente maravilhoso. Segundo parece, serviu de berço à espécie humana. Estava longe de imaginar que houvesse em Aveiro um espaço com sabor tão forte a África.
- Todas estas peças são memórias do meu falecido marido. Tomas qualquer coisa?
- Não... muito obrigado...
- Talvez um chá e uns bolinhos secos?
- Bem, se não for incómodo...- retorquiu Serôdio, cujo vazio do estômago não deixou que recusasse tal oferta.
- Não è incómodo nenhum- depois a senhora dirigiu-se ao criado negro dizendo- Armando, vai fazer um chá preto e traz também um tabuleiro de bolos de mel.
- Sim senhora, è só um momento- disse o criado negro abandonando a sala.
- O Armando è outra recordação de África- disse a senhora quando o criado abandonou a sala- è quase uma herança. Começou a servir-nos em 1963, tinha ele treze anos apenas. Quando se deu o 25 de Abril, o meu marido quis trazê-lo. Fiel como o Armando foi a um militar colonialista, o meu marido temeu pela sua vida.
- O marido da senhora foi militar?
- Sim, era o coronel Silva Mendonça. Morreu há um ano. Um antigo ferimento de guerra, que nunca se curou definitivamente, degenerou e matou-o. Mas não falemos disso. Qual è a razão que te fez vir conversar com uma velha viúva? Já sei que és colega do meu sobrinho Narciso. È algo relacionado com ele?
- Bem, senhora D. Silvina... não sei se será um disparate o que eu vou dizer- começou o rapaz, falando pouco à vontade- efectivamente o que me traz aqui è algo que se relaciona com o Narciso.
- Muito bem. E também se relaciona comigo?
- Sim, a senhora está envolvida.
- Mas em que mistério me terá envolvido o meu sobrinho?! Nós quase não nos vemos. E eu tenho a impressão de que ele não morre de amores por mim- disse a senhora com um ligeiro sorriso nos lábios.
- Também me parece que não.
- O que te leva a dizer isso?
- Bom, esta manhã um colega meu ouviu uma conversa entre o Narciso e o grupo dele. Combinavam vir assaltar a casa da senhora esta noite.
- O quê?! O meu próprio sobrinho vir assaltar a minha casa? Isso è um perfeito disparate.
- Pois... eu também achei que talvez fosse disparate... mas...
- Diz-me uma coisa meu caro jovem, o que te leva a supor que o meu sobrinho seja capaz de cometer um acto desses?
- Minha senhora, desculpe-me. Eu já estou arrependido de cá ter vindo, mas preocupei-me com a senhora...
- Mesmo sem me conheceres?
- Sim, porque mesmo não a conhecendo, senti que alguém podia estar em perigo. E se amanhã eu viesse a saber que algo tinha acontecido aqui? Eu não iria ficar bem com a minha consciência, pois nada fizera para evitar o que quer que fosse.
- Compreendo. Mas não respondeste à minha pergunta. Quais as razões que te induzem a pensares que o meu sobrinho Narciso seja capaz de tal acto?
- Na turma ninguém gosta dele, excepto três rapazes que com ele formam um grupo. Eles exigem que as raparigas trabalhem por eles. Permanentemente exibem uma postura agressiva, sempre prontos para a violência. Não respeitam quem quer que seja. São uns autênticos rufiões. E depois, o meu colega que ouviu a conversa, não conhecendo a senhora, nem esta casa, disse-me que a senhora vive aqui apenas na companhia de um criado negro.
- Caramba, esse teu tal colega disse-te isso?
- È verdade, ouviu-o da boca do seu sobrinho, D. Silvina.
- E tu ao veres o Armando consideraste como provada a veracidade dessa história, è isso?
- È isso mesmo minha senhora...(em continuação- pág. 19)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A NOITE DO OVNI



Porque li numa noticia online que Barack Obama, para o final do ano, irá revelar alguns segredos relacionados com o fenómeno ovni (UFO em inglês), lembrei-me daquela noite.

Alfeizerão, 10 de Agosto de 1977, dez e meia da noite.
Suponho que seria um Sábado. Lá em casa decorria um jantar que os meus pais ofereceram a amigos. Para um jovem de 21 anos, estava a tornar-se uma verdadeira seca. Decidi vir à rua fumar um cigarro. Decidi, ou alguém, ou alguma coisa, decidiu por mim. Foi uma dúvida que sempre permaneceu e se mantém.
Iniciava a descer as escadas exteriores quando senti necessidade de olhar para o céu. Na noite escaldante, o céu encontrava-se divinamente estrelado. Imediatamente me apercebi de umas luzes em movimento, que a principio tendiam confundir-se com as estrelas. Mas os meus olhos não mais se despegaram daquele movimento de luzes. Gradualmente as luzes foram-se desprendendo da teia estrelar, ganhando intensidade, aumentando de tamanho. O que quer que fosse ia-se aproximando de mim.
Eu estava imóvel, com um pé num degrau e o outro pé no degrau mais abaixo, agarrando firmemente o corrimão, com a cabeça completamente inclinada para cima. As luzes foram-se aproximando, até que construíram uma forma- uma forma oval.
Decididamente o que se aproximava de mim, lá em cima, era um aparelho. Aproximou-se...aproximou-se, até que parou. Ficou completamente imóvel, tanto quanto eu. Deduzo que não estaria a mais de cem metros de altura. A forma oval era composta por dez focos luminosos, luzes intermitentes, que iam do vermelho ao verde, passando pelo azul. Subitamente, do meio dessas luzes acendeu-se um foco de luz amarela, muito maior, que projectava um raio de luz espessa. Não o sei definir de outra forma. O aparelho emitia aquele raio de luz que descia alguns metros para baixo e era literalmente sugado pela fonte, repetindo-se de novo a projecção daquela luz estranha, e uma outra vez, e mais uma.
O aparelho estava no maior silêncio. Tive então consciência de que estava na presença de um ovni. Senti, ou fizeram-me sentir, que eu também estava a ser observado. Meu Deus, eu tinha que compartilhar aquele momento maravilhoso com outras pessoas. E em minha casa estavam algumas. Abri a boca para gritar, chamá-los...não tinha voz! Tentei de novo. Articulava palavras sem som. E o raio de luz amarela continuava a ser projectado e a ser recolhido. Não sei, mas este meu encontro imediato terá durado cerca de um minuto. Depois, a luz amarela deixou de ser emitida, o aparelho pôs-se em movimento, lentamente, e com uma velocidade louca fundiu-se de novo nas estrelas, para lá dos montes do Casal Pardo.
E eu já falava. Bem me adiantava!! Já nada havia para mostrar.
É claro que contei a minha experiência. É claro que só vi sorrisos de quem, no seu cepticismo, sorria apenas para ser simpático e evitar de me chamar maluco,sorrisos esses que devem existir, neste momento, nos rostos de muitos dos que estão a ler estas palavras.
Mas este momento extraordinário vivi-o na minha juventude, e guardei-o ciosamente, responsavelmente, para que nenhum pormenor dele se perdesse no tempo. Já lá vão 32 anos e relatei-o como se o tivesse vivido há minutos.
Nesse mês de Agosto de 1977, pelo mundo fora, foram muitos os relatos de experiências com naves extraterrestres.
Ao ver o filme Encontros Imediatos do 3º Grau, senti que ali existia muito mais realidade do que a grande maioria poderia ou poderá pensar, porque eu vivi algumas cenas do filme.
Há 32 anos que procuro no céu uma outra visita.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

DANÇAREMOS...DEPOIS DE ANGOLA



...Era uma bela tarde de Sábado. A sala, comprida, estava apinhada de gente. Ao centro existia uma longa mesa cheia de bolos, sanduíches, muitas fatias de carne assada, e duas caçoilas de barro preto contendo chanfana. Pela mesa fora estavam distribuídas muitas garrafas de « laranjina c», gasosa da « canada dry», cerveja « sagres», « topázio » e « onix» e garrafas de vinho. Os convidados eram rapazes e raparigas. Num dos cantos da sala existia uma aparelhagem de som « philips». No gira-discos passava um long play dos Pink Floyd, o álbum « Dark Side of the Moon». Aquela sonoridade nova, aquela mensagem, aquele fogo de vida envolvia aqueles jovens, transmitindo-lhes sensações inebriantes, transformando-os em pequenos gnomos de uma floresta onde o amor e a magia impregnavam tudo. Quem estivesse do lado contrário àquele onde se encontrava a aparelhagem, podia sentir a música entrelaçar-se e rodopiar pelo meio do sussurro das vozes.
Álvaro estava deleitado. Não se lembrava, nem se queria lembrar, de que daí a três dias embarcaria no navio Vera Cruz, que o levaria a África, até Angola. Todos lhe demonstravam a sua amizade e a sua solidariedade. Abraçada a ele, sem o largar, estava uma moça maravilhosa, divinalmente loira, com olhar de esmeralda, que de vez em quando deitava carinhosamente a cabeça no seu ombro. Era Catarina, a Catarina Martins, sua namorada e madrinha de guerra. De quando em vez beijavam-se, o que provocava uma explosão de aplausos, gritos e assobios. Álvaro então sorria e não permitia que uma lágrima mais indisciplinada lhe aflorasse aos olhos, pois isso a acontecer iria revelar o turbilhão de sentimentos em que a sua alma estava mergulhada, por viver aquela festa...de um adeus temporário... ou um adeus definitivo.
Que juventude tão sofrida aquela! Que grande ponto de interrogação existia na vida daqueles jovens! Formar um futuro, que maravilha! Vamos depressa que a vida não espera! Vamos... alto, espera aí! Tens de parar. Recua um pouco, toma balanço, muito balanço... corre agora, isso, com velocidade, passa por cima desse fosso. Não olhes para baixo, olha sempre em frente. Tem confiança, tem fé. Esse fosso chama-se guerra... guerra colonial. Se o conseguires transpor, se fores capaz de chegar ao outro lado, isso quer dizer que a tua paragem no tempo terminou e vais voltar a ser tu próprio, com a tua personalidade, os teus ideais, caminhando em direcção ao futuro que esperou por ti. Se por azar tropeçares e caíres no fosso... olha amigo, talvez um dia as gerações futuras saibam reconhecer a tua dádiva, mas só talvez! Não te prometo!
Álvaro encontrava-se bem no meio da pequeníssima multidão que a sua casa viera, para com imensa energia o impregnarem de bons fluídos, que o ajudassem a ultrapassar as armadilhas da guerra, o protegessem das sombras esquivas e letais da guerrilha. A todos Álvaro sorria e de todos já sentia saudade. Principalmente da sua querida Catarina, que o não largava, agarrando-se a ele ansiosamente, sentindo o pulsar de todas as suas células. Ela queria manter aquela sensação por muito e muito tempo. Seria uma forma de o sentir permanentemente junto a si. A saudade já martirizava e ele ainda ali estava.
Álvaro era um rapaz de altura mediana, com ombros largos e maciços. De cabelo bem preto e rosto comprido e magro, irradiava simpatia. Nos seus olhos profundamente castanhos e leais, residia o amor. Era sem dúvida uma agradável companhia, que sabia honrar uma amizade. Puxara ao seu pai, o enfermeiro Victor.
No gira discos alguém pusera a tocar o single « We shall Dance» de Demis Roussos, e como obedecendo a um impulso ordenado por aquele música, todos os casais se uniram num enlace perdidamente inflamado de paixão. Quase estáticos dançavam.
Catarina, com os braços rodeava o pescoço de Álvaro. Levemente lhe roçava o rosto com os lábios. Álvaro abraçava-a com avidez, enquanto o seu rosto se embrenhava no belo cabelo loiro dela. Naquele momento, em que aquela louca canção, emanando do gira discos, era o único som ali audível, Álvaro recuou alguns anos. Recordava os dias em que despreocupadamente percorrera as ruas de Coimbra. Quando em criança, na companhia de outros miúdos, formava grupos por altura dos finados, e andava à noite pelo bairro onde morava, com uma caixa de sapatos na qual se fizera alguns furos, que formavam um rosto disforme, e no interior da caixa se depositara uma vela acesa. A luz da vela fluindo pelos « olhos, nariz e boca» da caixa de sapatos, construía um certo cenário macabro. E era esse cenário o mais ideal para, de porta em porta, se cantarem os « bolinhos e bolinhós ». E assim, nos dias 30 e 31 de Outubro de cada ano, os grupos de miúdos andavam numa saudável competição em busca das casas mais ricas, pois quanto mais próspera fosse « a senhora que está lá dentro assentada num banquinho faz favor de cá vir fora p’ra nos dar um tostãozinho », mais esperanças havia de que esse tostãozinho se transformasse em cobiçados escudos.
Recordou os tempos em que a adolescência irreverentemente o possuíra e em que, na companhia dos aventureiros dos « bolinhos e bolinhós », passeavam agora pelas Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz, onde gostosamente faziam as suas tão ansiadas « piscinas », enquanto discutiam as dificuldades que o poder organizado levantava à propagação do amor, o amor livre.
Lembrou-se dos inúmeros bailes particulares em que participara, onde eles alunos do Liceu D. João III, e elas alunas do Liceu D. Maria, durante a semana privados de se comunicarem, naqueles bailes aos fins de semana, feitos em garagens e por vezes em quartos, se desforravam da frustrante privação.
Lembrou-se do delírio que se viveu em Coimbra, quando no Teatro Gil Vicente foi passada durante algumas semanas a ópera rock « Jesus Christ Superstar ». Foi nesse louco e estranho ambiente de união entre o sentimento cristão e uma excepcional música rock, que Álvaro conhecera Catarina. Ela sentara-se à frente dele e ambos se observaram. Quando no ecrã, Madalena cantava a faixa « I Don’t know how to love him », Álvaro aproximou-se da nuca dela e sussurrou-lhe aos ouvidos:- « deliciosa e desconhecida loirinha, não queres ser a Madalena da minha vida? ». Ela nada respondeu, mas no final do filme, quando abandonava o seu lugar, olhou-o com os seus celestiais olhos verdes e sorrindo perguntou-lhe:- « tens coragem para seres Cristo? ». Nesse momento Álvaro teve a certeza de que ali, numa incógnita tarde de Domingo, encontrara uma diva que queria enriquecer os seus dias.
Abraçado a Catarina, inspirando o cheiro do seu cabelo, flutuava com ela ao sabor da música que docemente lhes inflamava a paixão, já de si arrebatadora. Vagueou com os olhos pelos outros jovens que como ele cativos estavam da canção sedutora, que do gira discos fluía numa harmoniosa alegria de viver. E lembrou-se que muito brevemente iria deixar de usar calças « à boca de sino », a moda que os jovens adoravam. E não as vestiria por um longo período, porque todo o tempo futuro seria uma época, apenas e só do camuflado. Com ele iria viver a guerra, iria ver matar, iria ver morrer, iria matar e poderia... para quê pensar?
Recuou ao passado recente em que pela primeira vez conhecera Mafra e tomara contacto com o imenso « Calhau ». Fora no « Calhau » , no Convento de Mafra, onde estava instalada a Escola Prática de Infantaria, também conhecida pela sigla « EPI», que fora incorporado no C.O.M, o Curso de Oficiais Milicianos, de que muito se orgulhava. Mafra ficara sem segredos para si. No Alto da Vela, na extensa planície onde estava o velho e ferrugento carro de combate, no vale escuro, na pista do P.D.I., nos quatro caminhos e na Tapada Real conquistara a patente de aspirante, da qual se despedira havia poucos dias, quando às portas de viajar até Angola, fora promovido a alferes. Recordação pouco consentânea com o ambiente de festa que o envolvia. Mas se todos ali estavam, era porque ele estava na tropa e a tropa o levava para longe. Se o amor o envolvia, a tropa também. Afinal, talvez aquela recordação não fosse tão desajustada assim.
A agulha correu pelo disco e foi-se aninhar no seu lugar de descanso. A música acabara. Os amantes, que mutuamente viveram aqueles poucos minutos de magia, separaram-se, e todos sorriam...(em continuação pág. 45)

in VISITADOS

Novembro/1999

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

À MESA, O DÉFICE DE PORTUGALIDADE

...- Foi uma boa opção ter escolhido este restaurante, senhor Victor. Há muito tempo que eu não comia leitão tão saboroso.
- Então meu caro Rui, para leitão só mesmo o príncipe dos restaurantes da Mealhada. Vim aqui muitas vezes com o Álvaro.
- Toma um cafézinho?
- Sim e também um digestivo. Hoje apetece-me cometer uma infracção aos meus hábitos alimentares. Venha de lá um velho brandy Constantino. Mas se não se importa Rui, vamos tomar a bica para o bar do restaurante. Estamos mais à vontade para conversarmos.
- Vamos sim. Estou ansioso por ouvir o muito que tem para me contar.
- Um dia passado com um velho não o aborrece?
- Senhor Victor, ser-se velho è sinónimo de uma anterior juventude. Os novos têm de aprender a ouvir os velhos. A velhice è o curso superior da vida. Que seria de toda a juventude se não tivesse uma velhice em quem se apoiar?
- Engraçada essa imagem Rui. Você tem razão. Eu aprendi muito com o meu avô. Embora conheça jovens excepcionais, outros há, desprovidos de valores, medíocres, idiotas, nada civilizados, pseudo-educados, filhos de uma mentalidade anárquica que se diz democrática, emergente, que consideram que os velhos são um produto do passado e que por tal motivo não têm lugar no presente. Sabe, além dessa forma nova de se viver Portugal, existe a outra, a omnipresente, essa secular mentalidade tão nossa inimiga. Somos um povo apaixonado. Apaixonamo-nos pelo estrangeiro que nos visita, sem nos ofendermos com a falta de interesse que ele revela por nós, quando esporadicamente visitamos o seu país. Apaixonamo-nos pelos dramas de outros países, quantas vezes não reparando nos dramas que ocorrem à nossa porta. Somos apaixonados pelo produto estrangeiro, desprezando por completo o produto nacional. Apaixonamo-nos por tudo quanto è consumo, quantas vezes sem nos vir à ideia se a nossa carteira terá capacidade para tanto. E os problemas surgem...sofrerá o nosso povo de um recalcamento colectivo? Ainda andaremos nós à procura de algo que perdemos? Será que nos sentimos ainda confusos e órfãos?
- Órfãos??
- Sim, não se esqueça Rui, de que sofremos um colapso com a perda do nosso rei D. Sebastião, e que não tem havido nevoeiro suficientemente poderoso para o devolver a Portugal. Em 1578, na batalha de Álcacer-Quibir, ficámos terrivelmente mutilados. O nosso poderio diluiu-se. Passámos do topo do mundo para os seus arredores. Não lhe parece estranho que um país como Portugal, que nos séculos XV e XVI foi uma potência mundial, seja hoje totalmente desconhecido para muitos, e para outros considerado uma província espanhola?
- Bem, de facto, as coisas vistas por esse prisma parecem realmente não terem muita lógica. Mas sabe senhor Victor, isso nunca me preocupou muito...
- Pois aí reside muito do nosso mal, caro Rui. È precisamente pelo facto de os portugueses não se identificarem com a sua história, que o nosso país è pouco considerado no estrangeiro. Não sabemos preservar, nem tão pouco cultivamos o orgulho pelos nossos notáveis antepassados. O meu amigo vai a Verona, em Itália, e lá encontra um túmulo muito visitado, o qual pertence ao par amoroso Romeu e Julieta. E no entanto esse par nunca existiu. È pura ficção. Mas os italianos honram a memória e o talento de William Shakespeare, que nem sequer era italiano. Aqui, em Portugal, temos a memória de um par verdadeiro, tragicamente apaixonado e pertença da nossa história, o nosso rei D. Pedro I e Inês de Castro, sepultados no Mosteiro de Alcobaça, e quase ninguém os visita. Pergunte à maioria dos portugueses se sabem quem foi Inês de Castro, onde está sepultada, e verá que respostas obtém.
- Mas isso será assim tão importante senhor Victor?
- Para quem è português sem ter sentimentos de patriotismo, è evidente que a história nada tem de interessante nem de importante. Mas para quem è orgulhosamente português, vivendo com a esperança e a preocupação de que o seu país suba no conceito do mundo, è óbvio que a vida dos portugueses do passado tem muita importância.
- Pensando assim, não se cairá num nacionalismo doentio?
- Gostar do que è nosso não è doença nenhuma. Desprezar a nossa memória colectiva è quebrar o vínculo ao que de mais profundo existe em nós, enquanto povo. E isso pode ser perigoso. Talvez por essa razão existam tantos portugueses que não estão minimamente preocupados em colaborarem no progresso do país. Ser nacionalista, gostar do que è nacional, è apenas e só manter bem viva a alegria de ser ter nascido num determinado país. Olhe o exemplo das grandes potências: todos eles estimam a sua história.
- O senhor Victor è uma pessoa muita crítica. Eu talvez não seja tão radical, mas reconheço que o conhecimento da história portuguesa não è motivo de interesse para a maioria dos portugueses. E vejo agora que o senhor teve muita influência no seu filho. Era assim que ele pensava.
- Sim, eu sei. Eu e o Álvaro conversávamos muito.
- Porque razão não tirou ele um curso superior?
- Por causa da tropa.
- Da tropa?
- È verdade Rui. Ele dizia que na vida de um homem as coisas têm de acontecer no tempo certo. Ele pedir espera à tropa, tirar um curso...ia levar alguns anos. Seria depois chamado já com vinte e muitos... ele preferiu assim.
- Foi sempre um óptimo amigo.
- E um querido filho. Nasceu em 1951. Foi criado no Calhabé. Mal me descuidei, já tinham passado vinte e dois anos. Escondido, chorei na festazita que se fez lá em casa para amigos e familiares, que lhe quiseram desejar muita saúde, muitas felicidades e muita sorte. Como o meu coração estava apertado. Ele fora mobilizado para Angola. Partia dali a três dias. Estávamos em Fevereiro de 1973...(em continuação- pág. 40)

in VISITADOS

Novembro/1999

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A TRONCALHADA



Como que recatadamente inserida numa campânula que a protege do reboliço citadino, imune ao avanço do betão que ao tempo dá forma disforme, cinzenta, fria, a contra relógio, a Troncalhada vive a sua paz salgada, já as sombras se avizinham e o marnoto adormece.
Refastelada de paz e natureza, enquanto ao longe Aveiro se apressa no perfume do monóxido de carbono, a Troncalhada observa, placidamente, as salinas suas irmãs que a rodeiam.
Calma...que amanhã o irmão sol nascerá de novo para que a brancura cristalina da flor de sal seja possível, e o horizonte se pontilhe de minúsculas serras brancas, a razão a que a Troncalhada, sempre na pacífica existência, deve a razão de ser.
Mesmo hoje, neste alvoroço apressado, A Troncalhada mantém-se na quietude de outros tempos.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

NA QUIETUDE DA ALDEIA PORTUGUESA, UM DISTANTE NATAL

...- Perdoe-me Luísa se a ofendi. Não era essa a minha intenção...
- Não Américo, não me ofendeu. Eu já suspeitava. Vossemecê foi muito digno ao dizer que uma das razões pela qual se apaixonou por mim, foi a forma como eu vivo a viuvez do António. Que pensaria vossemecê de mim, se soubesse que eu me apaixonara de novo?
Américo estremeceu. Apaixonada? Quem seria o maldito? O mundo começou a esboroar-se debaixo dos seus pés. E apreensivamente respondeu:
- Eu pensaria que estava certo. A Luísa tem direito à vida. A viuvez não é deformação. É somente um estado civil que pode ser alterado como qualquer outro. Penso que seria fazer uma ofensa a Deus, uma mulher como a Luísa não voltar a ser amada. Mas... está apaixonada?
- Por si! - E ao dizer isto recomeçou a andar. Américo ficou especado. Os seus sentidos, o seu ser, acabavam de receber um impacto capaz de desmoronar um homem.
- Luísa, espere - gritou Américo. Cães nas redondezas começaram a ladrar, alertados por aquele grito saído de garganta louca de felicidade. Américo deu uma corrida.
- Luísa, espere.
- Não posso. Não me force a parar. Jurei que vossemecê nunca haveria de saber disto. Não compreendo o que me aconteceu.
- Ora Luísa, é a felicidade de novo a bater à porta.
- Felicidade? Qual felicidade? Acha que uma criada e um advogado têm futuro?
- Luísa, um homem e uma mulher que se amam têm sempre futuro. A criada e o advogado são somente as roupas que vestem. Eu tenho trinta e três anos. Sei o que quero da vida.
- E o que dirão os seus pais?
- Os meus pais querem ver o filho feliz.
- Não sei se iria ter coragem de os enfrentar.
- Luísa, esqueça agora os meus pais. Olhe para mim... olha para mim - rectificou Américo.
- Não Américo, não estou preparada. Desculpe, vou ter de me colocar toda em ordem. Por esta cabeça está a passar uma tempestade. A casa dos meus pais já se avista.
- Ao fim de tantos meses de angústia o mundo sorri de novo para mim - retorquiu Américo - dá-me ao menos um pequeno sinal do teu amor.
- Esse sinal já lho dei ao dizer-lhe que o amo. Nada mais lhe posso dar neste momento. Preciso de ficar bem comigo mesma. Desculpe Américo, não insista, pelo amor que me tem.
- Nem ao menos me podes tratar por tu?
- Farei tudo isso quando o momento chegar, se a minha consciência se não opuser. Hoje já fiz o que nunca imaginei ser capaz.
- E esta escuridão que me não deixa ver esse teu rosto divino. Que abençoada noite de Natal! - disse Américo Afonso.
Luísa apressou muito o passo. Por isso rapidamente percorreram a distância que os separava da casa dos seus pais. Uma casa térrea, bem simples, como simples era a vida das pessoas que ali moravam. Ao lado da casa existia um pequeno alpendre, que guardava alguma lenha para a lareira do inverno, meia dúzia de utensílios de lavoura, enxadas, forquilhas e ancinhos. Entre o alpendre e a casa existia uma casota minúscula. Era a oficina de oleiro, onde o pai de Luísa elaborava as peças de cerâmica tão apetecidas. Tal como as outras casas por onde tinham passado, também a casa de Luísa irradiava espírito de Natal, como se fosse possível que uma casa ganhasse vida e transmitisse sentimentos. Mas era isso mesmo que acontecia. A mística do Natal era tão forte e profunda, que ao transformar por completo o mundo e as pessoas, dando clarividência ao coração humano, tornando pois possível o perdão e colocando amor onde antes existia mal querer, prolongava essa dádiva do céu até às casas.
As duas janelas que ladeavam a porta de pau da casa do oleiro estavam brilhantes com a luz que por elas transbordava. Pela chaminé fluía um fumo calmo. Cheiro de lenha de pinheiro queimada, misturado com os aromas natalícios que andavam no ar, eram um condimento da quietude da aldeia portuguesa.
Luísa e Américo chegaram junto à porta. Com os nós dos dedos Américo Afonso bateu no pau rijo que escondia a intimidade daquele lar.
- Quem é? - perguntou uma voz de rapazinho.
- Sou eu, a mãe - respondeu Luísa.
A porta logo se abriu. À luz das candeias de azeite surgiu um rapazinho loiro.
- Boas noites Carlos. Aqui te trago a tua mãe.
- O senhor Doutor Américo veio acompanhar a minha mãe? - perguntou o pequeno Carlos Avilar.
- É verdade. Estás admirado?
- Há por aí muitos senhores doutores que em calhando, não o faziam - disse o pequeno.
À porta surgiram os pais de Luísa e também a pequenita Rosa. Fizeram pressão para que o senhor Doutor entrasse, mas este recusou, pois a família esperava-o na Casa das Leis.
Após os votos mútuos de uma santa noite, Américo abandonou a casa de Luísa, não sem antes lhe ter enviado um suplicante e apaixonado olhar, ao que ela correspondeu. Américo inspirava o Natal que existia no ar frio. Pensava que tal como o caminho do calvário, em Jerusalém, ficara célebre porque ali vivera Jesus Cristo os seus últimos minutos de vida terrena, também o caminho que levava de sua casa à casa de Luísa deveria ficar conhecido, porque fora através dele que Américo chegara à felicidade. Ao passar pela figueira à beira do caminho, tirou-lhe o chapéu. Ela merecia esta reverência. Só uma árvore respeitável como aquela poderia ter perfil para ser testemunha de uma declaração de amor, como fora a dele e também a de Luísa Avilar.
Pelo resto do caminho foi andando ligeiro, saltitando de quando em vez, assobiando ao ar, às casas, ao céu estrelado, à capacidade que o homem tem em conseguir ser feliz. Enfim, rejuvenescera.
Ao entrar na Casa das Leis perdera o ar macilento e sem vigor que o acompanhava havia bastantes meses.
- Minha mãe, venha de lá esse bacalhau cozido que tenho fome de lobo.
- Ai menino, que a noite transformou-te. Isto só pode ser milagre - dizia feliz D. Vitoriana.
- Pois foi minha mãe, foi milagre! Mas, demora o bacalhauzito?
- Não filho, num ápice estaremos todos à mesa.
Já noite dentro, quando todas as lareiras se haviam apagado, depois de muita alegria se ter espalhado, após muitos espíritos se terem aquecido e afogueado em altos ideais filosóficos, sob a inspiração do suor vermelho-tinto da terra, qual fragrância de baco, Américo encontrava-se deitado no seu leito, pensando, iluminado pelo luar suave, o mesmo luar que iluminava o belo rosto de Luísa. Quase se adivinhava que entre as duas casas se formara uma corrente telepática. Américo ansiava pelo momento em que pela primeira vez abraçaria Luísa Avilar.
Luísa tentava pôr um pouco de racionalidade em toda aquela situação. E mais do que os medos de enfrentar os preconceitos sociais, era o remorso latente em colocar na sua vida um outro homem, no lugar de António Avilar, que a afligiam. Iria finalmente compreender que António não passava de uma bela recordação, ecos de uma guerra distante, apenas e só uma saudade...(em continuação- pág. 70)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

sábado, 17 de outubro de 2009

O AMOR, O NATAL E UMA FIGUEIRA

...D. Vitoriana procurou o filho e encontrou-o na sala, junto à lareira acesa, conversando com um tio, irmão do Doutor Sebastião.
- Américo, filho, seria muita ralação para ti se fosses acompanhar a Luísa até casa ? Sabes, já é noite.
Ò providencial noite!
Américo sentiu um vazio no estômago. Que pretendia Deus fazer, ao dar-lhe aquela oportunidade, de por alguns momentos poder estar a sós com Luísa? Seria um teste? Um teste à sua capacidade de poder penetrar naquele espírito inexpugnável? Talvez Luísa não fosse assim tão inacessível. Por um ou outro momento, Américo suspeitara haver naquele olhar uma candura, que antes lhe não conseguía reconhecer. Era Natal. Com certeza o Menino Jesus condoera-se desta criatura apaixonada e intercedera por Américo Afonso junto de Deus, Seu Pai.
Estas reflexões perpassaram a mente do jovem advogado, levando o tempo que ele demorou a refazer-se da surpresa causada pela pergunta da mãe.
- A minha mãe refere-se à Luísa Avilar?
- Américo, pois a quem há-de ser? Conheces aqui outra Luísa?
- Não minha mãe... pensei que... olhe, não pensei nada.
- Mas vai filho, faz-me esse obséquio.
- É claro que vou. Não há-de a rapariga ir por esses caminhos, cheia de frio.
- Bom, não é bem o frio que me preocupa.
- Pois, eu sei minha mãe. Mas que está frio, está!
- O cunhado deu de beber ao Américo? - perguntou D.Vitoriana.
- Não, ele apenas bebeu um cálice de Porto - respondeu o irmão do Doutor Sebastião.
- Parece que estás esquisito rapaz - disse D. Vitoriana ao filho.
- Talvez tenha enchido demais o cálice - respondeu Américo.
- Então anda se fazes o favor, que se faz tarde. - E os dois, mãe e filho, dirigiram-se à cozinha onde Luísa os esperava. Ali chegados D. Vitoriana disse:
- Esperem aqui um pouco que me lembrei agora mesmo de uma coisa.
Ali, entre a porta da cozinha e a porta de saída, o mundo parou para Américo e Luísa. Os dois atraíam-se sofredoramente. E na atrapalhação de um desejo escondido, recalcado, queriam quebrar aquele silêncio opressivo, provocado pela súbita ausência de D. Vitoriana. Ali estavam, como duas múmias, ela olhando para o chão e tomando um súbito interesse por um botão do casaco de lã que ameaçava cair, e ele, vigiando a janela próxima, vendo o reflexo do seu rosto no vidro da janela, iluminado pela luz das velas, admirando a sua expressão facial denunciadora de mortificante ansiedade. Para salvação dos dois, aquela animada conversa foi interrompida com o regresso de D. Vitoriana. Trazia nas mãos dois saquinhos de pano.
- Pensei que se tinham ido embora. Não vos ouvia - disse D. Vitoriana.
- Que tenho eu para falar com o senhor Doutor Américo? - perguntou Luísa.
A esta pergunta Américo olhou muito sério para Luísa e D. Vitoriana encolheu os ombros.
- Bem Luísa - disse a senhora - estão aqui dois saquinhos para os teus filhos. Vai uma boneca de porcelana para a tua Rosa e um peão para o Carlos. Pões na chaminé. Prenda do Menino Jesus. Tive pena de hoje os não poderes trazer, mas como viste o movimento foi muito.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana. O Menino Jesus lá lhes há-de entregar estes presentinhos.
- Dá cumprimentos nossos aos teus pais. Boas Festas para todos.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana. Também uma santa noite para todos vós.
E finalmente a porta de saída foi aberta. A noite estava realmente fria. Mas era uma benção para os rostos escaldantes de Luísa e Américo.
Luísa tentava apressar o passo. Américo fazia por o retardar. No ar havia o cheiro de lenha queimada em lareiras domésticas. Muitas chaminés expeliam o fumo com sabor a Natal. Aqui e ali divisavam-se janelas iluminadas por velas que alimentavam chamas aconchegadoras, mais brilhantes do que nunca, que sorriam àquela abençoada escuridão. Era noite de Natal.
- A Luísa gosta do Natal? - perguntou Américo, interrompendo finalmente o silêncio.
- Gosto sim senhor Doutor. O Natal é a época do amor entre os homens.
- Acha o amor bonito?
Luísa considerou a pergunta perigosa. Cautelosamente respondeu:
- Para quem der valor ao amor acho que o deve achar bonito.
- E a Luísa dá valor ao amor?
- Já fui casada senhor Doutor. Estava apaixonada pelo meu marido.
- Conseguirá a Luísa apaixonar-se de novo?
- Senhor Doutor Américo, essa pergunta é muito despropositada. Na minha posição não posso ter este tipo de conversas com o Senhor Doutor.
- Luísa, peço-lhe, não me trate mais por senhor doutor. Sinto-me ficar a léguas de si.
- Mas é falta de respeito da minha parte se o tratar de outra maneira.
- E quem foi que lhe disse que eu quero de si esse tipo de respeito, frio, distante, sem nada de íntimo?
- Íntimo? - perguntou Luísa, dando força a uma palavra carregada de intenção.
Américo estancou o passo. Suavemente agarrou um braço de Luísa, pelo que esta também parou. O céu estava paradisiacamente estrelado. O frio fazia-os aproximarem-se um do outro. Uma grande figueira, havia muito plantada à beira do caminho, era testemunha deste jogo de vontades, do alvorecer daquilo que de mais belo existe na criação.
- Sim, íntimo, pessoal, um sentimento partilhado a dois.
- Senhor Doutor...
- Então Luísa, o que lhe pedi?
- Senhor Américo...
- Retire o senhor!
- Américo? - perguntou Luísa.
- Américo! - respondeu Américo.
- Pois seja. Américo, eu não devia estar aqui consigo. Sei que não há nada de mal, mas um homem e uma mulher no meio da noite...
- Luísa - interrompeu Américo - eu amo-a. A sua beleza, a sua bondade e a lealdade para com a memória do seu marido, desfizeram alguns preconceitos que eu tinha sobre o casamento. Desculpe-me a franqueza, mas este fogo que há muito me consome tinha de o partilhar consigo.
Luísa chorava baixinho...(em continuação- pág. 66)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998