terça-feira, 20 de outubro de 2009

NA QUIETUDE DA ALDEIA PORTUGUESA, UM DISTANTE NATAL

...- Perdoe-me Luísa se a ofendi. Não era essa a minha intenção...
- Não Américo, não me ofendeu. Eu já suspeitava. Vossemecê foi muito digno ao dizer que uma das razões pela qual se apaixonou por mim, foi a forma como eu vivo a viuvez do António. Que pensaria vossemecê de mim, se soubesse que eu me apaixonara de novo?
Américo estremeceu. Apaixonada? Quem seria o maldito? O mundo começou a esboroar-se debaixo dos seus pés. E apreensivamente respondeu:
- Eu pensaria que estava certo. A Luísa tem direito à vida. A viuvez não é deformação. É somente um estado civil que pode ser alterado como qualquer outro. Penso que seria fazer uma ofensa a Deus, uma mulher como a Luísa não voltar a ser amada. Mas... está apaixonada?
- Por si! - E ao dizer isto recomeçou a andar. Américo ficou especado. Os seus sentidos, o seu ser, acabavam de receber um impacto capaz de desmoronar um homem.
- Luísa, espere - gritou Américo. Cães nas redondezas começaram a ladrar, alertados por aquele grito saído de garganta louca de felicidade. Américo deu uma corrida.
- Luísa, espere.
- Não posso. Não me force a parar. Jurei que vossemecê nunca haveria de saber disto. Não compreendo o que me aconteceu.
- Ora Luísa, é a felicidade de novo a bater à porta.
- Felicidade? Qual felicidade? Acha que uma criada e um advogado têm futuro?
- Luísa, um homem e uma mulher que se amam têm sempre futuro. A criada e o advogado são somente as roupas que vestem. Eu tenho trinta e três anos. Sei o que quero da vida.
- E o que dirão os seus pais?
- Os meus pais querem ver o filho feliz.
- Não sei se iria ter coragem de os enfrentar.
- Luísa, esqueça agora os meus pais. Olhe para mim... olha para mim - rectificou Américo.
- Não Américo, não estou preparada. Desculpe, vou ter de me colocar toda em ordem. Por esta cabeça está a passar uma tempestade. A casa dos meus pais já se avista.
- Ao fim de tantos meses de angústia o mundo sorri de novo para mim - retorquiu Américo - dá-me ao menos um pequeno sinal do teu amor.
- Esse sinal já lho dei ao dizer-lhe que o amo. Nada mais lhe posso dar neste momento. Preciso de ficar bem comigo mesma. Desculpe Américo, não insista, pelo amor que me tem.
- Nem ao menos me podes tratar por tu?
- Farei tudo isso quando o momento chegar, se a minha consciência se não opuser. Hoje já fiz o que nunca imaginei ser capaz.
- E esta escuridão que me não deixa ver esse teu rosto divino. Que abençoada noite de Natal! - disse Américo Afonso.
Luísa apressou muito o passo. Por isso rapidamente percorreram a distância que os separava da casa dos seus pais. Uma casa térrea, bem simples, como simples era a vida das pessoas que ali moravam. Ao lado da casa existia um pequeno alpendre, que guardava alguma lenha para a lareira do inverno, meia dúzia de utensílios de lavoura, enxadas, forquilhas e ancinhos. Entre o alpendre e a casa existia uma casota minúscula. Era a oficina de oleiro, onde o pai de Luísa elaborava as peças de cerâmica tão apetecidas. Tal como as outras casas por onde tinham passado, também a casa de Luísa irradiava espírito de Natal, como se fosse possível que uma casa ganhasse vida e transmitisse sentimentos. Mas era isso mesmo que acontecia. A mística do Natal era tão forte e profunda, que ao transformar por completo o mundo e as pessoas, dando clarividência ao coração humano, tornando pois possível o perdão e colocando amor onde antes existia mal querer, prolongava essa dádiva do céu até às casas.
As duas janelas que ladeavam a porta de pau da casa do oleiro estavam brilhantes com a luz que por elas transbordava. Pela chaminé fluía um fumo calmo. Cheiro de lenha de pinheiro queimada, misturado com os aromas natalícios que andavam no ar, eram um condimento da quietude da aldeia portuguesa.
Luísa e Américo chegaram junto à porta. Com os nós dos dedos Américo Afonso bateu no pau rijo que escondia a intimidade daquele lar.
- Quem é? - perguntou uma voz de rapazinho.
- Sou eu, a mãe - respondeu Luísa.
A porta logo se abriu. À luz das candeias de azeite surgiu um rapazinho loiro.
- Boas noites Carlos. Aqui te trago a tua mãe.
- O senhor Doutor Américo veio acompanhar a minha mãe? - perguntou o pequeno Carlos Avilar.
- É verdade. Estás admirado?
- Há por aí muitos senhores doutores que em calhando, não o faziam - disse o pequeno.
À porta surgiram os pais de Luísa e também a pequenita Rosa. Fizeram pressão para que o senhor Doutor entrasse, mas este recusou, pois a família esperava-o na Casa das Leis.
Após os votos mútuos de uma santa noite, Américo abandonou a casa de Luísa, não sem antes lhe ter enviado um suplicante e apaixonado olhar, ao que ela correspondeu. Américo inspirava o Natal que existia no ar frio. Pensava que tal como o caminho do calvário, em Jerusalém, ficara célebre porque ali vivera Jesus Cristo os seus últimos minutos de vida terrena, também o caminho que levava de sua casa à casa de Luísa deveria ficar conhecido, porque fora através dele que Américo chegara à felicidade. Ao passar pela figueira à beira do caminho, tirou-lhe o chapéu. Ela merecia esta reverência. Só uma árvore respeitável como aquela poderia ter perfil para ser testemunha de uma declaração de amor, como fora a dele e também a de Luísa Avilar.
Pelo resto do caminho foi andando ligeiro, saltitando de quando em vez, assobiando ao ar, às casas, ao céu estrelado, à capacidade que o homem tem em conseguir ser feliz. Enfim, rejuvenescera.
Ao entrar na Casa das Leis perdera o ar macilento e sem vigor que o acompanhava havia bastantes meses.
- Minha mãe, venha de lá esse bacalhau cozido que tenho fome de lobo.
- Ai menino, que a noite transformou-te. Isto só pode ser milagre - dizia feliz D. Vitoriana.
- Pois foi minha mãe, foi milagre! Mas, demora o bacalhauzito?
- Não filho, num ápice estaremos todos à mesa.
Já noite dentro, quando todas as lareiras se haviam apagado, depois de muita alegria se ter espalhado, após muitos espíritos se terem aquecido e afogueado em altos ideais filosóficos, sob a inspiração do suor vermelho-tinto da terra, qual fragrância de baco, Américo encontrava-se deitado no seu leito, pensando, iluminado pelo luar suave, o mesmo luar que iluminava o belo rosto de Luísa. Quase se adivinhava que entre as duas casas se formara uma corrente telepática. Américo ansiava pelo momento em que pela primeira vez abraçaria Luísa Avilar.
Luísa tentava pôr um pouco de racionalidade em toda aquela situação. E mais do que os medos de enfrentar os preconceitos sociais, era o remorso latente em colocar na sua vida um outro homem, no lugar de António Avilar, que a afligiam. Iria finalmente compreender que António não passava de uma bela recordação, ecos de uma guerra distante, apenas e só uma saudade...(em continuação- pág. 70)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

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