segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Á PORTA DA LOBITO DE BENGUELA

...Os seus pais não gostaram muito da possibilidade de ele poder chegar tarde a casa. E ainda eles não sabiam quais os seus objectivos. Mas confiavam nele. Sabiam que ele era um rapaz ponderado.
O seu pai, Manuel César Velasques, era além de tudo um bom amigo. Funcionário dos Correios, sempre o tratara com imenso carinho. Uma vez disse-lhe: « tu és o meu filho mais novo, um cadinho de amor que Deus me ofereceu ». Na altura ele ficou confuso. O filho mais novo? Mas se ele era filho único! Então perguntou ao pai:- « sou o teu filho mais novo? Onde è que está então o meu irmão mais velho? ». O pai ficou um momento em silêncio e depois respondeu: - « Eu disse que tu és o meu filho mais novo? Estava a delirar com certeza. Apenas quis dizer que és o único filho que tenho e que me enches o coração de amor ».
A mãe, Maria Amélia Almeida César Velasques, doméstica, era simplesmente a mãe. Embora ele estivesse a entrar na idade adulta, a sua mãe continuava a senti-lo como se ele ainda fosse pequenino, o que por vezes o fazia sentir-se ridículo. Mas sabia que as mães eram mesmo assim. E ainda bem que o eram. Através dos pais ele estava bem com a vida.
Ali estava a alfaiataria. Mesmo ao lado existia uma soberba casa de arquitectura colonial, em cuja parede estava incrustado a letras de ferro o nome « Casa Lobito de Benguela ». A casa estava rodeada por um extenso muro, encimado por um robusto gradeamento de ferro pintado a verde escuro. A casa apresentava uma comprida fachada onde se contavam quatro enormes janelas. Possuía ainda um grande alpendre que tinha por acesso umas escadas. Era ali decerto a porta de entrada. A casa, era toda ela ladeada por altas palmeiras. Serôdio nunca estivera em África, mas sem dúvida que aquele pedacinho de Portugal transmitia uma ambiência bem africana.
Serôdio estava hesitante. Parado no passeio, observava um combóio que passava do outro lado da rua. A Estação da CP era muito próxima dali. Fazia de conta que parara ali apenas por casualidade, enquanto o seu cérebro tentava aflitivamente coordenar ideias e pensamentos. Iria bater à porta de alguém que nunca vira na vida para anunciar um tremendo disparate. Mas, e se no dia seguinte viesse a saber que naquela casa se cometera um crime? Como poderia ele viver com o remorso de poder ter evitado esse crime e nada ter feito? Seria o Narciso Conde tão pérfido, a ponto de conseguir executar aquela barbaridade? Estava decidido! Iria contar à senhora que ali morava que o seu sobrinho planeava assaltá-la. Se ela corresse com ele, paciência. Pelo menos cumpriria com a sua obrigação moral.
Ao centro do muro que isolava aquela casa do resto do mundo, existia um gigantesco e sólido portão de ferro, também ele pintado de verde escuro. Ali existia um pequeno sino. Serôdio empurrou o badalo e ouviu-se então um som estridente e metálico, que lhe fez sobressaltar o coração. Aguardou alguns momentos. Lá ao fundo surgiu então a figura de um homem negro. Aparentava ter cerca de trinta anos de idade. O homem desceu as escadas do alpendre e dirigiu-se para o portão onde se encontrava Serôdio. Ao chegar junto ao rapaz, o homem sorriu exibindo naquele sorriso a brancura dos dentes, em contraste com a pele escura do rosto.
Ao vê-lo, Serôdio sentiu que o seu colega Zé não mentira nem inventara nada. Como poderia ele adivinhar que naquela casa havia um criado negro?
- Boa tarde- disse o homem.
- Muito boa tarde- respondeu Serôdio à saudação, mostrando-se um tanto ou quanto atrapalhado.
- Em que posso ajudar o senhor?- perguntou simpaticamente o homem negro.
- Bem... sabe... eu nem sei como hei-de dizer. Mora nesta casa uma senhora que è tia de um rapaz da minha idade chamado Narciso Conde?
- Sim, sim. Mas o menino Narciso não está cá em casa.
- Sim, eu sei. Não è com ele que eu quero falar. Eu preciso de conversar com a senhora.
- O senhor conhece o menino Narciso?- perguntou o homem.
- Conheço sim, somos colegas de turma.
- E como se chama o senhor?
- Eu... eu chamo-me Serôdio, Serôdio Almeida César Velasques.
- Pois senhor Serôdio, espere aqui que eu vou ver se a senhora o recebe.
E dizendo isto o homem negro voltou costas, sem ter aberto o portão. Serôdio ali ficou, aguardando impacientemente. Mas que raio de situação aquela. Se o professor não tivesse faltado naquela aula da parte da manhã, não estaria ele agora ali a fazer aquela figura ridícula.
Entretanto o homem negro atravessou a casa e entrou numa sala imensa, onde sentada num enorme sofá forrado a veludo azul, uma senhora vestida toda de preto, que deveria rondar os cinquenta anos de idade, lia rodeada de imensa paz e silêncio.
- Senhora D. Silvina, está lá fora um senhor alto, magro e loiro- disse o homem negro.
- Um senhor loiro? Que tipo de senhor?
- Diz que è colega de turma do menino Narciso.
- Do meu sobrinho? Armando, então não è um senhor. Será talvez um jovem moço, não?
- Sim, talvez seja- respondeu o homem sorrindo, voltando a mostrar a sua alva dentadura.
- E o que deseja esse moço?
- Quer falar com a senhora.
- Comigo? Mas que assunto terá um desconhecido adolescente para falar comigo?
- Não sei senhora, ele não me disse.
- Que entre então, Armando. Acompanha-o até aqui.
- Sim, senhora- e o homem abandonou a sala...(em continuação, pág. 15)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

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