quarta-feira, 28 de outubro de 2009

DANÇAREMOS...DEPOIS DE ANGOLA



...Era uma bela tarde de Sábado. A sala, comprida, estava apinhada de gente. Ao centro existia uma longa mesa cheia de bolos, sanduíches, muitas fatias de carne assada, e duas caçoilas de barro preto contendo chanfana. Pela mesa fora estavam distribuídas muitas garrafas de « laranjina c», gasosa da « canada dry», cerveja « sagres», « topázio » e « onix» e garrafas de vinho. Os convidados eram rapazes e raparigas. Num dos cantos da sala existia uma aparelhagem de som « philips». No gira-discos passava um long play dos Pink Floyd, o álbum « Dark Side of the Moon». Aquela sonoridade nova, aquela mensagem, aquele fogo de vida envolvia aqueles jovens, transmitindo-lhes sensações inebriantes, transformando-os em pequenos gnomos de uma floresta onde o amor e a magia impregnavam tudo. Quem estivesse do lado contrário àquele onde se encontrava a aparelhagem, podia sentir a música entrelaçar-se e rodopiar pelo meio do sussurro das vozes.
Álvaro estava deleitado. Não se lembrava, nem se queria lembrar, de que daí a três dias embarcaria no navio Vera Cruz, que o levaria a África, até Angola. Todos lhe demonstravam a sua amizade e a sua solidariedade. Abraçada a ele, sem o largar, estava uma moça maravilhosa, divinalmente loira, com olhar de esmeralda, que de vez em quando deitava carinhosamente a cabeça no seu ombro. Era Catarina, a Catarina Martins, sua namorada e madrinha de guerra. De quando em vez beijavam-se, o que provocava uma explosão de aplausos, gritos e assobios. Álvaro então sorria e não permitia que uma lágrima mais indisciplinada lhe aflorasse aos olhos, pois isso a acontecer iria revelar o turbilhão de sentimentos em que a sua alma estava mergulhada, por viver aquela festa...de um adeus temporário... ou um adeus definitivo.
Que juventude tão sofrida aquela! Que grande ponto de interrogação existia na vida daqueles jovens! Formar um futuro, que maravilha! Vamos depressa que a vida não espera! Vamos... alto, espera aí! Tens de parar. Recua um pouco, toma balanço, muito balanço... corre agora, isso, com velocidade, passa por cima desse fosso. Não olhes para baixo, olha sempre em frente. Tem confiança, tem fé. Esse fosso chama-se guerra... guerra colonial. Se o conseguires transpor, se fores capaz de chegar ao outro lado, isso quer dizer que a tua paragem no tempo terminou e vais voltar a ser tu próprio, com a tua personalidade, os teus ideais, caminhando em direcção ao futuro que esperou por ti. Se por azar tropeçares e caíres no fosso... olha amigo, talvez um dia as gerações futuras saibam reconhecer a tua dádiva, mas só talvez! Não te prometo!
Álvaro encontrava-se bem no meio da pequeníssima multidão que a sua casa viera, para com imensa energia o impregnarem de bons fluídos, que o ajudassem a ultrapassar as armadilhas da guerra, o protegessem das sombras esquivas e letais da guerrilha. A todos Álvaro sorria e de todos já sentia saudade. Principalmente da sua querida Catarina, que o não largava, agarrando-se a ele ansiosamente, sentindo o pulsar de todas as suas células. Ela queria manter aquela sensação por muito e muito tempo. Seria uma forma de o sentir permanentemente junto a si. A saudade já martirizava e ele ainda ali estava.
Álvaro era um rapaz de altura mediana, com ombros largos e maciços. De cabelo bem preto e rosto comprido e magro, irradiava simpatia. Nos seus olhos profundamente castanhos e leais, residia o amor. Era sem dúvida uma agradável companhia, que sabia honrar uma amizade. Puxara ao seu pai, o enfermeiro Victor.
No gira discos alguém pusera a tocar o single « We shall Dance» de Demis Roussos, e como obedecendo a um impulso ordenado por aquele música, todos os casais se uniram num enlace perdidamente inflamado de paixão. Quase estáticos dançavam.
Catarina, com os braços rodeava o pescoço de Álvaro. Levemente lhe roçava o rosto com os lábios. Álvaro abraçava-a com avidez, enquanto o seu rosto se embrenhava no belo cabelo loiro dela. Naquele momento, em que aquela louca canção, emanando do gira discos, era o único som ali audível, Álvaro recuou alguns anos. Recordava os dias em que despreocupadamente percorrera as ruas de Coimbra. Quando em criança, na companhia de outros miúdos, formava grupos por altura dos finados, e andava à noite pelo bairro onde morava, com uma caixa de sapatos na qual se fizera alguns furos, que formavam um rosto disforme, e no interior da caixa se depositara uma vela acesa. A luz da vela fluindo pelos « olhos, nariz e boca» da caixa de sapatos, construía um certo cenário macabro. E era esse cenário o mais ideal para, de porta em porta, se cantarem os « bolinhos e bolinhós ». E assim, nos dias 30 e 31 de Outubro de cada ano, os grupos de miúdos andavam numa saudável competição em busca das casas mais ricas, pois quanto mais próspera fosse « a senhora que está lá dentro assentada num banquinho faz favor de cá vir fora p’ra nos dar um tostãozinho », mais esperanças havia de que esse tostãozinho se transformasse em cobiçados escudos.
Recordou os tempos em que a adolescência irreverentemente o possuíra e em que, na companhia dos aventureiros dos « bolinhos e bolinhós », passeavam agora pelas Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz, onde gostosamente faziam as suas tão ansiadas « piscinas », enquanto discutiam as dificuldades que o poder organizado levantava à propagação do amor, o amor livre.
Lembrou-se dos inúmeros bailes particulares em que participara, onde eles alunos do Liceu D. João III, e elas alunas do Liceu D. Maria, durante a semana privados de se comunicarem, naqueles bailes aos fins de semana, feitos em garagens e por vezes em quartos, se desforravam da frustrante privação.
Lembrou-se do delírio que se viveu em Coimbra, quando no Teatro Gil Vicente foi passada durante algumas semanas a ópera rock « Jesus Christ Superstar ». Foi nesse louco e estranho ambiente de união entre o sentimento cristão e uma excepcional música rock, que Álvaro conhecera Catarina. Ela sentara-se à frente dele e ambos se observaram. Quando no ecrã, Madalena cantava a faixa « I Don’t know how to love him », Álvaro aproximou-se da nuca dela e sussurrou-lhe aos ouvidos:- « deliciosa e desconhecida loirinha, não queres ser a Madalena da minha vida? ». Ela nada respondeu, mas no final do filme, quando abandonava o seu lugar, olhou-o com os seus celestiais olhos verdes e sorrindo perguntou-lhe:- « tens coragem para seres Cristo? ». Nesse momento Álvaro teve a certeza de que ali, numa incógnita tarde de Domingo, encontrara uma diva que queria enriquecer os seus dias.
Abraçado a Catarina, inspirando o cheiro do seu cabelo, flutuava com ela ao sabor da música que docemente lhes inflamava a paixão, já de si arrebatadora. Vagueou com os olhos pelos outros jovens que como ele cativos estavam da canção sedutora, que do gira discos fluía numa harmoniosa alegria de viver. E lembrou-se que muito brevemente iria deixar de usar calças « à boca de sino », a moda que os jovens adoravam. E não as vestiria por um longo período, porque todo o tempo futuro seria uma época, apenas e só do camuflado. Com ele iria viver a guerra, iria ver matar, iria ver morrer, iria matar e poderia... para quê pensar?
Recuou ao passado recente em que pela primeira vez conhecera Mafra e tomara contacto com o imenso « Calhau ». Fora no « Calhau » , no Convento de Mafra, onde estava instalada a Escola Prática de Infantaria, também conhecida pela sigla « EPI», que fora incorporado no C.O.M, o Curso de Oficiais Milicianos, de que muito se orgulhava. Mafra ficara sem segredos para si. No Alto da Vela, na extensa planície onde estava o velho e ferrugento carro de combate, no vale escuro, na pista do P.D.I., nos quatro caminhos e na Tapada Real conquistara a patente de aspirante, da qual se despedira havia poucos dias, quando às portas de viajar até Angola, fora promovido a alferes. Recordação pouco consentânea com o ambiente de festa que o envolvia. Mas se todos ali estavam, era porque ele estava na tropa e a tropa o levava para longe. Se o amor o envolvia, a tropa também. Afinal, talvez aquela recordação não fosse tão desajustada assim.
A agulha correu pelo disco e foi-se aninhar no seu lugar de descanso. A música acabara. Os amantes, que mutuamente viveram aqueles poucos minutos de magia, separaram-se, e todos sorriam...(em continuação pág. 45)

in VISITADOS

Novembro/1999

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