terça-feira, 29 de setembro de 2009

UM ACORDO DESFEITO

...Victor sabia que a casa era formada por um rés do chão e um primeiro andar. Sabia ainda que o rés do chão e o primeiro andar estavam ligados por umas pequenas escadas em espiral, que acabavam muito próximo da porta de entrada. Por cima daquela porta existia um pequeno vitral rectangular, que ajudava a penetração da luz solar no primeiro andar. Naquele momento, sendo quase noite, o vitral estava iluminado, sinal de que a luz do pequeno corredor da parte de cima da casa, estava acesa. O quarto de Ana Maria ficava lá em cima. Victor sorriu e abriu o pequeno portão, o que provocou um guincho metálico nos gonzos pouco lubrificados. Subiu as escadas rapidamente e quando se ia fazer anunciar através do batente existente na porta, deteve subitamente o movimento. Pareceu-lhe ouvir duas vozes conhecidas, provenientes do interior da casa. Afirmou melhor o ouvido. Estava perfeitamente certo. As duas pessoas que conversavam desciam as escadas. O batimento cardíaco de Victor acelerou. Aquele sentimento estranho que sentira e ao qual Victor não dera autorização de se manifestar, crescia desmedidamente e possuía-o por completo, com a avidez daquele a quem por muito tempo, por completo desprezo se lhe fechou a nossa porta, mas por infortúnio do destino se teve de deixar entrar. Ana Maria e Duarte Amorim desciam as escadas interiores e dirigiam-se para a porta de saída. Sem saber bem porquê, Victor teve o impulso de descer as escadas rapidamente e esconder-se atrás de um dos arbustos. A porta foi aberta.
- Não te esqueças querido, volta amanhã às seis e meia. Os meus pais só regressarão por volta das onze horas- dizia Ana Maria.
- Não te preocupes Ana Maria, louco seria eu se me esquecesse de uma coisa destas- respondeu Duarte.
- Mas ao estares aqui comigo não és louco? Nem um bocadinho?- perguntava Ana Maria ao mesmo tempo que se lhe pendurava ao pescoço.
- Eu não o sou, tu è que me fazes louco...
- Que bom!- interrompeu-o Ana Maria, dando uma pequenina gargalhada- amo a loucura, sou doida por ti!
- E ao Victor?- perguntou Duarte.
- Duarte, não sejas estraga prazeres. A conversa estava tão boa...o Victor è demasiado sério. O sal da vida è a loucura, e na nossa idade não há tempo nem espaço para as coisas sérias demais. Tu és interessante, ele è zero.
- Adoro-te coisa fofa- disse Duarte enquanto avançava para os lábios de Ana Maria.
Victor, ocultado sob a folhagem do arbusto, estava resoluto a não denunciar a sua presença. Mas a firmeza não era nenhuma. O sangue fervia-lhe de ira, e perante a visão daquele beijo traiçoeiro, duplamente traiçoeiro, abandonou a sombra do arbusto, trepou a um dos degraus da escada, e bem visível, interrompeu aquele beijo ignóbil, batendo palmas.
- Que linda cena- disse.
Reconhecendo aquela voz, os dois amantes se desapertaram um do outro. Duarte Amorim virou-se de costas para Ana Maria, terrivelmente surpreendido, enquanto ela se tentava esconder atrás das costas dele.
- Que rica merda de amigo eu arranjei- dizia Victor- devia estar bêbedo quando pensei que tu eras um gajo decente.
- Então Victor...- dizia Duarte profundamente embaraçado.
- Então Victor? Tu és um bardino. E o mais grave de tudo è o facto de eu ter desabafado contigo, tantas vezes, as preocupações que sentia acerca dessa ...dessa nojenta...
- Victor, não te admito que ofendas a Ana Maria.
- Então anda cá, vem-me partir as trombas!
- Deixa-te de disparates. Bolas, somos amigos!- dizia Duarte.
- O gajo è doido !- dizia Victor olhando para o céu- depois de vocês os dois me terem gozado, como podes dizer que somos amigos?
- Victor, uma mulher não vale a nossa amizade!- dizia Duarte.
Ana Maria, ao ouvir aquelas palavras proferidas por Duarte, pela primeira vez deu sinal de si, e num rompante enérgico esbofeteou violentamente o rosto de Duarte.
- Isso, bate-lhe agora- dizia Victor rindo- ele também já deixou de ter interesse?
Ana Maria, chorando, desapareceu batendo a porta com força atrás de si.
- Então Victor, ela è uma doidivanas. Eu fiz-te um favor ao mostrar-te o perigo que corrias.
- Não, tu fizeste um favor a ti próprio. Irias manter esta situação até ela acabar por si, naturalmente. Eu esquecia aquela fulana e tu irias ficar de barriga cheia. Nem penses! Comigo acabou. Tenho muita mágoa em sentir isto, mas eu não posso mais ser teu amigo.
E Victor saiu pelo pequeno portão verde. Só então reparou que algumas janelas da vizinhança estavam ocupadas por vizinhos, que silenciosamente assistiam àquela triste cena. Eles conheciam-no. Que se lixasse! Nunca mais o voltariam a ver. Nunca mais haveria de pôr os pés naquela rua.
Abandonou aquele sítio com passos largos. Duarte Amorim seguia-o. Nervosamente perguntou:
- Victor, e o livro?
- Livro? Qual livro?- perguntava Victor sem parar.
- O livro que o Viajante te deu- respondeu Duarte.
Victor estancou o passo e virando-se para trás disse:
- És mesmo baixo. Agora percebo porque è que repudiaste a gaja. O livro não o entrego a ti, porque è meu. Mas mesmo que ficasses com ele, o efeito seria o mesmo. Tu traíste-me. Zombaste da nossa amizade. Não somos mais « agente condutor » de coisa nenhuma. E sabes que mais? Quero que tu e os extraterrestres vão levar onde levam as galinhas.
- Mas Victor, tu não és o gajo que eu conheço.
- Pois não Duarte, porque o Victor que tu conhecias, usaste e deitaste fora. Só ficou este que está à tua frente.
- Mas se não acreditas e não queres o livro para nada, dá-mo que...
- Pois será essa a minha vingança, meu ex-amigo. Se fazes tanta questão em possuíres aquele maldito livro, nunca mais o hás-de ver, nem que eu o tenha de deitar para o fogo. Adeus Duarte, pela vida fora enche bem a barriga à conta de papalvos como eu, que pelo meu lado hei-de ver se tenho uma vida séria, sem interesse.
- Não podes estar a falar verdade- dizia Duarte.
- Estou a falar verdade. Não mais me dirijas a palavra, porque se o fizeres podes ter uma surpresa.
- Estás-me a ameaçar?- perguntou Duarte com um sorriso cínico.
- Porquê? Não posso?...han...não posso?- e Victor avançava para Duarte. Este sentindo-se inesperadamente em perigo, afastou-se de Victor correndo...(pág. 34)

in VISITADOS

Novembro/1999

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O AMOR E A SAUDADE

Um ano se passara. Um ano de atroz sofrimento. Agora não tinha dúvidas. Amava perdidamente a Luísa Avilar. Sempre que lhe era possível forçava um toque fugaz, mas intenso, na sua pele de seda. Ela não demonstrava qualquer alteração no comportamento. Era como se ele não existisse. Mas o íntimo de Luísa não se encontrava assim tão insensível às “casuais aproximações” de Américo. Estas tinham sido captadas por Luísa. E o problema residia aí. A respeitosa intencionalidade quase pueril com que Américo tentava aproximar-se dela, não lhe criava repugnância. Bem pelo contrário. Fazia nascer em Luísa o quase esquecido conforto de se entregar nos braços de quem se ama. Luísa, possante em juventude, havia muito que não era bafejada pela suavidade de uma carícia, o envolvente sabor de um beijo. A presença de Américo confundia-a, fragilizava-a. Luísa tinha medo desta situação. António Avilar estava bem presente na sua memória. Mas seria justo ela ficar viúva toda a vida? Seria o seu coração capaz de amar novamente, tal como amara António Avilar? Teria ela o direito de voltar a amar? Ama-se na saudade mas não se ama a saudade. António Avilar seria para todo o sempre o seu jovem e terno marido, que falecera na guerra de França. Seria assim que por toda a vida ela o recordaria. Mas não lhe daria Deus a possibilidade de um dia poder olhar para um rosto enrugado e dizer ternamente: « meu marido, como estás velho».
Esta avalanche de dúvidas sobre o seu futuro como mulher não a apoquentara desde a morte de António, porque psicologicamente ainda não estava preparada para a hipótese de um segundo casamento. Mas três anos volvidos, a serenidade chegou. Aprendeu a viver com a mágoa da viuvez, e o seu ser, tal como a flor que desponta na Primavera, imperceptivelmente tornou-se receptivo a um rosto, um rosto que em beleza e bondade rivalizasse com o rosto de António Avilar. E esse rosto era o de Américo Afonso.
Descobriu esta certeza ao enfrentar as dúvidas. O amor não se explica. No nosso triste desconhecimento humano apenas um homem houve que teve um momento de iluminação para dar uma definição ao amor: «amor è fogo que arde sem se ver». Ainda não surgiu outra melhor.
Chegou o Natal de 1921. Pela Casa das Leis duas fogueiras consumiam intensamente florestas inteiras, feitas de pensamentos e desejos loucos. Mas ardiam silenciosas, recatadas num pudor cada vez mais frágil. O calor das suas labaredas não se continha quando os olhares de Luísa e Américo se cruzavam. Os olhares faiscavam de paixão.
A mãe de Américo, D. Vitoriana, andava preocupada. O seu advogadozinho andava taciturno, magro, com fraco apetite. Que maleita o atormentava? Não queria ouvir falar em médicos. O seu marido, o Doutor Sebastião Afonso, dissera-lhe - “não te preocupes mulher. O problema do Américo é um rabo de saia. Um dia destes temos nora.” Seria? Mas se assim fosse, porquê o segredo? Afinal ele já era um homem.


Na véspera de Natal desse ano a Casa das Leis estava com um movimento desusado. Familiares do Doutor Sebastião e da D. Vitoriana ocupavam alguns quartos daquela famosa casa do Bombarral, preparando-se para ali passarem os festejos natalícios.
Na véspera de Natal Luisa manteve-se em grande azáfama na cozinha, tendo nesse dia a dona da casa por ajudante. As filhoses, velhoses, rabanadas e outros doces de sabor natalício, foram sendo confeccionados pelas mãos experientes de Luísa. Chegue-se lenha ao forno que o peru está pronto a assar. E ainda se há-de cozer o fiel amigo. A mesa da sala de visitas terá de estar delicadamente decorada. O azevinho é pouco, tem de se ir buscar mais.
Neste nunca parar, o dia escoou-se e a noite chegou. Todas as casas preparavam a sua consoada. D. Vitoriana reparara, enfim, que a noite chegara.
- Já é noite. Como o tempo passou. E tu Luísa, como hás-de ir para casa?
- Vou pelo meu pé - disse Luísa.
- Isso sei eu. Mas não hás-de ir sozinha. Eu peço ao senhor Américo que te acompanhe.
- Não, não, muito agradecida - disse Luísa, aflita - é um pulinho daqui a minha casa.
- Não sejas parva rapariga. Não permito que vás sozinha.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana, mas nesta noite santa não existem almas penadas pelos caminhos.
- E ela a dar-lhe. Queres que eu fique incomodada toda esta noite?
- Isso não senhora D. Vitoriana. Longe de mim tal ideia.
- Então vai-te arranjando, que eu vou falar ao meu filho. - disse D. Vitoriana abandonando a cozinha.
Luísa ficou estarrecida. As mãos tremiam-lhe, mais de expectativa do que propriamente por medo. Medo de quê? Pavor de iniciar algo belo mas terrivelmente incerto. De repente um fogo intenso cresceu em si. A perspectiva de se encontrar sozinha com Américo, no meio da noite, pô-la fora de si. Era o nó do avental que não se desfazia, eram o casaco de malha e o xaile que se tinham escondido, onde se tinham metido aquelas peças de vestuário que tão de repente ganhavam vida?! Era o lenço da cabeça que nem por nada se queria submeter às suas mãos e moldar-se ao seu belo cabelo negro. Eram enfim os dedos de cupido que atrapalhavam os seus próprios dedos...(pág. 63)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

MEMÓRIAS...DE UM OBELISCO



Se muitos e muitos dos filhos desta minha terra de Aveiro olham para mim, e não sabem o que a frieza da minha estrutura representa, muito menos o saberão os forasteiros. Em mim lêem:«Em memória dos aveirenses que sofreram pela liberdade». Muitos e muitos dos filhos de Aveiro, infelizmente, desconhecem a que é que alude esta legenda. Neste particular histórico são tão forasteiros como os forasteiros. E se eu existo, se sou um símbolo da memória, não o devo aos responsáveis municipais, antes ao Clube dos Galitos, uma simples colectividade, que afinal não é tão simples como isso. Fui erigido em 1909. Sou uma voz que não se ouve, mas é altiva,que na sua altivez canta um nobre acontecimento que nesse ano já ocorrera havia 81 anos. Completo este ano, portanto, cem anos, o que determina que a razão da minha existência se encontre na profundidade dos tempos, que a memória dos aveirenses faz com que praticamente se tenha perdido na profundidade dos tempos.
Foi a 16 de Maio de 1828 que, nesta cidade de Aveiro, o absolutismo miguelista ouviu pela primeira vez o grito da revolta, grito esse que clamava pela presença de D. Pedro, que lá longe, governava as terras de Vera Cruz. Quem hoje, nesta cidade, tem orgulho desse momento feito de coragem e aspiração pela liberdade? Passam por mim e eu nada lhes digo.
Os aveirenses que sofreram pela liberdade foram sete. Pagaram com a vida a ousadia. Os aveirenses de então acreditaram que aqui se iniciava o caminho para a libertação da opressão. Tinham razão. A liberdade chegaria quatro anos depois. Os aveirenses de então, caso tenham pensado que aquele dia seria lembrado, ano após ano, incólume ao esquecimento...
Sou tudo o que resta desse grito à liberdade!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

NA CASA DAS LEIS

...Se por artes mágicas fosse possível transformar o Bombarral na lendária cidade de Tróia, Luísa Avilar seria a divina Helena. No rosto tinha a doçura do mel e a suavidade da seda. Os olhos grandes e negros traduziam um olhar meigo e sensual. Os cabelos pretos e compridos compunham um quadro de transbordante beleza feminina. A voz, de timbre metálico, chamava a atenção a qualquer ouvido. Principalmente àqueles que estivessem sintonizados com sons divinais. Toda ela transparecia sensualidade. Era de facto uma mulher bela e sedutora, capaz de fazer nascer paixões arrebatadoras. Por ela muitos actos loucos se teriam praticado, caso ela o tivesse permitido. Mas como era uma mulher de moral sólida, na vida vivia sozinha, embora sentisse que quando a paixão lhe batia à porta, se transformava numa afectuosa e ardente amante. Vivera já essa experiência com o seu falecido marido. Com vinte e nove anos de idade, Luísa Avilar estava viúva havia três anos. Ficou com duas crianças para sustentar - o Carlos Avilar, que para o mundo era seu filho legítimo e a Rosa Avilar, filha do seu casamento com o António Avilar. Mas o passar dos anos esbateu esta diferença abissal entre as duas crianças. Já em 1914, pelo nascimento da Rosa, Luísa esquecera por completo que o Carlos Avilar era filho de uma noite de malvadez. Ao infortúnio que lhe bateu à porta em 1918, reagiu com tenacidade, trabalhando onde quer que lhe pagassem. Seu pai veio em seu auxílio. Oleiro de profissão, com mestria moldava o barro e com muita simpatia vendia as peças nascidas da sua arte. Por isso granjeara estima e consideração. Foi assim que conseguiu com que a sua filha Luísa Avilar fosse trabalhar para a rica casa do advogado Sebastião Lima Afonso, moradia a que muitos chamavam “a Casa das Leis”. Ali, Luísa trabalhava como criada. Após a morte do seu marido abandonara a Quinta do Louro. Os seus dois filhos dividiam o tempo entre a casa dos avós e a Casa das Leis, onde acompanhavam a mãe enquanto ali trabalhava. O Carlos, com doze anos de idade, frequentara já a escola primária, tendo a mãe esperanças de que ele brevemente pudesse entrar no Liceu de Caldas da Rainha. Para tanto bastava conseguir reunir condições económicas. E sentia-se na obrigação de o fazer. Conhecendo bem a origem do seu filho adoptivo, Luísa não queria privar aquele rapazinho de instrução, que caso o destino não lhe tivesse sido adverso, ele por certo teria. Fora criticada por muita gente por ter levado o menino à escola. Afinal, o pequeno, na escola tivera por companheiros apenas os filhos dos senhores ricos da região. Mas era assim que ela queria que fosse. O seu menino tinha mais fidalguia que os outros todos juntos. A prova estava no que a professora lhe dissera um dia - “sabes Luísa, fizeste muito bem em meteres o Carlos a estudar. Ele é muito inteligente. E é delicado no trato. Parece ser filho de fidalgo” -. Nessa ocasião Luísa engolira em seco. Por tudo isso tinha de se sacrificar para dar uma educação esmerada ao pequeno. Essa também fora a vontade do seu falecido marido.
Na Casa das Leis encontrara um razoável meio de subsistência. Mas havia ali um senão - o único filho dos donos da casa. Tal como o pai, Américo Pereira Afonso também era advogado. Formara-se em Coimbra havia um ano. Rapazola de carteira bem fornecida, levara uma vida académica pouco recomendável em benefício de muitas noites de boémia bem vividas. Por isso, aos trinta e três anos de idade apenas exercia a sua profissão havia um ano. Solteiro por convicção, tinha muita experiência no que respeitava ao sexo oposto. Luísa ouvira-o uma vez falar com a mãe, dizendo que casar era um passo muito delicado. Na sua vida em Coimbra, vira muitas situações que não desejava viver. Para ele, ser solteiro era uma questão de honra. Que mal lhe teriam feito as mulheres?
Mas a maneira como o jovem advogado a olhava, perturbava-a. Não era um olhar malicioso. Antes seria um olhar de quem nela perdera algo. E não era mentira. Américo perdera o juízo. Todos os deslumbrantes atributos femininos de Luísa alteraram por completo a concepção que Américo Afonso fazia do casamento. Aquela Vénus, entrar no seu quarto, fazer a sua cama, arrumar os seus objectos pessoais, eram simples actos que lhe afogueavam o espírito. Após se ter formado regressara a casa dos pais. Ali veio a encontrar Luísa. Algum tempo depois ardia de paixão...(pág. 60)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

sábado, 19 de setembro de 2009

MEL E FEL

Com mel e fel e um beijo na despedida
Dou um sorriso ao amor
E choro uma lágrima a esta forma de vida.

Mãos que se anseiam e não se tocam
Numa louca tristeza de sonhos perdidos,
Cartas que nunca se leram
Olhos que choram
Pelos amores que nunca foram lidos.

Dias amaldiçoados
Numa atroz perfídia de desejos amordaçados
Amor em pedaços retalhado
Por vãs noites de espera,
Pensamentos sem sentido
Ilusões, oásis de esperança,
Apenas uma quimera.

Numa partilha de nadas
Sofro a minha condição,
Sou um ser pleno de amor
Que por um mero carinho
Pronto me entrego à perdição.

Estou farto de palavras vazias e segredos surdos.
Tu, vida amiga que de mim tens fugido
Toca-me com o teu carinho
Resgata-me da solidão,
Faz de mim o que eu não tenho sido
Faz-te da minha fome o meu pão,
E verás que em mim
As mãos que se anseiam finalmente se tocarão.


Janeiro/1999

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O GAJO DA V5

...Serôdio gostava da sua turma, exceptuando quatro rapazes que formavam um grupo à parte, cujo interesse único era o de impor ao resto da turma a sua vontade. Pretendiam que toda a turma trabalhasse para eles. Como eram mais velhos, exigiam que os outros lhes dessem os seus apontamentos, que fizessem a sua parte nos trabalhos em grupo e que os deixassem copiar em dias de pontos. Os alvos preferidos do tal grupo eram as raparigas, que por norma eram mais metódicas e laboriosas. Duas raparigas da turma já haviam sido ameaçadas por eles, e um rapaz fora mesmo agredido, quando lhes dissera que ainda um dia iria fazer queixa deles ao Conselho Directivo. A turma andava nervosa e insegura, enquanto os quatro se pavoneavam com sorrisos cínicos e ameaçadores.
O grupo tinha um líder, o Narciso Conde. Era um menino bem. Deslocava-se numa motorizada Sachs, uma V5, que o pai lhe oferecera. Era o único no Liceu que possuía uma motorizada e ainda por cima uma V5. Impressionava todas as raparigas do Liceu, exceptuando è claro aquelas que mais directamente conviviam com ele. Tinha o complexo da superioridade, por isso todos lhe deviam vassalagem. Era um rapaz verdadeiramente insuportável. Alto, bem musculado, muitas vezes fazia exibição do que aprendia nas suas aulas de artes marciais. Com isso impunha respeito aos outros atemorizando-os.
Na turma, Serôdio era o único que não aceitava ser manipulado. Nunca acedera às exigências do grupo. Por isso também ele já fora ameaçado...(pag. 7)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

NA VOLTA DO CORREIO



Como sentinela vigilante, que observa a partida de muitas emoções, aqui me encontro nesta esquina da vida dos homens. Quantos segredos por mim já passaram, ânsias que daqui partiram, promessas que aqui iniciaram a sua caminhada para a concretização de realidades.
Estou velho! Começo a ficar deslocado no tempo, pois já muito poucos me procuram. Conversando com o amigo que, cada vez mais raramente me visita, esperançado em que ainda exista quem em mim confie, fico a saber que a notícia corre agora muito veloz, apenas num piscar de olhos. Que posso fazer?
Orgulhosamente me manterei no meu posto, que mais não seja, para recordar aos homens quanta beleza havia na composição de uma carta.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

PATRICK SWAZY



Este blogue presta homenagem ao actor Patrick Swazy, ontem falecido, por quem sempre nutrimos uma especial simpatia, pois somos sensíveis ao talento na arte de representar. Conhecêmo-lo na extraordinária série «Norte e Sul», em que a personagem de Orrin Main que representava, enchia o ecrã. Ghost- O Espirito do Amor foi o seu filme de maior sucesso.
O nosso gosto pelas artes do palco e do cinema hoje ficou mais pobre.

domingo, 13 de setembro de 2009

É BELA A PALAVRA DEMOCRACIA

Homens e mulheres de azul vestidos, que centímetro a centímetro conquistais a indiferença, o desprezo e o desrespeito da maioria daqueles que convosco partilham as ruas da vossa cidade, o que vos move a serdes o bode expiatório do vosso país, onde os maus fígados da vossa sociedade despejam a imunda bílis, onde os maus carácteres, por força de uma democracia para vós sem direitos, encontram a abençoada oportunidade, para no azedo da sua vil perfídia por momentos terem no rosto a agrura de vítima? Que vos move a terdes esse humilhante papel? A louca veleidade de tentardes ser abelhas obreiras num jardim sem néctar? O amor ao interesse público, o interesse do público que de vós desdenha? Esta sociedade è uma mãe megera, pois megeras são todas as mães que descriminam alguns dos seus filhos.
È brilhante e bela a palavra democracia.
Também por momentos, bela e brilhante pareceu ser a perspectiva de vida daquele homem necessitado, a quem foi oferecido um emprego numa determinada empresa. As instalações eram óptimas, modernas e acolhedoras. Foi-lhe dito que trabalharia num determinado escritório. O homem necessitado nele entrou. Era uma divisão excepcional: bem iluminada, maravilhosos quadros nas paredes, poltronas de cabedal, uma imensa secretária de fino metal, computador, internet, telefone particular, jornais diários pois a informação era a chave do negócio. O peito do homem necessitado era pequeno para albergar tanta alegria.
Preparava-se ele para, pela primeira vez se sentar na cadeira almofadada, quando aos seus já descontraídos ouvidos chegou um horrível grito de aviso. Que não se sentasse, pois aquele não era o seu local de trabalho!! Tinha havido um pequenino equívoco. Para aquele local viria trabalhar o filho do senhor engenheiro, do senhor doutor, do amigo de ambos. O homem necessitado iria executar as funções de técnico especializado de despoluição orgânica de sanitas, técnico especializado de manutenção específica das condições de utilização dos recipientes de escritório, técnico especializado da descontaminação de micróbios das vias internas de circulação da empresa.
O homem necessitado, de fato macaco vestido, assim passou a viver o seu dia a dia, desgastando-se incansavelmente, não tendo braços para tanto micróbio. Na sua humilde e triste condição, sonhando por vezes com um lugar ao sol que um dia lhe fora prometido, lá foi compartilhando o espaço daquela hipocrisia com a opulência e riqueza dos restantes colaboradores. Afinal, para o homem necessitado, aquela empresa pareceu ser o que para a sua particular realidade nunca foi.
Sociedade de Gestão de Sentimentos e Ideias à Portuguesa Actuando Ldª, era o nome da tal empresa.
Tal como o homem necessitado daquela empresa, também os homens e mulheres de azul vestidos, na nossa sociedade são aceites, disso não há dúvidas... mas, a troco de serem uns fiéis seguidores do servilismo, aos quais se tira o direito ao pensamento, ao sentimento, e à inteligência, para assim a nossa mesma sociedade poder ter sempre um escape, para onde possa depositar as frustrações do quotidiano.
Tu, azul destes homens e mulheres, de que estás à espera para reivindicares um pouco da tão falada democracia?
Sim, eu conheci um desses homens vestido de azul. Fui seu colega. Por incrível que a muitos e muitos isso possa parecer, era um homem igual a todos os homens que se vestiam de outras cores, que não o azul. Esta è a sua história... (pág. 3)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

INTROSPECÇÃO PELA SEREIA

Um ano se passara. Victor era um jovem feliz. Estava a concluir o seu curso de enfermagem, o que determinava que em breve iria iniciar a sua actividade profissional na área que achava aliciante. Sempre tivera muito desenvolvido o espírito de entre ajuda. E ser enfermeiro era a via que lhe proporcionaria estar permanentemente entregue no auxilio àqueles, que de muitas formas precisavam do seu saber e do seu carinho. Exaltava de satisfação com a perspectiva de num futuro muito próximo poder percorrer os corredores de um hospital, deambulando pelo meio de camas onde homens, mulheres e crianças doentes, ficariam física e espiritualmente mais aconchegadas através do seu trabalho e da sua presença. No entanto, nem tudo estava assim tão cor de rosa. Desde aquele inesquecível Domingo no Choupal, acontecido havia um ano, que o seu relacionamento com Ana Maria se viera a tornar progressivamente mais frio. Ele sabia que era muito jovem, sabia ainda que mulheres, as havia em grande quantidade. Mas que raio havia ele de fazer?! A Ana Maria entrara de tal forma no seu coração, que por ela lutaria até ao limite das suas forças, mesmo sentindo que ela se lhe escapava por entre os dedos. Não era famosa essa sua atitude de insistir em procurar uma mulher que o deixara de procurar, que arranjava muitos afazeres para abreviar os seus encontros, cujo olhar deixara de ter chama quando se olhavam, que perdera a capacidade de ter um diálogo interessante. Mas como o velho ditado dizia « não há amor como o primeiro », o seu coração mantinha-se fiel a Ana Maria.
Os extraterrestres e o Viajante eram coisas do passado. Não fosse o livro de capa preta que guardava numa prateleira, no seu quarto, aquele encontro não teria passado de um golpe do imaginário. Mas o livro « Contacto » falava mais alto e impunha a sua verdade. Até chegar o ano de 1996, haveriam de passar cinco décadas. Mas viveria a vida como a sabia viver, pondo sempre nos seus actos o seu próprio ser. Ele não sabia ser superficial nem artificial. E na genuinidade das coisas, forçosamente estava inserida a sua amizade por Duarte. Naquele ano que passara, o seu verdadeiro amigo Duarte Amorim mostrara-se fiel à amizade dos dois, mais do que nunca. A experiência que ambos tinham tido com os extraterrestres quase que fizera dos dois um só indivíduo. Victor desabafava com Duarte as apreensões que sentia relativamente a Ana Maria. Quando isso acontecia, o amigo sempre tinha para com ele uma atitude de solidariedade e conforto. Duarte sempre dizia que era apenas uma fase passageira. A rapariga talvez estivesse a atravessar uma crise existencial, talvez procurasse a sua verdadeira personalidade, e essa confusão reflectia-se na relação dos dois. Victor ficava extremamente satisfeito com aquela explicação, e a seus olhos surgia de imediato uma Ana Maria feliz, risonha, a correr para os seus braços. Sim, ela era a mulher da sua vida e Duarte um amigo inestimável.
A noite estava a chegar. Victor escolhera aquela hora do dia, em que o mundo se revelava aos seus sentidos estar imbuído de uma paz enorme, para dar noticia a Ana Maria de que por alguns dias era forçado a ausentar-se para Lisboa. Nesse Fevereiro frio haviam chegado à capital cento e dez presos políticos, que tinham estado em cativeiro no campo de concentração do Tarrafal em Cabo Verde. Vinham em precárias condições de saúde. A escola de enfermagem achou por bem enviar os seus novatos. Ali teriam uma excelente oportunidade de aplicar os conhecimentos adquiridos e pôr à prova a sua capacidade humanitária, ao enfrentarem a dura realidade, de terem contacto com seres humanos terrivelmente debilitados.
Victor percorria as ruas de Coimbra. Ia em direcção aos Olivais, onde morava Ana Maria. De vez em quando fumava um cigarro. Chegado à Praça da República deparou-se-lhe o Jardim da Sereia. Nele entrou. A noite descia e transformava a alameda do Parque de Santa Cruz, ladeada por velhíssimas árvores e encabeçada por aquela majestosa fonte, numa pequena avenida divina. Havia muito tempo que ali não entrava. Que magnífica era a natureza. Que esplendorosa era a vontade do homem, quando valendo-se da natureza, criava espaços como aquele e fazia por a preservar. E levando nos olhos a memória das árvores, o Viajante, o planeta Terra, o planeta Uuron, os sentimentos dos homens e o universo, chegou, quase sem disso se ter apercebido, à Rua Luís de Camões, onde se localizava a casa de Ana Maria. A rua era comprida e não muito larga. Victor caminhava sem pressa de chegar. Bem no seu íntimo, algo de estranho havia, que tornava pouco confortável a sua presença ali. Mas ele decidiu não ligar importância àquela desagradável sensação. Estava já perto da casa da sua namorada e só isso contava. Já vislumbrava a casa, uma pequena vivenda pintada de castanho, cercada por um muro baixo, pintado de branco, encimado por um bonito gradeamento verde. Ao centro, em frente às pequenas escadas que levavam à porta de entrada, existia um pequeno portão de madeira pintado com o mesmo verde do gradeamento. No topo das escadas fora edificado um minúsculo compartimento, que protegia das intempéries a porta de entrada. De um e outro lado das escadas, a casa era bafejada pelo aroma fresco de um jardim plantado em ilhotas de terra, cercadas por um pequeno mar de cimento. Das plantas que davam forma ao jardim sobressaíam dois magníficos arbustos, exibindo folhas excepcionalmente verdes, que ladeavam as escadas. Todo o minúsculo compartimento, que servia como uma antecâmara de entrada, estava coberto por plantas trepadeiras, cujas gavinhas laboriosamente emaranhadas formavam uma bela tapeçaria natural de tons verdes...(pág. 31)

in VISITADOS

Novembro/1999

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

SAUDOSO LICEU D. JOÃO III



Há coisas que, na vida, nos marcam para sempre. Na minha vida, uma delas foi o facto de ter sido aluno do Liceu D. João III. Provavelmente, nesse sentido, pesa a circunstância de ter deixado de viver na minha querida Coimbra, logo a seguir à revolução de Abril. Tendo ido estudar para uma outra cidade, conhecendo um outro liceu, tive consciência da grandiosidade do D. João III, tanto a nível de instalações e condições de ensino, mas principalmente da magnitude da tradição que o D.João III representava na tradição estudantil coimbrã.
No meu tempo, até 1974, existiam em Coimbra três grandes liceus: o D. João III, o D. Maria e o D. Duarte. Os dois primeiros localizavam-se muito próximos um do outro, tendo a separá-los a íngreme descida dos Lóios. Já o D. Duarte ficava para lá da Ponte de Santa Clara, um liceu recente, com uma outra mentalidade, a mentalidade emergente do declínio do Estado Novo, porque era essa coisa esquisita de ser um liceu misto. Pelo contrário, e obedecendo aos bons costumes, o D. João III era masculino e o D. Maria feminino. Nada de misturas.
Do D. João III retive alguns aspectos deliciosos e verdadeiramente peculiares: a praxe do abaixa bicho, iniciação à rigorosa praxe académica, única no país (o resto são meras imitações), preparação para envergar anos depois a capa e batina; O «Pianinho», um simpático senhor que em frente à enorme escadaria circular do liceu, sempre munido da sua enorme ceira, vendia as mais deliciosas pevides que alguma vez comi; a eterna professora de português Lucinda Gomes, como já não há, e o seu já naquela época decrépito vw carocha, uma preciosidade; o inigualável professor de educação musical- «porque burreais», que tinha a ambição de fazer de nós verdadeiros Mozarts. Quando nos riamos nas suas aulas, e riamo-nos muitas vezes, com estranheza nos perguntava- Porque Burreais? Claro, burros são todos os que riem sem qualquer motivo; e o extraordinário professor de religião e moral- o padre Urbano Duarte, que para nos despertar o interesse pela disciplina criava excelentes rúbricas, como o inesquecível «Caso da Semana», e o genuíno e subtil humor, que nos fazia rir até ás lágrimas. É claro que a aula de religião e moral do padre Urbano Duarte, ás quintas-feiras, era sempre aguardada com enorme expectativa.
Mas o que o D. João III mais tinha de interessante era, sem dúvida nenhuma, o D.Maria. Aquela inexpugnável e apelativa fortaleza, guardada por espessas e altos muros, onde viviam aqueles seres tremendamente apetecidos, vestidos de batas cor de rosa. Meia volta, volta e meia, aí íamos nós, os alunos do D. João III, em direcção aos Lóios, ansiosamente na esperança de que a apertada vigilância tivesse algum deslize, e pudéssemos ter dois dedos de conversa com as alunas do D. Maria. Em Maio de 1974 entrámos, pela primeira vez, no D. Maria. Embasbacávamos.
Acabávamos de entrar no céu.

sábado, 5 de setembro de 2009

AINDA NO PLÁCIDO CHOUPAL

...Os dois rapazes estavam atónitos, sem reacção para falarem, perante aquela torrente de língua portuguesa de tão difícil assimilação. Por fim Duarte disse:
- Em 1996 nós os dois já cá não estamos.
- Estão, estão, isso vos garanto eu.
- Mas já seremos bem velhos- exclamou Victor.
- Engano o vosso- respondeu o Viajante- sereis tão jovens como agora sois. Apenas o revestimento exterior terá envelhecido. E isso que diferença faz?
- Se formos vivos, já estaremos tão « caquécticos» que se calhar nem nos vamos lembrar da vossa nova aparição- volveu Duarte.
- Não empregues o «se», porque para nós «ses» não existem. Vocês estareis vivos sim. Se não vos lembrardes desse dia è sinal de que já não sereis « o agente condutor». Relativamente à vossa velhice, è garantido que esses rostos que hoje são belos e palpitantes de juventude, estarão sulcados de rugas e desinteressantes. Mas isso não tem o mínimo de importância, pois è matéria. A vossa essência, a vossa alma, essa terá a idade que tem hoje e esperemos que se mantenha luminosa. E è aí que reside o nosso interesse, o interesse do cosmos. Mantendo-vos vós unidos, leais, fraternos, dais oportunidade a que toda a vossa espécie se regenere. Extinguindo vós a vossa amizade, será sinal de que o homem do planeta Terra caminhará para o egoísmo, a desventura, a senilidade mental e espiritual, e muito trabalho teremos nós pela frente para vos conseguirmos recuperar. E não esqueçais, Victor e Duarte, daqui a cinquenta e um anos, quando nos voltarmos a ver, será então indispensável que esses mesmos dois livros estejam juntos, indicando então o nome do autor, pois será através deles que os bons fluídos sensibilizarão os nossos sentidos. E foi isto que aqui nos trouxe. Quereis ser esclarecidos sobre mais alguma coisa?
- Os seus companheiros não falam?- perguntou Duarte.
- Não estão autorizados- respondeu o Viajante.
- Porquê?- questionou de novo Duarte.
- Porque esta missão foi-me única e exclusivamente atribuída. Como tal, somente eu posso conduzir o diálogo.
- A isso se chama rigorosidade extrema- comentou Duarte.
- Eu chamo-lhe disciplina. E a disciplina è a mãe da ordem. E sem ordem não há harmonia. E sem harmonia não há equilíbrio. E viver no desequilíbrio è descambar para a nulidade, a mediocridade, o anti-ser. Como vês, umas coisas levam a outras, para o bem... e também para o mal.
Enquanto Duarte se refazia da resposta que lhe tinha sido dada pelo Viajante, Victor perguntou:
- Como se chamam os seus companheiros?
Viajante recuou alguns passos e colocando-se no meio dos outros dois homens, disse, acenando com a cabeça na direcção de cada um deles:
- Este è o Lyutck-en e este è o Pwntck-en- os dois homens ao ouvirem os seus nomes serem pronunciados, sorriram levemente e em jeito de cumprimento baixaram as cabeças.
- Porque razão è o seu nome composto por uma palavra simples e o deles è tão complicado?- perguntou Duarte.
- Tu mesmo já deste a resposta- disse Viajante saindo do meio dos seus dois companheiros- a simplicidade irradia luz. Sendo eu quem está incumbido de vos contactar e de vos acompanhar espiritualmente, tornar-se-iam as nossas comunicações mais densas e difíceis se vocês não recordassem o meu nome. Por essa razão criou-se um nome terrestre e logicamente português, que esteja directamente ligado à minha actividade, que è viajar. O vosso entendimento instintivamente ligará viagem a viajante, e assim, Viajante será um nome que nunca mais esquecerão. Ainda se lembram como se chamam os meus companheiros?
Os dois rapazes forçaram a memória, mas a única resposta que deram foi um riso um tanto ou quanto embaraçado. Viajante riu com vontade. Depois, mantendo-se sério, atravessando os dois rapazes com o seu olhar penetrante e meigo, disse:
- Meus amigos, a mensagem foi transmitida e entregue. È hora de partirmos. Embora seja já noite, que isso não vos apoquente. Nada vos afectará, e em vossas casas, os vossos pais não vos aborrecerão por causa da demora. Eles estão tranquilos porque sabem que vocês estão bem. Até mil novecentos e noventa e seis! Desejo que a vossa amizade e a vossa solidariedade aumente e prolifere. Que Deus esteja sempre convosco.
Viajante e os dois companheiros viraram costas e desapareceram no arvoredo, do outro lado da clareira. Victor e Duarte ali se encontravam, lado a lado, inertes, braços caídos, observando o luminoso choupal.
Atravessando um espaço temporal sem definição, num momento vislumbravam as árvores do choupal, no momento seguinte encontravam-se no meio das árvores que formavam um pequeno parque, existente na Avenida Sá da Bandeira...(pág. 26)

in VISITADOS

Novembro/1999

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

BRUMAS DA LENDA



Em Portugal, do fundo das brumas da lenda, nasceu a esperança de que numa manhã de nevoeiro ele retornará.
A esperança mantém-se, porque grande e preserverante é a alma portuguesa.
Essa ferida antiga e pungente um dia sarará, na manhã em que um nevoeiro suficientemente denso, carregado de forte auto-estima, nos irá devolver D. Sebastião.