terça-feira, 29 de setembro de 2009

UM ACORDO DESFEITO

...Victor sabia que a casa era formada por um rés do chão e um primeiro andar. Sabia ainda que o rés do chão e o primeiro andar estavam ligados por umas pequenas escadas em espiral, que acabavam muito próximo da porta de entrada. Por cima daquela porta existia um pequeno vitral rectangular, que ajudava a penetração da luz solar no primeiro andar. Naquele momento, sendo quase noite, o vitral estava iluminado, sinal de que a luz do pequeno corredor da parte de cima da casa, estava acesa. O quarto de Ana Maria ficava lá em cima. Victor sorriu e abriu o pequeno portão, o que provocou um guincho metálico nos gonzos pouco lubrificados. Subiu as escadas rapidamente e quando se ia fazer anunciar através do batente existente na porta, deteve subitamente o movimento. Pareceu-lhe ouvir duas vozes conhecidas, provenientes do interior da casa. Afirmou melhor o ouvido. Estava perfeitamente certo. As duas pessoas que conversavam desciam as escadas. O batimento cardíaco de Victor acelerou. Aquele sentimento estranho que sentira e ao qual Victor não dera autorização de se manifestar, crescia desmedidamente e possuía-o por completo, com a avidez daquele a quem por muito tempo, por completo desprezo se lhe fechou a nossa porta, mas por infortúnio do destino se teve de deixar entrar. Ana Maria e Duarte Amorim desciam as escadas interiores e dirigiam-se para a porta de saída. Sem saber bem porquê, Victor teve o impulso de descer as escadas rapidamente e esconder-se atrás de um dos arbustos. A porta foi aberta.
- Não te esqueças querido, volta amanhã às seis e meia. Os meus pais só regressarão por volta das onze horas- dizia Ana Maria.
- Não te preocupes Ana Maria, louco seria eu se me esquecesse de uma coisa destas- respondeu Duarte.
- Mas ao estares aqui comigo não és louco? Nem um bocadinho?- perguntava Ana Maria ao mesmo tempo que se lhe pendurava ao pescoço.
- Eu não o sou, tu è que me fazes louco...
- Que bom!- interrompeu-o Ana Maria, dando uma pequenina gargalhada- amo a loucura, sou doida por ti!
- E ao Victor?- perguntou Duarte.
- Duarte, não sejas estraga prazeres. A conversa estava tão boa...o Victor è demasiado sério. O sal da vida è a loucura, e na nossa idade não há tempo nem espaço para as coisas sérias demais. Tu és interessante, ele è zero.
- Adoro-te coisa fofa- disse Duarte enquanto avançava para os lábios de Ana Maria.
Victor, ocultado sob a folhagem do arbusto, estava resoluto a não denunciar a sua presença. Mas a firmeza não era nenhuma. O sangue fervia-lhe de ira, e perante a visão daquele beijo traiçoeiro, duplamente traiçoeiro, abandonou a sombra do arbusto, trepou a um dos degraus da escada, e bem visível, interrompeu aquele beijo ignóbil, batendo palmas.
- Que linda cena- disse.
Reconhecendo aquela voz, os dois amantes se desapertaram um do outro. Duarte Amorim virou-se de costas para Ana Maria, terrivelmente surpreendido, enquanto ela se tentava esconder atrás das costas dele.
- Que rica merda de amigo eu arranjei- dizia Victor- devia estar bêbedo quando pensei que tu eras um gajo decente.
- Então Victor...- dizia Duarte profundamente embaraçado.
- Então Victor? Tu és um bardino. E o mais grave de tudo è o facto de eu ter desabafado contigo, tantas vezes, as preocupações que sentia acerca dessa ...dessa nojenta...
- Victor, não te admito que ofendas a Ana Maria.
- Então anda cá, vem-me partir as trombas!
- Deixa-te de disparates. Bolas, somos amigos!- dizia Duarte.
- O gajo è doido !- dizia Victor olhando para o céu- depois de vocês os dois me terem gozado, como podes dizer que somos amigos?
- Victor, uma mulher não vale a nossa amizade!- dizia Duarte.
Ana Maria, ao ouvir aquelas palavras proferidas por Duarte, pela primeira vez deu sinal de si, e num rompante enérgico esbofeteou violentamente o rosto de Duarte.
- Isso, bate-lhe agora- dizia Victor rindo- ele também já deixou de ter interesse?
Ana Maria, chorando, desapareceu batendo a porta com força atrás de si.
- Então Victor, ela è uma doidivanas. Eu fiz-te um favor ao mostrar-te o perigo que corrias.
- Não, tu fizeste um favor a ti próprio. Irias manter esta situação até ela acabar por si, naturalmente. Eu esquecia aquela fulana e tu irias ficar de barriga cheia. Nem penses! Comigo acabou. Tenho muita mágoa em sentir isto, mas eu não posso mais ser teu amigo.
E Victor saiu pelo pequeno portão verde. Só então reparou que algumas janelas da vizinhança estavam ocupadas por vizinhos, que silenciosamente assistiam àquela triste cena. Eles conheciam-no. Que se lixasse! Nunca mais o voltariam a ver. Nunca mais haveria de pôr os pés naquela rua.
Abandonou aquele sítio com passos largos. Duarte Amorim seguia-o. Nervosamente perguntou:
- Victor, e o livro?
- Livro? Qual livro?- perguntava Victor sem parar.
- O livro que o Viajante te deu- respondeu Duarte.
Victor estancou o passo e virando-se para trás disse:
- És mesmo baixo. Agora percebo porque è que repudiaste a gaja. O livro não o entrego a ti, porque è meu. Mas mesmo que ficasses com ele, o efeito seria o mesmo. Tu traíste-me. Zombaste da nossa amizade. Não somos mais « agente condutor » de coisa nenhuma. E sabes que mais? Quero que tu e os extraterrestres vão levar onde levam as galinhas.
- Mas Victor, tu não és o gajo que eu conheço.
- Pois não Duarte, porque o Victor que tu conhecias, usaste e deitaste fora. Só ficou este que está à tua frente.
- Mas se não acreditas e não queres o livro para nada, dá-mo que...
- Pois será essa a minha vingança, meu ex-amigo. Se fazes tanta questão em possuíres aquele maldito livro, nunca mais o hás-de ver, nem que eu o tenha de deitar para o fogo. Adeus Duarte, pela vida fora enche bem a barriga à conta de papalvos como eu, que pelo meu lado hei-de ver se tenho uma vida séria, sem interesse.
- Não podes estar a falar verdade- dizia Duarte.
- Estou a falar verdade. Não mais me dirijas a palavra, porque se o fizeres podes ter uma surpresa.
- Estás-me a ameaçar?- perguntou Duarte com um sorriso cínico.
- Porquê? Não posso?...han...não posso?- e Victor avançava para Duarte. Este sentindo-se inesperadamente em perigo, afastou-se de Victor correndo...(pág. 34)

in VISITADOS

Novembro/1999

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