quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

FELIZ ANO DE 2010

A todos os que têm visitado e comentado este blogue, desejamos as maiores felicidades para 2010.
Uma palavra muito especial para os autores dos blogues Mari Amorim Brincando com a Rima, Pouso da Verdade, Oficina de Estética, Observatório 234, 3vial, Coimbra B, A Alma e a Rosa, Arte Poética e Viajar Pela Leitura, com quem fiz um excelente intercâmbio de idéias em 2009,e que me fizeram sentir intelectualmente vivo.
Em 2009,neste blogue, viajámos pelo mundo e o mundo por nós viajou.
Que esta profusão de idéias e ideais se mantenha em 2010.
A todos, bem hajam!

domingo, 27 de dezembro de 2009

DA PERSPECTIVA DO ASSALTO AO ASSALTO EM EXECUÇÃO

...- Fico contente por isso. Mas falemos agora um pouco do motivo pelo qual aqui estamos reunidos. Se o meu sobrinho aparecer, o que faremos?
- Eu fico aqui sentado com o jovem moço. A senhora vai para a sua cama. Isto è assunto de homem- opinou o criado negro.
- O Armando tem razão D. Silvina. Se alguém aparecer, irá ter uma boa surpresa.
- Se vocês me fazem esse favor, eu então vou-me deitar. Não sei se conseguirei dormir, logo se verá. Obrigado pelo teu apoio, Serôdio.
- Não tem que agradecer D. Silvina. Apenas faço o que acho que está certo.
- Sim, mas tão jovem e com esse sentido de justiça...
- Fartei-me da arrogância e má educação do seu sobrinho. È só isso.
- Então boa noite- disse D. Silvina, que de imediato abandonou a sala africana.
Com a ausência de D. Silvina, Armando Mapuchi teve o ensejo de, pela primeira vez desde que chegara a Portugal, poder conversar amistosamente com um branco. E foi isso mesmo que aconteceu. Serôdio falou das suas experiências europeias. Armando expôs as suas aventuras africanas. E mais uma aliança ali nasceu. Serôdio sentia-se feliz. A sua aposta em se deslocar àquela casa, deslocação essa feita com tanta relutância, acabou por o premiar com a obtenção de duas almas amigas. Aquele momento havia de vir a ser precioso para a sua vida. Mas era impossível ao jovem Serôdio saber disso.


A casa estava em profundo silêncio. Os pêndulos de um antigo relógio de parede marcavam ritmada e monotonamente a passagem do tempo.
Eram duas horas da madrugada. Na sala africana, mergulhada agora na escuridão, Serôdio e Armando dormitavam, sentados nos enormes sofás. A noite confundia-os com os objectos existentes no grande salão. O cansaço vencera a expectativa de que ambos estavam imbuídos. Mas, naquele momento, sem que se apercebessem disso, não estavam realmente sozinhos. Narciso Conde e os seus três amigos punham em prática aquilo que o colega de Serôdio ouvira na casa de banho do café.
Perfeito conhecedor de toda a casa Lobito de Benguela, Narciso galgara o gradeamento exterior e silenciosamente deslocara-se com o seu grupo para as traseiras da casa, onde sabia existir uma porta que dava para a cave. Maquinando havia muito aquele acto, um dia conseguira apropriar-se de uma de três chaves daquela mesma porta. A sua tia nunca dera pela falta da chave, nem tão pouco o tição que lá trabalhava em casa. Ele sabia que aquela porta quase nunca era utilizada. Por outro lado, a vida pouco ocupada da tia não lhe trazia grandes preocupações de segurança.
Junto à porta, cada um dos rapazes enfiou um capuz de lã preta na cabeça, que lhes dava até ao final do pescoço. Apenas tinha três orifícios: para os olhos e para a boca.
Narciso meteu a chave na fechadura. Com máximo cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível, rodou a chave na fechadura e a porta abriu-se. De imediato os quatro penetraram na cave No interior havia um forte cheiro a bafio. Com uma pequena lanterna Narciso Conde procurou a porta interior que dava acesso à casa propriamente dita. Em busca da tal porta, foi iluminando montes de objectos que ali se foram impregnando de pó: uma cómoda velha, cadeiras muito usadas, duas camas desmontadas cujas peças se amontoavam no chão, uma enorme pilha de jornais velhos e duas bicicletas com os pneus vazios. Finalmente a circunferência luminosa passou pela tal porta. Daí a um instante estavam os quatro no primeiro andar. Pé ante pé, percorreram o longo corredor e finalmente entraram na sala africana. Narciso de imediato se dirigiu para o quadro que representava a caçada ao leão, nas savanas africanas. Nenhum dos quatro dera pelas presenças de Serôdio e Armando, que recostados nos sofás, lentamente entravam cada vez mais num profundo sono.
O quadro que escondia o tão desejado cofre, estava a ser retirado da parede por dois dos rapazes do grupo de Narciso. Ao poisarem-no no chão, não se aperceberam de que um jogo de lanças indígenas se encontravam ali perto, cruzadas e colocadas na vertical, pelo que, com um dos lados da enorme moldura, embateram nas lanças. Com um grande estrépito as armas caíram ao chão. Os momentos que se seguiram foram de grande confusão. Acordados pelo barulho das lanças, Serôdio e Armando saltaram dos sofás, como que espicaçados por um alarme interior.
- Eles já cá estão, eles já cá estão- gritava Serôdio.
Assustados e espavoridos com aquelas inesperadas presenças, os quatro intrusos atropelavam-se uns aos outros, na ânsia de fugirem, enquanto Armando, ainda meio atarantado, tentava desesperadamente encontrar o interruptor da luz.
Passado o momento da surpresa, os intrusos verificaram que se encontravam em vantagem. Embora os olhos estivessem habituados à escuridão, foi um pouco a tactear que tentaram a fuga. Armando barrou-lhes o caminho, pelo que dois deles se envolveram numa luta corpo a corpo com o criado negro. Nesse momento a sala africana foi inundada pela luz. D. Silvina, alertada pelo barulho dos berros de Serôdio e Armando, de imediato acorreu ao salão e ligou a luz num interruptor existente próximo da porta da sala africana, que dava acesso aos quartos. O que viu deixou-a pregada ao chão. O cofre embutido na parede encontrava-se exposto, desprotegido, enquanto que o quadro que o escondia estava no chão. Quatro encapuçados, com garruços pretos enfiados na cabeça, encontravam-se no meio da grande sala, estando dois deles a lutar com o pobre Armando. Serôdio, também ele colocado ao centro do salão, tentava fazer frente aos restantes dois. Por um momento todos se imobilizaram... (em continuação- pág. 30- ex. IX)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

ESTAÇÃO VAZIA

No meu calendário da vida
De dias e meses já esquecidos
Tive esperança de encontrar
Uns sonhos há muito perdidos.

Numa estação vazia
Tirei um bilhete sem préstimo
Mais um caminho sem rumo
Mais um favor
Que à vida eu peço.

Dá-me um pouco do teu sol
Felicidade fugidia.
Abraça-me com o teu carinho
Faz da minha noite o teu dia.

Naquela estação vazia
Sem passageiros nem bagagens,
Perdi o comboio da vida.
Cansado e desiludido
Me abandono á tristeza
De inóspitas imagens.

Mas um sorriso me aqueceu
Um carinho me iluminou
E numa ansiada promessa
De um amanhã de esperança,
Um novo comboio chegou.

Pela vida já viajo.
Afinal alguém me espera.
Coração em sobressalto,
Não sejas tão pessimista.
Sê flor, sê airoso,
Sê a própria Primavera.
Olha o mundo com candura.
E nele sente o bem
Que na esperança perdura.

29/09/1999

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ARMANDO- MEMÓRIA DE GUERRA

...- Mas como pode a senhora confiar assim em mim, se apenas me conhece há meia dúzia de horas?
- Há coisas na vida que nunca hão-de ter explicação. Acontecem num segundo e duram uma vida inteira. A minha confiança em ti è uma dessas coisas. Para mim, és alguém que eu sempre conheci. És decerto o amigo que me fazia falta.
- Mas eu só tenho dezassete anos...
- E então? Eu não te estou a pedir em casamento- disse D. Silvina sorrindo, o que fez com que Serôdio ficasse corado- apenas sei que és alguém onde eu me posso apoiar, caso precise, como faria com um filho.
- A senhora D. Silvina pode contar que eu a ajudarei até onde puder.
- Obrigado Serôdio. Mas falemos um pouco de ti. Tão jovem como és, com certeza que terás inúmeros projectos para a tua vida.
- Sim, realmente assim è. Não são assim tantos projectos como isso, mas os suficientes, caso se realizem, para me garantirem um bom futuro.
- E que projectos são esses?
- Quero tirar medicina.
- Queres ser médico então!
- Sim.
- Estás em que ano?- perguntou D. Silvina.
- Estou a terminar o segundo ano do curso complementar. Mais um mês fica pronto. Depois terei um ano de propedêutico. Se tudo correr bem, para Outubro de 1978 entrarei na faculdade de medicina.
- Os teus pais devem estar muito orgulhosos de ti.
- Sim, penso que sim- respondeu Serôdio com um pouco de timidez, que lhe era peculiar sempre que falava de si próprio- eu não lhes tenho dado problemas, cumpro com as minhas obrigações, dou-lhes o meu afecto, só há razão para sermos felizes.
- Não tens irmãos?
- Não, sou filho único. Quando um dia tiver a minha vida bem orientada, os meus pais hão-de viver comigo.
- És um filho de ouro!
- Eu gostaria que a senhora D. Silvina fosse a nossa casa, conhecer os meus pais. Pelo que vejo a senhora vive muito sozinha. Os meus pais sabem ser bons companheiros.
- Com certeza que irei Serôdio. Tu tens razão. Desde a morte do meu marido, a minha vida tem sido uma completa solidão.
- Mas, a senhora e o seu marido nunca tiveram amigos?
- Sim, muitos. Esta casa esteve muitas vezes cheia deles. Mas com a morte do Raúl, talvez prevendo que recorresse a eles para sobreviver, ou talvez porque só fossem mesmo amigos do Raúl, o que è certo è que com o seu desaparecimento desapareceram também os amigos. Sobrou apenas o Armando.
- Ele chama-se só Armando?
- Não, ele chama-se Armando Mapuchi. È muito bom criado e muito bom homem também.
- Ele não sente saudades da família?
- Essencialmente ele sente saudades de Angola. A família já a esqueceu, porque com a guerra civil que grassa por lá, ele convenceu-se de que toda a família morreu.
- Porquê?- perguntou o rapaz.
- O pai dele foi soldado do exército português. Ele está convicto de que por causa disso todos os seus familiares terão sofrido represálias por parte dos soldados da UNITA e do MPLA. Angola mergulhou num banho de sangue. O Armando teve muita dificuldade em adaptar-se à forma de viver dos europeus. Somos uma sociedade com demasiadas regras. O facto de há muitos anos trabalhar para nós, ajudou-o na adaptação à vida em Portugal.
- Ele nunca arranjou nenhuma mulher?
- Penso que não. È um homem dócil, extremamente servil e vive amargurado com o sofrimento do seu povo. Está-nos imensamente agradecido por o termos trazido para Portugal.
- No entanto vivem cá tantos angolanos e angolanas...
- Que não gostam de mim por inveja- interrompeu o criado negro que naquele momento entrava na sala- sabem que eu não tenho dificuldades, nem sou explorado como eles são. Para me ofenderem , dizem-me que eu continuo a ser criado de quem ajudou a manter o colonialismo. Mas eu não me ofendo. Eles só è mesmo dor de cotovelo. O meu lugar è nesta casa, porque o senhor coronel e a senhora salvaram-me da catana da UNITA ou do MPLA. Por isso è nesta casa que eu tenho de fazer a minha vida. O jovem moço perguntou se eu tinha mulher. Eu digo-lhe. A mulher que estava para viver comigo morreu no Lobito, numa poça de sangue.
- Armando, tu nunca me disseste isso- retorquiu D. Silvina.
- Pois não senhora, não valia a pena. Eu não quero mais mulher.
- Desculpe Armando, por minha causa estamos a recordar coisas tristes.
- Não faz mal jovem moço. Todo o dia eu penso nela um bocadinho.
- Bem, mas è melhor realmente falarmos de outras coisas, senão não tarda estamos os três a chorar- disse D. Silvina.
- Eu não tenho razão para chorar, senhora. Aqui eu sou feliz- disse Armando...(em continuação, pág. 26- ex. VIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

VOTOS DE BOAS FESTAS



A todos os que têm tido a simpatia de visitar este blogue desejamos um Santo Natal.
Uma palavra muito amiga, em particular, para os blogues Viajar Pela Leitura, Mari Amorim Brincando Com A Rima, Coimbra B, Observatório 234, Pouso da Verdade e Oficina De Estética, que comigo têm interagido de forma extremamente divertida e salutar.
Que este Natal seja o pronúncio de uma vida mais risonha, mais justa, mais saudável e mais solidária para a humanidade. Seria decerto a melhor prenda de Natal.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

MISTÉRIO NAS FOLHAS CAÍDAS



Por entre testemunhas carcomidas pelo tempo, a memória dos homens sussurra lembranças há muito esquecidas, atrozes ecos guardados no silêncio das folhas caídas.
São mistérios de um povo.
São murmúrios de Alcácer-Quibir.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

VOCCES CARMELI



Vocces Carmeli é um grupo de Aveiro, composto por vozes e instrumental, do qual nos orgulhamos de ter pertencido.
Porque o Natal se aproxima, e na esperança que uma meiga e humilde memória contribua para a pacificação dos homens, este blogue decidiu dar-vos a conhecer a música que os Vocces Carmeli dedicaram à memória do Santo Padre João Paulo II.

domingo, 6 de dezembro de 2009

CONTACTO- O LIVRO DA ESPERANÇA NO REGRESSO

...O escritório era pequeno. Ali existia uma secretária feita em madeira, uma estante e três cadeiras. Na parede encontravam-se três fotografias penduradas e emolduradas por molduras de madeira, onde se podia ver o pai de Álvaro, o enfermeiro Victor, em três momentos de confraternização com colegas seus, momentos esses que para ele deveriam ter um significado especial. Em cima da secretária estava um pequeno candeeiro curvo, pintado de preto e uma outra moldura, esta poisada no tampo da secretária, onde Álvaro exibia todo o seu franco e amistoso sorriso, na companhia dos pais, por ocasião do vigésimo aniversário do casamento deles.
Na estante existiam três prateleiras que estavam repletas de livros. Catarina abriu as duas portas envidraçadas de par em par, e com o olhar começou a percorrer as quarenta ou cinquenta lombadas que ali existiam. Deteve o olhar numa lombada preta onde se podia ler a palavra « Contacto ». Catarina retirou o livro, enquanto Álvaro colocado atrás dela, com o rosto colado ao rosto dela, a envolvia com os seus braços, que se cruzavam por cima dos seios dela. Catarina perguntou:
- Que livro è este?
- Desde que me lembro de ser gente, que vejo esse livro aí. O meu pai deve-o ter comprado há muitos anos.
- È um livro técnico, è um romance ou o que è?
- Penso que è um romance. Um dia tive curiosidade em o folhear. È uma história sobre o espaço.
- O espaço? Então è ficção científica!
- Acho que sim. Mas existe aí uma coisa nada normal.
- O que è?
- Esse livro não tem o nome do autor.
- Não? Será que foi o teu pai que o escreveu?
- O meu pai? Não, nunca foi muito dado à escrita. A sua especialidade são as injecções e os pensos.
- Então o livro não è teu, pois não?
- Não, mas se quiseres podes levá-lo. Nunca vi o meu pai demonstrar grande interesse por esse livro. Aliás, penso que nos últimos vinte anos eu fui a única pessoa que lhe mexeu. E depois, o livro ao estar contigo não pode ficar em melhores mãos.
- Obrigado Álvaro. Eu adoro ficção cientifica.
E Catarina abriu o livro. Depois da página de rosto, na página seguinte surgiu uma pequena dedicatória, que dizia: « para Alexandra que atinge a maioridade no milénio. Possamos nós deixar à tua geração um mundo melhor do que a nós foi deixado ».
- Misteriosa esta dedicatória- disse Catarina.
- Porquê?
- Este milénio será o ano 2001, presumo eu. Se esta Alexandra atinge a maioridade no ano 2001, quer dizer que nesse ano irá fazer dezoito anos, pelo que se presume que terá nascido em 1983. Como pode isto ser possível, se ainda faltam dez anos para chegarmos a 1983? E se tu dizes que o livro já aqui está pelo menos há vinte anos, è verdadeiramente incrível. Como pode alguém indicar tão peremptoriamente o ano de nascimento de outra pessoa décadas antes de esse ano chegar?
- O que leva a crer que aí dentro estará magnífica ficção cientifica. Lê-o e manda-me dizer o que de mais espectacular encontrares. Vou ficar ansioso pelo teu contacto acerca do « Contacto ».
Enquanto ela escolhia outros livros, ele embrenhava-se mais e mais no corpo dela. Os lábios dele passeavam-se pelo pescoço dela, as mãos dele estavam frenéticas e exploradoras. Mansamente, imperceptivelmente, desabotoaram os botões da camisa dela. Ele sentiu a pele dela aveludada, quente, sensual. Catarina fingia manter-se interessada nos livros, mas a sua voluptuosidade traiu-a. Repentinamente se virou para Álvaro e loucamente se beijaram.
Por algum tempo todo o mundo teria de esperar. Até África, até Angola, ali não representavam nada. O amor sempre os transportara para um mundo diferente. Mas naquele momento, o amor era infinitamente mais intenso. Tinha o poder de alcançar para lá do corpo, porque no fundo, bem lá no abismo dos seus sentimentos, eles sentiam não ter a certeza se mais alguma vez se voltariam a amar. Iriam ser separados por um oceano de dúvidas, um mar inteiro de preces...(em continuação- ex. XVII- pág. 50)

in VISITADOS

Novembro/1999

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

PROMESSAS...APENAS PROMESSAS, JÁ QUE ANGOLA É UMA CERTEZA

...A tarde foi-se escoando. A pouco e pouco a sala ficou vazia. Depois de fortes abraços, molhados por lágrimas de dúvida sobre o destino daquele bom amigo, que a maldita guerra chamava, Álvaro e Catarina ficaram sós. Os próprios pais de Álvaro saíram para poderem proporcionar aos dois namorados alguns momentos de intimidade. Álvaro, apoiando os cotovelos no parapeito de uma das janelas da sala, fumava um cigarro e observava o horizonte, encontrando-se demasiado deprimido para poder falar, agora que a sala estava em silêncio. Catarina passava os olhos pelos inúmeros discos, que formavam uma pilha desordenada. Ela quebrou o silêncio.
- O Demis Roussous è o meu cantor preferido.
- Porquê?- perguntou Álvaro.
- Porque è belo, è suave, è melódico, è humano, e através dele pude, abraçada a ti, viver alguns minutos incríveis. Não vou mais esquecer aquela canção...- e chorando correu para os braços de Álvaro.
- Então Catarina...minha loirinha, onde está a tua coragem?- perguntava Álvaro, que com a cara levemente apoiada na cabeça de Catarina, via possíveis imagens de guerra, onde o vermelho do sangue se misturava com o extraordinário verde de uma vegetação luxuriante. De coração apertado afastou-a de si e agarrando-lhe os braços disse- porquê essas lágrimas Catarina? Choras por eu me ir afastar de ti ou choras com medo de me perderes?
- Álvaro, por amor de Deus não digas isso.
- Então minha querida, por amor de Deus te peço que não chores. Em todas as pessoas e especialmente em ti, o que eu preciso de ver é um sorriso de confiança e de esperança. Lágrimas não. Essas só escurecem o meu horizonte.
- Desculpa Álvaro, foi uma pieguice. Chora-se por tanta coisa. Chora-se às vezes por coisas sem importância. É evidente que chorei apenas por já sentir saudades tuas. Se calhar, durante vinte e quatro meses não te vou ver. È muito tempo. Apenas chorei por isso.
Álvaro sorriu e acariciando com as mãos as faces de Catarina disse:
- Desculpa minha loirinha. Fui um pouco rude. São os nervos. Não posso negar que estou um pouco apreensivo, mas acho que é natural.
- Claro que é natural- dizia Catarina enquanto o beijava nos lábios- tu não vais propriamente para uma festa. Ninguém põe cobro à guerra! Há quantos anos existe guerra no Ultramar?
- Começou em 1961. Já passaram doze anos.
- Caramba, ou a ganham ou a perdem, mas manter-se a situação assim indefinidamente...
- É o preço do colonialismo. Os povos autóctones evoluíram um pouco, já conseguem pensar em independência. Além dessa evolução, há que contar com o apoio que recebem de forças externas, que no fundo apenas querem suceder a nós, portugueses, à frente dos destinos das colónias. Graças a esses apoios externos, a guerra tem-se arrastado por todos estes anos e está para durar.
- Achas bem ou mal ires combater os pretos que querem a independência da sua terra?
- Se eu digo que não está certo ir combatê-los, sinto trair a Pátria. Se eu digo que está certo combatê-los, sinto que não gostaria de ver os espanhóis entrarem pelo meu país dentro e subjugarem a minha vontade e a minha liberdade. Mas depois penso que toda esta situação começou há cerca de quinhentos anos. África foi colonizada pela Europa. De então para cá milhões de brancos são tão africanos como os negros descendentes daquelas primitivas e remotas tribos. No contexto actual, não consigo sentir outra coisa que não seja responder afirmativamente à ajuda que o país me pede.
- Que o país te impõe...- corrigiu Catarina.
- Prefiro sentir que o país me pede ajuda. Mas, esta conversa está demasiado política. As paredes têm ouvidos e a Pide chega a todo o lado. Esqueçamos agora a guerra e pensemos em nós. Quando olho para ti, como o faço agora, percebo que me vai ser muito difícil suportar a tua ausência. Escreves-me sempre está bem?
- Vou-te escrever todos os dias meu amor. Se calhar até mais do que uma vez por dia. Que mais me resta fazer senão tentar estar em permanente contacto contigo?
- E eu, minha loirinha, nem sempre terei tempo para te escrever, mas ocuparás por completo o meu coração e a minha mente. E hei-de ver se através de cartas conseguirei transportar África até junto de ti.
- Mas não te esqueças de mandar também o teu amor.
- Juro que não, minha loirinha. Hei-de te enviar um amor ardente, inflamado pela saudade e pelo calor tropical. Mas tentarei revelar-te também as maravilhas naturais de Angola, que eu penso existirem, porque sei que és uma óptima leitora.
- Podes daqui levar alguns livros para os eventuais momentos de ócio.
- Já pensei nisso, mas decidi não levar nenhum livro. O meu espírito vai estar demasiadamente ocupado e preocupado com outras coisas, para que possa ter serenidade, pedida a uma boa leitura. Mas tu podes levar todos os livros que eu aí tenho. Lê-os por mim. Cada livro que tenhas lido terão sido um ou dois meses que passaram. Manda-me dizer quais os livros que estás a ler, quando começas e quando acabas, está bem?
- Prometo-te meu querido.
- Vamos então ao escritório do meu pai. Os livros estão lá arrumados...(em continuação- ex. XVI- pág. 47)

in VISITADOS

Novembro/1999