domingo, 29 de outubro de 2017

A CAMINHO DA CALDEIRA

...António Avilar estivera a trabalhar nessa manhã no viteleiro, uma dependência da herdade onde eram reunidos os vitelos que iam nascendo. Inesperadamente surgira o mouro, que muito rudemente lhe ordenara que fosse para a zona da caldeira recolher uma manada de vacas que por ali pastava. António Avilar optou em ir pela estrada. Como a caldeira ficava fora de Alfeizerão, a caminho de S. Martinho do Porto, António Avilar tomou a direcção que o faria passar pelo Alto da Estrada.
         Que manhã magnífica ele desperdiçara dentro do viteleiro. O sol de Dezembro brilhava intensamente. Levando um cajado apoiado no ombro direito e o casaco velho pendurado nesse mesmo ombro, como era seu costume, António Avilar absorvia aquela dádiva da natureza, que era o calor macio do sol no fim de uma irradiante manhã de Dezembro.

         Subitamente, ao passar junto à capelinha de Santo Amaro, António Avilar estancou o passo. Muito sério, observava intensamente a capelinha. Junto à mesma estava parado o automóvel que lhe aparecera em sonhos. Era o mesmo. Sentiu um repentino arrepio. Os seus pensamentos voltavam a embrenhar-se no oculto, no mistério. Mas que havia ele de fazer? Aquele pesadelo entendera-o como um aviso. Agora que estava bem acordado, dar de caras com o malfadado automóvel, só poderia dar uma interpretação - toda a ameaça se começava a materializar. Rapidamente, sem voltar a olhar para aquele automóvel de mau agoiro, seguiu em frente, na direcção da caldeira, com o espírito perturbado...(em continuação, ex. LII)

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

PRIMAVERA E OUTONO, ESTAÇÕES DE FOGO NO PORTUGAL DE 2017

Escrevo estas palavras imbuído de uma enormíssima tristeza, pois para além de ver a floresta, muitas dezenas de habitações e unidades indústriais do meu país a serem consumidas pelo fogo, de ver este nobre Portugal vestir-se de negro, é-me muito difícil aceitar que 106 meus concidadãos tenham, naquele miserável dia 17 de Junho e neste muito recente e trágico 15 de Outubro, perdido a vida da forma mais cruel que se possa imaginar.
Estamos de luto por três dias mas não podemos estar em paz. Para quem diz que algo tem de mudar eu digo que tudo terá de ser diferente.
De quem é a culpa?
No meu entender a culpa é de sucessivas décadas de uma política incorrecta, ou melhor, sem política nenhuma, para as nossas florestas. Depois que a nossa sociedade mudou, os matos das florestas cresceram a seu belo prazer, de forma completamente irresponsável, e deixámo-nos de preocupar com a correcta florestação, visivelmente espreitando o lucro.
A culpa foi de políticas completamente erradas que extinguiram o corpo da guarda florestal, e que era um garante de vigilância e alerta.
Nesta segunda investida do fogo, o governo tem uma grande quota parte de responsabilidade, pois não foi sensível às alterações climatéricas. E porque o calendário normal dos fogos diz que em Outubro o tempo é de Outono, como tal de temperaturas mais baixas e primeiras chuvas, o governo afrouxou as medidas de segurança, subestimando a alterações do clima, o que se veio a revelar fatídico no Domingo passado.
Exige-se a queda do governo. Mas quem exige a sua queda é quem é incapaz de ver o trabalho que o governo apresentou, em prol da nossa recuperação económica, ou então exige essa demissão porque encontrou nos incêndios o pretexto que aguardava, para ver pelas costas o governo que a esses chamou de medíocres.
Em prol da nossa economia, em prol da recuperação de alguma dignidade de vida por parte do povo, considero que se o governo do PS cair, isso será um enorme erro.
A Direita anunciou a chegada do diabo. E estava certa. O diabo chegou mesmo, entrou no nosso pobre país e devastou-o. Resta saber se o diabo veio por sua livre e espontânea vontade, ou se foi solicitado.
É sabido que ele, o diabo, tem duas capas: com uma tapa e outra destapa. Cá estaremos para ver se este diabo tem, efectivamente, a capa que destapa.

Os meus mais profundos pêsames a todos os familiares das 106 vítimas mortais deste verão e Outono, neste queimado ano de 2017.

sábado, 14 de outubro de 2017

ONIX E TOPÁZIO, O REGRESSO DO ANTIGO SABOR DE COIMBRA

Como bom conimbricense que me considero, tenho um motivo para me sentir muito contente no que à memória coimbrã diz respeito.
É que nos anos 90 do século passado foram extintas duas marcas de cerveja, exclusivamente conimbricenses: a cerveja preta Onix e a cerveja branca Topázio. Poder-se-á achar estranho que eu dê tanto valor à existência de duas marcas de cerveja. Mas é que a questão é mesmo essa: eram de Coimbra, e num país em que tudo é de Lisboa, ter Coimbra duas marcas de cerveja exclusivas é algo bastante importante, para além de estas cervejas terem ajudado a abrilhantar a tradição, para já não falar no seu sabor, que, para quem gosta de cerveja, eram únicas.
Pois bem, eis que esta semana me chegaram às mãos duas garrafas de cerveja Onix e Topázio. Elas aí estão de novo, agora de fabrico artesanal, mas melhores que nunca.
Os meus parabéns à Praxis que apostou na tradição e na reposição de um símbolo coimbrão.

Vale bem um sonoro saído da alma AFRA!

sábado, 7 de outubro de 2017

EM FRENTE À CAPELA DE SANTO AMARO

...Obrigado senhor Bento. Compreendi-o perfeitamente. Onde posso encontrar então o senhor padre José Soares?
- A esta hora, na capela de Santo Amaro, aquela ali ao fundo que se vê daqui - indicou o taberneiro, apontando para o fundo da estrada que levava aos Casais do Norte.
- Mais uma vez obrigado - disse Américo, dirigindo-se para o automóvel. Foi interrompido pelo chamamento do taberneiro.
- Senhor doutor, Deus o abençoe!
         Américo respondeu com um leve sorriso. Entrou no automóvel e fez inversão de marcha, deslocando-se de seguida na direcção da capelinha de Santo Amaro.
         Seria de prever que os três rapazes e o taberneiro ficassem a admirar aquela coisa estranha em movimento. Mas, contrariamente, a novidade barulhenta fora relegada para segundo plano. A razão pela qual aquele forasteiro ali se apresentava, falava mais alto. Perturbada a memória colectiva, depressa esta resvalava para a recordação, o sofrimento. O povo vivia, preferia não se lembrar, mas não esquecia.
         O padre José Soares encontrava-se ocupado com a elaboração de dois assentos de baptismo que tinham tido lugar, havia poucos dias, na sua capelinha. Estava embrenhado naquela escrita, envolto por um pequeno espaço que existia à direita do altar, de pequenas dimensões. Era uma divisão pequenina, com uma escrivaninha simples, uma cadeira e algumas prateleiras onde estavam em arquivo os nascimentos, os baptismos e os óbitos que iam ocorrendo em Alfeizerão.
         Começava o padre José Soares a prestar mais atenção ás exigências do estômago do que propriamente aos pormenores relevantes, de interesse para o baptizado em que trabalhava, quando ouviu um som estranho que lhe parecia vir da entrada da capela. Pousou o aparo na escrivaninha, tapou o pequeno boião onde se encontrava a tinta permanente, saiu pela porta que dava directamente para o altar e atravessou a capelinha. Ao despontar à porta viu uma coisa, daquelas coisas a que chamavam automóvel, e junto àquela coisa um cavalheiro, um fidalgo, que tentava limpar vestígios de lama nas calças finas.
- Já tinha ouvido falar desta novidade do século, mas não tive oportunidade de ver nenhuma, até a este momento - disse o padre José Soares com as mãos à frente do abdómen, apertadas uma na outra.
- É mesmo apenas uma questão de oportunidade senhor padre - respondeu Américo Afonso.
- Efectivamente é. Para locais de maior urbanidade, o automóvel já não será uma novidade assim tão grande. Agora para meios pequenos como é Alfeizerão, ainda é um “Deus nos acuda” - disse o padre José Soares. Depois perguntou - o senhor vem de longe?

- Venho do Bombarral para falar sobre um assunto delicado, com a pessoa certa, que segundo me informou o taberneiro, é o senhor padre mesmo. (em continuação, ex. LI)

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998