sábado, 7 de outubro de 2017

EM FRENTE À CAPELA DE SANTO AMARO

...Obrigado senhor Bento. Compreendi-o perfeitamente. Onde posso encontrar então o senhor padre José Soares?
- A esta hora, na capela de Santo Amaro, aquela ali ao fundo que se vê daqui - indicou o taberneiro, apontando para o fundo da estrada que levava aos Casais do Norte.
- Mais uma vez obrigado - disse Américo, dirigindo-se para o automóvel. Foi interrompido pelo chamamento do taberneiro.
- Senhor doutor, Deus o abençoe!
         Américo respondeu com um leve sorriso. Entrou no automóvel e fez inversão de marcha, deslocando-se de seguida na direcção da capelinha de Santo Amaro.
         Seria de prever que os três rapazes e o taberneiro ficassem a admirar aquela coisa estranha em movimento. Mas, contrariamente, a novidade barulhenta fora relegada para segundo plano. A razão pela qual aquele forasteiro ali se apresentava, falava mais alto. Perturbada a memória colectiva, depressa esta resvalava para a recordação, o sofrimento. O povo vivia, preferia não se lembrar, mas não esquecia.
         O padre José Soares encontrava-se ocupado com a elaboração de dois assentos de baptismo que tinham tido lugar, havia poucos dias, na sua capelinha. Estava embrenhado naquela escrita, envolto por um pequeno espaço que existia à direita do altar, de pequenas dimensões. Era uma divisão pequenina, com uma escrivaninha simples, uma cadeira e algumas prateleiras onde estavam em arquivo os nascimentos, os baptismos e os óbitos que iam ocorrendo em Alfeizerão.
         Começava o padre José Soares a prestar mais atenção ás exigências do estômago do que propriamente aos pormenores relevantes, de interesse para o baptizado em que trabalhava, quando ouviu um som estranho que lhe parecia vir da entrada da capela. Pousou o aparo na escrivaninha, tapou o pequeno boião onde se encontrava a tinta permanente, saiu pela porta que dava directamente para o altar e atravessou a capelinha. Ao despontar à porta viu uma coisa, daquelas coisas a que chamavam automóvel, e junto àquela coisa um cavalheiro, um fidalgo, que tentava limpar vestígios de lama nas calças finas.
- Já tinha ouvido falar desta novidade do século, mas não tive oportunidade de ver nenhuma, até a este momento - disse o padre José Soares com as mãos à frente do abdómen, apertadas uma na outra.
- É mesmo apenas uma questão de oportunidade senhor padre - respondeu Américo Afonso.
- Efectivamente é. Para locais de maior urbanidade, o automóvel já não será uma novidade assim tão grande. Agora para meios pequenos como é Alfeizerão, ainda é um “Deus nos acuda” - disse o padre José Soares. Depois perguntou - o senhor vem de longe?

- Venho do Bombarral para falar sobre um assunto delicado, com a pessoa certa, que segundo me informou o taberneiro, é o senhor padre mesmo. (em continuação, ex. LI)

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

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