sábado, 31 de outubro de 2015

FORD T, UMA CARROÇA BARULHENTA

...Era uma bela manhã de Dezembro, soalheira, luminosa. O sol, como que aborrecido por há muito não acariciar o mundo com os seus raios de vida e alegria, surgiu nessa manhã, sorridente e pronto a reavivar as cores de todas as coisas que fazem os corações dos homens transbordarem de emoção. A pardacenta cor do inverno estava ausente. O sol aquecia frescamente o ar. Todas as plantas, desde a ínfima erva à mais robusta árvore, perante a inesperada e fecunda luz solar, numa rápida e preciosa acção química de fotossíntese, exalavam odores campestres, os quais exaltavam os homens a amarem tudo o que era natural. Aquela era uma manhã mágica. E Américo Afonso sentia isso mesmo. Ao volante do seu automóvel Ford, modelo T, ia percorrendo calmamente a distância entre o Bombarral e Alfeizerão, desviando-se das muitas poças de água, autênticos espelhos da natureza, que reflectiam a luz solar e que de quando em vez o cegavam. De vez em quando cruzava-se com camponeses, que atónitos, paravam e num virar completo de corpo e cabeça, seguiam o movimento daquela carroça barulhenta e que por mais que pensassem, não atinavam com a fonte de energia que a fazia mover. Alguns desses simples homens do campo levavam consigo os seus burros, transportando imensos feixes de erva ou molhos de vides. Outros ainda iam aparelhados com albardas, carregados com toros de lenha para a lareira, que as noites iam frias. Os animais perante a presença da máquina roufenha desatavam a zurrar e a ameaçar fugir, assustados com a terrível visão, para desespero dos donos, que não só lutavam por acalmar os burros, como também eles próprios ficavam inertes de perplexidade. E estas cenas, fruto de algo desconhecido, que pela primeira vez chegava ao conhecimento daqueles homens, faziam aflorar um leve sorriso aos lábios de Américo Afonso...(em continuidade, pág. 121, ex. XLVI)

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

domingo, 18 de outubro de 2015

NOTAS AMADORAS DE UMA HISTÓRIA QUE TAMBÉM É MINHA- EM 1096 UMA UNIÃO DA QUAL NASCEU UM POVO

No decorrer da reconquista cristã, na Península Ibérica, ainda durante o século XI, o rei Afonso VI de Leão e Castela solicitou auxílio a muitos nobres europeus para o apoiarem na luta contra os invasores sarracenos. De entre eles veio o conde D. Henrique de Borgonha, nascido em Gijon, Borgonha- França.
O rei Afonso VI, em agradecimento pelos serviços prestados pelo cruzado francês Henrique de Borgonha, ofereceu-lhe a mão de sua filha Teresa, entregando-lhe também o governo do Condado Portucalense, que descia do Minho até um pouco abaixo de Coimbra.
O casamento teve lugar no ano de 1096.

Nesse ano lançaram-se as sementes do reino de Portugal.

sábado, 3 de outubro de 2015

ECOS DA FLANDRES

...A noite de sono acabou ali. Até clarear o dia António Avilar pensou no seu passado e no seu presente. Todo o resto da noite foi acompanhado pelo som monótono e triste da chuva que não parava de cair, e pelo barulho do vento, que por vezes fazia abanar uma ou outra tábua mais solta das pobres paredes daquele abrigo sombrio. E deitado na velha cama, os braços cruzados atrás da cabeça, o olhar vagueando pelo telhado nú, sem forro, foi em pensamento ao encontro da sua bela Luísa, que nesse preciso momento, na riqueza de um fausto lar, com a sua sensualidade arrebatadora, tornava feliz um leito conjugal. A ele, como companhia, restava-lhe o vento, a chuva e a arrepiante certeza de que para todos aqueles que habitavam o seu passado, ele não passava de um cadáver abandonado numa sepultura que ninguém conhecia. Para alguns, para Luísa, talvez significasse um pouco mais. Mas mais não era do que uma recordação e às recordações não lhes era dada a faculdade de falarem, de terem uma participação activa na vida dos homens...(em continuidade, pág. 120, ex. XLV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998