sábado, 3 de outubro de 2015

ECOS DA FLANDRES

...A noite de sono acabou ali. Até clarear o dia António Avilar pensou no seu passado e no seu presente. Todo o resto da noite foi acompanhado pelo som monótono e triste da chuva que não parava de cair, e pelo barulho do vento, que por vezes fazia abanar uma ou outra tábua mais solta das pobres paredes daquele abrigo sombrio. E deitado na velha cama, os braços cruzados atrás da cabeça, o olhar vagueando pelo telhado nú, sem forro, foi em pensamento ao encontro da sua bela Luísa, que nesse preciso momento, na riqueza de um fausto lar, com a sua sensualidade arrebatadora, tornava feliz um leito conjugal. A ele, como companhia, restava-lhe o vento, a chuva e a arrepiante certeza de que para todos aqueles que habitavam o seu passado, ele não passava de um cadáver abandonado numa sepultura que ninguém conhecia. Para alguns, para Luísa, talvez significasse um pouco mais. Mas mais não era do que uma recordação e às recordações não lhes era dada a faculdade de falarem, de terem uma participação activa na vida dos homens...(em continuidade, pág. 120, ex. XLV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

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