terça-feira, 30 de março de 2010

DOIS ALFERES NO MAIOMBE

...Na manhã seguinte a companhia bateu toda a área circundante do aquartelamento. Pelas manchas de sangue que se espalhavam pelo mato rasteiro, era evidente que se tinham feito estragos no seio do inimigo. A companhia apenas tivera alguns feridos ligeiros. Houve mérito na maneira como se souberam proteger, mas também tiveram uma grande dose de sorte. E lá encontraram mais três Kalachnikov a juntar ao imenso arsenal bélico capturado aos terroristas.
O Ninda estava um pouco roto, mas nada que os bons «costureiros» não pudessem facilmente resolver.
Sentado à porta da messe de oficiais, sob a protecção de um comprido alpendre, o alferes Santa Cruz recordava aquele ataque nocturno ao aquartelamento do Ninda, enquanto observava a chuva intensa que se abatia sobre o quartel improvisado. Furiosos pingos de água caiam do céu negro, empapando o chão térreo da parada. A chuva era de tal modo intensa que provocava uma espécie de neblina. A chuva trazia a benção da paz numa terra em guerra. O alferes Santa Cruz estava sentado sob o alpendre com o pé direito apoiado numa pequena cerca feita de troncos, cerca essa que dava consistência ao suporte do alpendre. Pela posição em que tinha o pé direito, obrigava a que a respectiva perna estivesse curvada e mais elevada do que a perna esquerda. No joelho direito apoiava a mão direita e com ela segurava uma carta, um aerograma da sua namorada. O próprio tempo, triste e monótono, era propício a que a nostalgia tomasse conta do seu espírito.
- Que raio estás tu a fazer aí à chuva ?- perguntou o Alferes Mendes que entretanto viera do interior da messe de oficiais.
- Vim reler a carta da minha namorada, que recebi ontem- disse o alferes Santa Cruz- tenho tantas saudades dela.
- Esse è um tormento que eu consegui evitar.
- Qual?- perguntou o alferes Santa Cruz.
- Saudades de uma namorada. Não tenho nenhuma. Apenas me correspondo com uma madrinha de guerra...
- Que se calhar, mais cedo ou mais tarde, vai dar no mesmo.
- È possível. Numa ou noutra carta que lhe escrevo, sempre lhe vou dando a conhecer um pouco mais de mim. E não nego que isso já cria uma certa dependência de correspondência. Mas è só. Tu, és capaz de não sentir só dependência. Já è uma ânsia.
- Sim è verdade Mendes. Na tropa, as cartas da namorada são esperadas tal como o pão o è para uma boca esfomeada. Eu era capaz de ser aqui mais feliz se não tivesse nenhuma namorada na Metrópole.
- Não te enganes meu amigo- disse o alferes Mendes- eu não tenho namorada e no entanto a minha felicidade è tanta como a tua. Aqui não temos tempo para a felicidade. Preservar vivo o coirão è o nosso grande objectivo.
O alferes Mendes sentou-se num banco ao lado do alferes Santa Cruz. Puxou de um cigarro e ofereceu outro ao camarada de armas. Ambos, em silêncio, contemplavam o imenso horizonte molhado que se espraiava à sua frente.
- Em Fevereiro, três dias antes de virmos embora, a minha namorada, a Catarina, perguntou-me se eu achava bem vir combater os pretos, que lutam pela independência da sua terra. Na altura fiquei muito dividido na resposta a dar-lhe, mas ao fim de nove meses de guerra a indecisão não è nenhuma. Acho mal vir combatê-los, porque efectivamente esta terra nada tem a ver comigo. Mas quando entro em combate, esqueço-me do aspecto político e faço a guerra pela guerra. Ver companheiros meus serem mortos por esses estupores, faz-me esquecer o civismo, a decência e o meu ser quase explode de raiva. E tu Mendes, que sentes tu?
- Essa pergunta que a tua namorada te fez è de muito difícil resposta. Felizes dos que vêm para aqui combater em perfeita ignorância. Sabem apenas que ao inimigo se dá o nome de turras, mas não sabem porque è que os turras são o inimigo. Eu sei que esta guerra è injusta. Sei o que os angolanos sentem por nós. Basta olharmos para nós próprios, para a nossa história, para a antipatia que geralmente sentimos pelos espanhóis, para percebermos o que vai no íntimo desta gente em relação aos portugueses. Mas tudo isto è política, e essa è dos políticos. Eu sou português. Se a Pátria me diz que quer a minha ajuda, eu prefiro ficar bem com a minha consciência do que ficar zangado com ela, e bem com a consciência dos angolanos. Eu só tenho vinte e dois anos de idade e a colonização já existe há cerca de quinhentos. Que culpa tenho eu? Que posso eu fazer?
- Comungamos a mesma perspectiva- disse o alferes Santa Cruz- não lutamos por nenhum ideal, ao contrário dos turras. Mesmo sabendo que eles têm direito à sua liberdade, não me iria sentir bem na pele de traidor à Pátria.
- E por vezes bastante patriotas temos de ser, para aguentarmos algumas situações. Gostaste do ataque nocturno de anteontem aqui ao Ninda?
- Pulei de satisfação!! Foi o primeiro ataque nocturno que sofri desde que estou em Angola- respondeu o alferes Santa Cruz.
- E por causa dele, ouvi o capitão Rebelo dizer que iremos bater a mata em missão de reconhecimento.
- Neste maiombe denso, essas incursões são sempre uma porra. Terão os turras sido ajudados pela sanzala dos «Nhembas»?- perguntou o alferes Santa Cruz.
- È possível. Angola tanto está nos partidos políticos como nos vários povos que habitam as sanzalas espalhadas pelas savanas. O capitão Rebelo considera ser urgente o reconhecimento à zona. Com chuva ou sem ela, com o rio Cuango vazio ou cheio, a operação terá início o mais tardar depois de amanhã...(em continuação, pág. 57, ex. X)

in VISITADOS

Novembro/1999

segunda-feira, 15 de março de 2010

ALFEIZERÃO E BOMBARRAL: UMA BATALHA MUDA

...Havia já três meses que o caminhante trabalhava na herdade Vila de Ló. Mostrara-se um excelente trabalhador. Sentia que o dono da herdade, Barreto Raposo, estava satisfeito com a sua prestação. Uma boa força de trabalho, em troca de meia dúzia de tostões, era decerto um bom negócio. Fazendo tudo para cair nas boas graças do fivelas, o Caminhante pediu humildemente ao patrão que lhe desse descanso naquele dia 10 de Agosto, para descontar no pagamento e o permitisse ir na carroça que nesse mesmo dia o Barreto Raposo enviava ao Bombarral. O fivelas acedeu, na condição de independentemente descontar o dia, o Caminhante ter de trabalhar um Domingo. Era uma injustiça, uma prepotência, mas outra coisa havia a esperar? Os necessitados estarão sempre sujeitos à desumanidade dos poderosos, pelo menos até um dia. E o Caminhante precisava muito de sair daquele ambiente. Constrangia-o o facto de trabalhar no seio de homens que não conseguiam ser verdadeiros amigos no trabalho. Percebia-se nitidamente que ali existiam dois grupos distintos : os de Alfeizerão e os do Bombarral.Os Bombarralenses, por mais esforços que fizessem em ser simpáticos para com os de Alfeizerão, recebiam sempre destes más respostas e olhares antipáticos. Por vezes davam-se até pequenas escaramuças. As coisas não chegavam a vias de facto, porque o controle patronal era apertado.
A herdade era efectivamente muito grande e rica. Setenta homens regavam com o seu suor aquele chão, de modo a que fosse fértil em gado, milho e trigo. Quarenta eram do Bombarral, os restantes eram Alfeizerenses. O Caminhante sentia que ali existia muita mágoa afogada num impressionante mar de injustiça. Injustiça que não era cultivada pelos quarenta trabalhadores do Bombarral, que esses eram simples e honestos homens do povo. A injustiça nascia no sentir, no querer do Barreto Raposo. Mas a revolta amordaçada era debilmente manifestada pelos de Alfeizerão, através do azedume com que tratavam os do Bombarral. Não tinham força nem arte para mais.
Em três meses o Caminhante pôde aperceber-se de tudo isto. Sentia-se em terra de ninguém, no meio de fogo inimigo. Teve necessidade de, pelo menos por um dia, abandonar aquele ambiente triste e também porque precisou de confirmar uma suspeita. Agora que estava de regresso a Alfeizerão, não tinha dúvidas. O que a sua memória suspeitava, os seus sentidos deram como certo.
Ao entrar em Alfeizerão pediu ao carroceiro que o deixasse apear-se. Quis fazer o resto do caminho a pé. A noite não tardaria. Talvez encontrasse a taberna do Ti Chico Bento ainda aberta. Notou então que uma figura vestida de negro vinha em sua direcção. Era o padre José Soares. Ia com certeza para casa. Até o padre comungava da tristeza e revolta do povo. O Caminhante sentia isso nas suas palavras, nos seus vazios relativamente ao fivelas.
- Boa tarde senhor padre - disse o Caminhante.
- Santas tardes. Foi bom encontrar-te. Ainda só te vi na missa uma única vez. Se pretendes ser um dos meus paroquianos, tens de ouvir a palavra de Deus mais vezes.
- Sabe senhor padre, os cuidados da terra roubam-me o tempo.
- Ai sim? E os cuidados da alma não te preocupam?
- Muito senhor padre, nem imagina quanto.
- Mas homem, se tens tantos pecados, porque não fazes uma visita ao confessionário?
- Acha o senhor padre que qualquer pecado que seja, tem remédio?
- Homem, a grandiosidade e a bondade de Deus são infinitas.
- Talvez um dia me entregue nas suas mãos.
- Fico à tua espera. Mas estou a falar contigo e não tens um nome pelo qual eu te possa chamar. Recuso-me chamar-te “Zé da Estrada". Afinal qual é o teu nome?
- Senhor padre José Soares, eu ao senhor não posso mentir, como tenho feito por aí. Eu tenho nome sim. Mas preferia não o divulgar, pelo menos por enquanto.
- Como queiras. Não insisto. Mas sinto que essa alma vive em sofrimento.
- Tal como esta terra - respondeu o Caminhante - a sua benção senhor padre.
- Deus te abençoe homem e te dê luz para seguires o teu caminho. Sabes muito mais do que aquilo que queres mostrar. Que idade tens?
- Muito menos do que pareço, senhor padre. Agora que tenho a sua benção, cá me vou.
O padre José Soares por um momento ficou a ver o Caminhante afastar-se. Por algo que não podia compreender, veio-lhe ao peito uma súbita e angustiante saudade do pequenino Leandro, do morgado Vitorino e do capataz José Chambão. E sobreveio o doloroso sentimento de culpa, pela sua atitude quase passiva perante o triplo rapto que ali tivera lugar, havia já doze anos...(em continuação, pág. 88- ex. XXIX)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

sexta-feira, 12 de março de 2010

UM CIGARRO POR ACENDER

...Américo Afonso dirigiu-se à casa de Luísa. Pelo caminho, cego pela felicidade que levava, tirou o chapéu à velha figueira, sem se aperceber de que ali perto se encontrava um ancião. Este, ficou de olho arregalado. Um advogado da Casa das Leis a tirar-lhe o chapéu, a ele, um velho agricultor?!
Américo Afonso ao aproximar-se da casa de Luísa cruzou-se com um pobre mendigo. Este parou e disse-lhe:
- Vossa senhoria tem a fineza de me dar lume para acender este cigarro?
- Não fumo meu amigo.
- Paciência. O cigarro terá de ficar para outra ocasião. Deus lhe dê sempre a felicidade que o envolve.
- Como sabe? - perguntou Américo.
- O seu rosto é como um livro aberto. Passe muito bem.
- Espere bom homem - pediu Américo - deixe-me ajudá-lo. - E Américo foi com a mão direita à bolsa para retirar algumas moedas.
- Não se mace vossa senhoria - respondeu o caminhante, pois era dele que se tratava - Deus não quis que eu fosse feliz. Não é de moedas que eu sinto falta. Tenho saudades de mim próprio.
- E não se pode recuperar?
- Com esta cara e este corpo, não. Tenho a alma suja. Enquanto não a lavar, nada por mim posso fazer. E quando isso acontecer, já será tarde demais.
- Porquê bom homem?
- Porque para infelicidade chegou uma vez. Seja feliz senhor doutor.
- Qual é o seu nome? - perguntou Américo, perplexo por ver que o outro sabia qual a sua profissão.
- Em Alfeizerão, onde trabalho, chamam-me " Ti Zé da Estrada" - disse o caminhante enquanto se punha a caminho, o bordão a tiracolo, o saco pendurado no bordão e o casaco pendurado no ombro direito, onde apoiava o bordão.
Que encontro tão enigmático. Aquele pobre homem falava sem se revelar. Américo ficou a observá-lo até ele desaparecer numa curva do caminho. Sentia-se que ali existia um segredo. Américo caminhava perturbado, sem se aperceber que chegara à casa de Luísa.
- Bom dia senhor doutor - saudou-o Carlos Avilar.
- Bom dia Carlos. Viste passar por aqui um homem com trajes muito velhos?
- Vi sim senhor. Parou, olhou para mim muito fixamente e disse: - “Deus te abençoe".
- É tudo muito estranho - comentou Américo.
Ele e o pequeno Carlos entraram na casa humilde do oleiro. Naquele dia, Carlos Avilar completava o seu 13º aniversário, mas ninguém ali o sabia...(em continuação, pág. 85- ex. XXVIII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

segunda-feira, 8 de março de 2010

O 11 DE MARÇO E OS SUV DE 1975



Recordo com bastante nítidez aquela manhã de 11 de Março de 1975. A viver na região das Caldas da Raínha havia apenas alguns meses, fui surpreendido por um ambiente de tensão no Liceu das Caldas, igual ao que vivera na manhã do 25 de Abril, no D. João III, em Coimbra.Foi-nos dito que não haveria aulas porque em Lisboa estavam a acontecer problemas. Em peso invadimos o café Taiti e por lá ficamos toda a manhã, enquanto em Lisboa o país estava ás portas de uma guerra civil. Os comandos e os pára-quedistas estavam em rota de colisão. Uma tentativa de golpe de Estado estava em curso. À noite, nesse dia, segui atentamente as notícias e as imagens pela televisão. Grande confusão com militares a correrem por todo o lado. O confronto iminente entre as duas forças especiais, a rebaldaria que se via naqueles soldados de cabelo enorme e calças à boca de sino, e subitamente, quando tudo parecia perdido, viu-se surgir um tenente-coronel, que ninguém conhecia, de nome Ramalho Eanes, que conseguiu apaziguar as emoções e fez com que os comandos e páras, quase inimigos, se abraçassem com lágrimas nos olhos. Foi por pouco!
Dois anos depois eu iria pagar bem caro a indisciplina do exército, no tempo do movimento «Soldados Unidos Vencerão» (SUV), quando ingressei no meu serviço militar, em Mafra. O exército estava a recuperar a imagem perdida. Os novos militares, onde eu me incluia, amargaram o rigor de uma disciplina de ferro. Por essa razão nunca mais me esqueci dos SUV.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A DÍVIDA

Há dias, fazendo uma viagem, levava a Rádio Renascença sintonizada no carro. Por casualidade dei com uma entrevista que se estava a iniciar, que tinha por tema a situação económica do país, tendo por convidados quatro economistas, que suponho tenham algum protagonismo no panorama económico português, pois caso o não tivessem não estariam ali. E de palavra em palavra, tentando explicar porque razão somos quem somos, porque motivo seremos dos mais pobres da Europa (suponho que saibam então a razão para a nossa pobreza...é que eu pensava que não sabiam!), a dado passo um dos entrevistados disse que, no dia 31 de Dezembro de 2001, Portugal saldou uma dívida que contraiu em 1902, em pleno reinado do rei D. Carlos. Andámos 99 anos a pagar essa dívida. Eu fiquei banzado!
Eu,como um cidadão comum, do mais banal que se possa encontrar,reflecti um pouco sobre o que acabara de ouvir. Não admira que, tendo o país dívidas de um século, a coisa custe a andar para a frente. Ainda gastamos dinheiro com compromissos monárquicos.
Saberiam os revoltosos republicanos de 1910 da existência desta dívida?

terça-feira, 2 de março de 2010

A REPÚBLICA- 3º ano III

...Dado o balanço a este período, temos de afirmar que houve progresso; duplicou a população, que tem melhor alimento, mais confortável vestuário e apropriada residência; desenvolveram-se a instrução e as ciências, aparecendo obras imortais em todas as manifestações do trabalho e da inteligência.
É tudo o que a burguesia podia dar e é muito.
E se deu tanto, foi por ser impulsionada por um progresso pasmoso e fatal, que ela não começou; e porque, com rótulos novos, governou quase sempre à antiga, em ditadura, que é uma forma do absolutismo para a qual a própria república está apelando e apelará ainda por muito tempo.
Para governar assim, foi preciso encher a pança à corja dos políticos, desmoralizando os serviços públicos pela incompetência dos funcionários, arruinando as finanças pela comilonia dos empregos para engorda, acumulações, aposentações e arranjos ocultos.
Assim também a dívida pública por aí aparece assombrosa por toda a parte; em Portugal é de 30 libras por cabeça, o que quer dizer que não há com que pagar e que estamos quebrados. Em face disto, o que nos sugere o patriotismo? Voltar ao antigo é impossível. As sociedades não recuam em política por deliberação própria; não há uma classe que mereça dirigir-nos à discrição ou que aceitasse tal incumbência...(continua)

in A REPÚBLICA NA BEIRA ALTA

Martins e Abreu
revoltoso do 31 de Janeiro e cavador em Mortágua
1913