segunda-feira, 15 de março de 2010

ALFEIZERÃO E BOMBARRAL: UMA BATALHA MUDA

...Havia já três meses que o caminhante trabalhava na herdade Vila de Ló. Mostrara-se um excelente trabalhador. Sentia que o dono da herdade, Barreto Raposo, estava satisfeito com a sua prestação. Uma boa força de trabalho, em troca de meia dúzia de tostões, era decerto um bom negócio. Fazendo tudo para cair nas boas graças do fivelas, o Caminhante pediu humildemente ao patrão que lhe desse descanso naquele dia 10 de Agosto, para descontar no pagamento e o permitisse ir na carroça que nesse mesmo dia o Barreto Raposo enviava ao Bombarral. O fivelas acedeu, na condição de independentemente descontar o dia, o Caminhante ter de trabalhar um Domingo. Era uma injustiça, uma prepotência, mas outra coisa havia a esperar? Os necessitados estarão sempre sujeitos à desumanidade dos poderosos, pelo menos até um dia. E o Caminhante precisava muito de sair daquele ambiente. Constrangia-o o facto de trabalhar no seio de homens que não conseguiam ser verdadeiros amigos no trabalho. Percebia-se nitidamente que ali existiam dois grupos distintos : os de Alfeizerão e os do Bombarral.Os Bombarralenses, por mais esforços que fizessem em ser simpáticos para com os de Alfeizerão, recebiam sempre destes más respostas e olhares antipáticos. Por vezes davam-se até pequenas escaramuças. As coisas não chegavam a vias de facto, porque o controle patronal era apertado.
A herdade era efectivamente muito grande e rica. Setenta homens regavam com o seu suor aquele chão, de modo a que fosse fértil em gado, milho e trigo. Quarenta eram do Bombarral, os restantes eram Alfeizerenses. O Caminhante sentia que ali existia muita mágoa afogada num impressionante mar de injustiça. Injustiça que não era cultivada pelos quarenta trabalhadores do Bombarral, que esses eram simples e honestos homens do povo. A injustiça nascia no sentir, no querer do Barreto Raposo. Mas a revolta amordaçada era debilmente manifestada pelos de Alfeizerão, através do azedume com que tratavam os do Bombarral. Não tinham força nem arte para mais.
Em três meses o Caminhante pôde aperceber-se de tudo isto. Sentia-se em terra de ninguém, no meio de fogo inimigo. Teve necessidade de, pelo menos por um dia, abandonar aquele ambiente triste e também porque precisou de confirmar uma suspeita. Agora que estava de regresso a Alfeizerão, não tinha dúvidas. O que a sua memória suspeitava, os seus sentidos deram como certo.
Ao entrar em Alfeizerão pediu ao carroceiro que o deixasse apear-se. Quis fazer o resto do caminho a pé. A noite não tardaria. Talvez encontrasse a taberna do Ti Chico Bento ainda aberta. Notou então que uma figura vestida de negro vinha em sua direcção. Era o padre José Soares. Ia com certeza para casa. Até o padre comungava da tristeza e revolta do povo. O Caminhante sentia isso nas suas palavras, nos seus vazios relativamente ao fivelas.
- Boa tarde senhor padre - disse o Caminhante.
- Santas tardes. Foi bom encontrar-te. Ainda só te vi na missa uma única vez. Se pretendes ser um dos meus paroquianos, tens de ouvir a palavra de Deus mais vezes.
- Sabe senhor padre, os cuidados da terra roubam-me o tempo.
- Ai sim? E os cuidados da alma não te preocupam?
- Muito senhor padre, nem imagina quanto.
- Mas homem, se tens tantos pecados, porque não fazes uma visita ao confessionário?
- Acha o senhor padre que qualquer pecado que seja, tem remédio?
- Homem, a grandiosidade e a bondade de Deus são infinitas.
- Talvez um dia me entregue nas suas mãos.
- Fico à tua espera. Mas estou a falar contigo e não tens um nome pelo qual eu te possa chamar. Recuso-me chamar-te “Zé da Estrada". Afinal qual é o teu nome?
- Senhor padre José Soares, eu ao senhor não posso mentir, como tenho feito por aí. Eu tenho nome sim. Mas preferia não o divulgar, pelo menos por enquanto.
- Como queiras. Não insisto. Mas sinto que essa alma vive em sofrimento.
- Tal como esta terra - respondeu o Caminhante - a sua benção senhor padre.
- Deus te abençoe homem e te dê luz para seguires o teu caminho. Sabes muito mais do que aquilo que queres mostrar. Que idade tens?
- Muito menos do que pareço, senhor padre. Agora que tenho a sua benção, cá me vou.
O padre José Soares por um momento ficou a ver o Caminhante afastar-se. Por algo que não podia compreender, veio-lhe ao peito uma súbita e angustiante saudade do pequenino Leandro, do morgado Vitorino e do capataz José Chambão. E sobreveio o doloroso sentimento de culpa, pela sua atitude quase passiva perante o triplo rapto que ali tivera lugar, havia já doze anos...(em continuação, pág. 88- ex. XXIX)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

10 comentários:

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Quase que aposto que o nosso "caminhante" é nada mais, nada menos, que o pequeno Leandro...
Saudações

Mari Amorim disse...

amigo poeta,
passei pra degustar o sabor de suas palavras, e deixar um abraçãoooo apertado.
Boas energias
Mari

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
Deixe-me que lhe diga que o Leandro é a razão da minha existência.

O Caminhante.

Poeta do Penedo disse...

Cara Mari
Tenham as minhas palavras a força que têm as suas.
É sempre muito bem vinda.
Obrigado pela amizade, que retribuo.

MM disse...

Caro Poeta,

O ser humano realmente é um animal gregário, com a particularidade de ele próprio instigar fronteiras que de modo algum se poderão assumir como naturais.

A inusitada rivalidade entre Bombarral e Alfeizerão é exemplar disso mesmo.

A título nacional várias são as rivalidades territoriais: norte-sul, interior-litoral, continente-zonas autónomas, etc.

Pergunto-me se estas fragmentações têm mesmo razões para existir e se as dificuldades que o país atravessa não passam também por uma melhor coesão nacional.

Amistosamente,

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Tenho sentido falta da sua escrita...

Saudações

Mari Amorim disse...

Amigo poeta,
Usei um Ultra-leve para aterrissar aqui,e preocupada-mente saber,está tudo bem?.Perdoá-me,mas me preocupo com os amigos,espero saber de você antes da Páscoa,mas se não for possível,que o Espírito da Páscoa,traga a você e a sua familia Luz! e muito chocolate branco é claro.
Boas energias,
Mari

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
os bairrismos são muito salutares, quando se mantêm no campo da rivalidade inocente. No entanto deixe-me esclarecê-lo de que entre o Bombarral e Alfeizerão não existe qualquer rivalidade, até porque são localidades afastadas uma da outra cerca de 40 Kms. Essa rivalidade apenas se manifestou neste texto. Rivalidade real é sentida entre Alfeizerão e S. Martinho do Porto, que distam apenas três quilómetros uma da outra.
Com amizade.

RUI disse...

Meu caro Grande Poeta.
Acho que é difícil avaliar, negativamente, os teus textos. Até as pessoas que não te conhecem, conhecem- te através das tuas palavras, da forma como te metes dentro delas.
Continua Amigo. Abraços

Poeta do Penedo disse...

Meu grande amigo Rui Neves
não nego que receber palavras assim é sempre muito agradável, principalmente quando vêm de um grande amigo.
Foi uma grande surpresa, uma muito agrdável surpresa ver-te aqui no blogue.
Obrigado pelas tuas muito amáveis palavras. Espero ver-te por cá mais vezes.
Uma óptima recuperação.
Um grande abraço.