sexta-feira, 24 de setembro de 2010

REVELA-SE O SEGREDO DE UM CAMALEÃO

-... O Carlos nasceu em Alfeizerão e muito provavelmente deve ser filho de um morgado que por lá existiu.
- Um morgado? O mesmo morgado que foi dono da herdade que o Barreto Raposo comprou e para onde levou muitos homens daqui?
- Esse mesmo.
- Mas, mas então porque razão mantiveste o Carlos todos estes anos aqui no Bombarral? Ainda antes disso, porque motivo é que o miúdo veio aqui parar? Onde está o pai?
- Américo, tu estás a partir do princípio de que ali houve uma troca legal de donos. Mas tudo isso é falso. O Barreto Raposo tomou de assalto a herdade.
- O quê? Que me estás a dizer?
- E matou o morgado e o seu capataz. Os corpos estão enterrados aqui no Bombarral. Só o Barreto Raposo sabe onde.
- Pára um pouco Luísa. Deixa-me respirar. Falas-me de assassinos e assassinados, toda uma história relacionada com aquele pequeno. Como veio então o Carlos aqui parar? Como sabes tu de tudo isso?
- O António participou no assalto. Foi ele que raptou a criança sem os outros verem e fugiu com ela para a nossa casa. Como eu era muito nova, ninguém achou estranho eu ter um bebé. Nessa noite a nossa vida mudou para sempre. Ele teve de fugir da ira do Barreto Raposo. Cansou-se dessa vida, pelo que resolveu alistar-se na tropa. Assim foi parar a França. Assim lá ficou.
- Que história dramática está por detrás do Carlos. Ele sabe de tudo isto?
- Ele não sabe de nada. Eu não quero que ele saiba.
- Enquanto for menor Luísa! Mas quando chegar a homem, tem o direito de saber, para poder lutar pelo que lhe foi roubado. Será uma deslealdade não lhe dar a conhecer a verdade.
- Mas eu amo-o como se realmente fosse mãe dele. Fui eu que o criei.
- Tu serás sempre a mãe espiritual dele. Mas há-de haver um dia em que ele deverá saber que não foste tu que o geraste. Quem é a senhora?
- Não sei. O António nunca descobriu o seu nome nem viu qualquer mulher na casa do morgado, no momento do assalto.
- Eu tinha do António uma concepção muito diferente.
- Podes e deves mantê-la. O António era um homem às direitas. Foi enganado. Caiu no logro do Barreto Raposo.
- Poderei eu fazer alguma coisa pelo rapazito?
- Queres dizer pelo meu filho Carlos? Não sei. Isso já aconteceu há doze anos.
- Hei-de sondar a Conservatória de Alcobaça. Alguma coisa lá deve haver. É espantoso como grandes histórias acontecem junto a nós e não damos por nada.
- O Barreto Raposo soube camuflar bem toda a situação. Na herdade de Alfeizerão estão a trabalhar, entre os homens que foram daqui, os restantes seis que também fizeram parte do assalto. Mas o exemplo do António faz-lhes calar a boca - disse Luísa.
- No dia em que falei aos meus pais sobre nós, cruzei-me com um pobre diabo aqui no Bombarral. Disse-me que trabalhava em Alfeizerão. Era um homem estranho. Estou a ver que Alfeizerão é uma terra de grande poder místico. É propícia a acontecimentos complicados.
- Talvez seja uma terra de grande nobreza - respondeu Luísa.
- É possível. Um dia destes vou até lá. Quero sentir a terra onde uma história triste como esta aconteceu e ainda se desenrola, e onde tu tiveste e tens participação directa. Afinal, o herdeiro daquela herdade mora aqui connosco. Alguma coisa tem de ser feita.
Luísa dormia. Habituada que estava ao conhecimento da injustiça, o tempo foi esbatendo e tirando clarividência ao sentimento de revolta. Mas, para Américo Afonso, que acabara de tomar conhecimento do drama de Carlos Avilar, os factos eram muito fortes e muita matéria criminal estava por receber o devido tratamento. Essa mesma matéria, metamorfoseada em legalidade, vivia impune e fartamente em Alfeizerão, rindo-se e porventura gozando da sede de justiça de alguém, que decerto também por lá viveria. Impunha-se uma investigação. A ética profissional assim lho exigia... (em continuação, pág. 94, ex. XXXII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

terça-feira, 21 de setembro de 2010

SERENATA NO PENEDO



O fado. O fado português, que canta a alma de todo um povo, que realça a sua nostalgia, que dá sentido à saudade...
e o fado de Coimbra, que de amor faz a sua melodia. Em Coimbra, e só nela, está a sua alma, enobrecida pelas águas poéticas do Mondego.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

MALHAL DE SULA, ENTRADA DE UM PEQUENO PARAÍSO

...Malhal de Sula era uma pequena mas muito produtiva quinta. O meu pai, Manuel Passos Lopes, e a minha mãe, Beatriz de Sousa, haviam-na comprado três anos antes de eu nascer. Trabalharam arduamente para que, do terreno até então baldio, nascesse uma área agrícola muito fértil. A maior riqueza residia na produção vinícola, muito embora os currais da quinta estivessem atulhados de porcos e de vacas. Por essa razão, a quinta de Malhal de Sula apresentou-se-me com o aspecto de imensos vinhedos, o fervilhar de gente assalariada, e nunca outra coisa onde tivesse entrada a desolação.
A casa onde eu nasci e me criei muito longe estava de ser um palácio, mas era uma casa enorme, nobre, nobreza que nada tinha a ver com sangue real, mas nobreza de carácter, respeito tanto por a quem se devia obediência, como por quem obedecia. Princípios valiosos estes. E era também uma casa cheia. Cheia de fartura e de amor. Os meus pais, pessoas educadas na terra, e que à terra pediam o sustento, para além do trabalho duro do braço na enxada, e mais tarde, na responsabilidade e preocupação em bem saber gerir a riqueza que criaram, tiveram a sensibilidade de fazer de mim uma criança feliz.
Por alturas da terceira invasão francesa, aquando da batalha do Buçaco, que decorreu a poucos quilómetros da nossa casa, o meu pai escondeu-me a mim e mais a minha mãe num alçapão que tinha construído por debaixo da adega, enquanto ele e os seus assalariados patrulhavam a quinta, na tentativa de demover de más acções quem, eventualmente, ali penetrasse com intenções menos honestas. É que naquela época não eram somente os soldados franceses que pilhavam. Muitos salteadores, bem portugueses, aproveitando-se do caos e temor reinantes, também o faziam.
O meu pai não quis que eu fosse lavrador como ele. Queria ver o seu único filho como médico. O rapaz havia de ser doutor. E assim me vi entregue aos cuidados de frei Lourenço, natural da Mealhada, frade muito letrado, do convento de Santa Cruz de Coimbra. Corria o ano de 1811.
Durante os oitos anos que se seguiram, frei Lourenço transmitiu-me muito do seu saber. Aprendi latim, língua que me serviu de veículo para ter acesso ao conhecimento de toda a ordem. E como de ciências se tratava o meu futuro, estudei muitos compêndios de física e química, tendo-me maravilhado com os trabalhos sobre anatomia de Leonardo Da Vinci...(em continuação, pág. 16, ex VII)

in Alma de Liberal

Junho/2009

terça-feira, 14 de setembro de 2010

UM INFANTE NO EXÍLIO



...Não sei que pensamentos, que sentimentos terão passado pela mente e coração do rei D. João VI, mas decerto que agradáveis não terão sido. Com poderia eu, conduzindo os destinos da minha casa, fazê-lo convictamente, sabendo que estava a ir contra a vontade da minha mulher e do meu filho? É certo que um rei, ao conduzir os destinos da sua casa, conduz também o destino de um povo; mas também não é menos verdade que aquela esposa era também rainha e que o jovem filho era infante!
Ao rei talvez lhe tenha faltado convicção política no liberalismo, quem sabe se até força de carácter. O que é certo foi que perante a Vilafrancada D. João VI aboliu a Constituição de 1822, que jurara, e atribuiu o comando do exército ao infante D. Miguel. O absolutismo regressava a Portugal. O rei, que fora aclamado como o salvador do povo, tornava-se agora no seu principal repressor… mas assegurava o seu lugar no trono. Que importância tinha o povo?! Volvidos que são dois séculos, terá o povo adquirido a importância a que diz ter direito?
A ambição terrena leva muitas vezes à perdição. No lugar em que me encontro é convicção que a riqueza aí na terra produz muita pobreza aqui, pois ser dono da riqueza material é a maior prova à elevação da alma; e quantas riquezas existem que não têm produzido qualquer elevação espiritual.
D. Miguel já se mentalizara de que o trono de Portugal lhe havia de pertencer; por isso, mesmo com o pai a ceder ao absolutismo, sem no entanto ter abdicado do trono, o infante, com o apoio da sua mãe, continuava a conspirar. O seu objectivo não era agora o regresso do regime absoluto, que esse já o alcançara, mas o próprio trono. E existiam planos para que o rei fosse preso em Vila Viçosa. Essa conspiração foi descoberta apenas cinco meses depois da Vilafrancada, em 26 de Outubro de 1823. Perante este golpe D. João VI foi brando. Era marido e pai.
Entretanto chegou o ano de 1824. Em Fevereiro desse ano, uma grande ameaça foi feita ao rei, quando o seu conselheiro, o Marquês de Loulé, foi assassinado. Dois meses depois ocorreu o segundo golpe militar absolutista – no dia 30 de Abril de 1824. Ficou conhecido como a Abrilada. O infante D. Miguel não pretendia repor o absolutismo, pois que continuava em vigor, mas somente obrigar o pai a abdicar do trono. As forças de D. Miguel chegaram a prender D. João VI. No entanto o corpo diplomático estrangeiro interveio, pelo que foi possível ao rei refugiar-se num navio inglês ancorado no Tejo. Desse navio, o rei D. João VI, tomou, finalmente, uma atitude: determinou o exílio de D. Miguel e intimidou a rainha D. Carlota Joaquina a que fizesse o mesmo. De novo, a coroa portuguesa, num momento politicamente crítico, era auxiliada por Inglaterra, a fim de manter a soberania do rei.
E foi neste cenário politico, terrivelmente conturbado, que eu nasci, me criei na pacatez da quinta dos meus pais, Malhal de Sula, fui estudar para Coimbra sob a orientação do mui sábio, venerando e afável frei Lourenço de Santa Cruz, e me formei como médico, na universidade de Coimbra. Saí doutor em 1823, o doutor Joaquim Passos Lopes...(em continuação, pág. 14, ex. VI)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

sábado, 11 de setembro de 2010

O DESAFIO DE UM MORTAL A AMON-RÁ



...Mais uma vez a horda de siftos acabara de chegar do mundo dos homens, depositando em MassiftonRá a sua preciosa carga; mas fluídos negativos impregnavam o mundo dos deuses. À mente de Amon-Rá chegara uma mensagem, enviada telepaticamente pelo seu Sumo-Sacerdote Masahemba, em que o deus dos deuses era informado de que a sua sacerdotisa de cabelos de fogo, Nefertiti, havia sido levada do templo, pelo faraó, e que este se preparava para fazer de Nefertiti a sua rainha. Perante tal mensagem, Amon-Rá cerrou os olhos. Não era possível! Um faraó não teria a ousadia de mexer com o equilíbrio existente entre os deuses e os homens. Um faraó não podia ser capaz de se apoderar de uma sacerdotisa escolhida pelo deus supremo. Isso, a ser verdade, desafiava a própria lógica, que fundamentava o estatuto de um deus perante os homens. Tal aberração, nunca ocorrera em toda a história do Egipto. Mas, e se fosse verdade, se se viesse a concretizar a mensagem telepática, qual deveria ser a atitude que ele, Amon-Rá, deveria tomar em relação ao faraó?
Os siftos chegavam da sua incursão ao mundo dos homens. Imediatamente Amon-Rá ordenou que o sifto encarregado de ir ao seu templo, em Tebas, se apresentasse a si.
O sifto em questão, no mesmo momento captou a ordem de Amon-Rá, pelo que se dirigiu à sua presença.
- Qual foi a tua recolha?- perguntou Amon-Rá ao sifto.
- Nenhuma, divino Amon. O templo estava intoxicado com fluídos perversos. Tive de o abandonar rapidamente.
O deus dos deuses fez sinal ao sifto de que se podia retirar. A informação recebida apontava para que a mensagem de Masahemba, correspondia a uma verdade amarga; mas tinha de se certificar de que Nefertiti não era mais sua sacerdotisa.
Durante algum tempo Amon-Rá manteve-se imóvel. O seu olhar vagueava pela imensidão das águas profundas do Nilo, que rodeavam MassiftonRá, enquanto a sua mente estava em turbilhão. Perante a ousadia do faraó, Amon-Rá tinha a sensação de ser impotente para conseguir resolver tal questão, ou seja, reaver a sacerdotisa sem que o fizesse de forma a não prejudicar a maet. Sim, tinha de ser cuidadoso, já que o faraó demonstrara uma irresponsabilidade gritante. É que não havia dúvida nenhuma de que poderiam entrar em confronto as duas mais fortes fontes de poder egípcio: de um lado o faraó, do outro lado o deus dos deuses. Uma coisa era certa: o reino do Egipto não poderia sair fragilizado desta contenda. Também era certo que uma sacerdotisa não seria um valor assim tão importante, pela qual se pusesse em risco a integridade da terra egípcia. Mas não era bem a sacerdotisa que estava em questão, embora lhe fosse extremamente grata, pois uma sacerdotisa com cabelos cor do fogo era raríssima, o que determinava o seu valor, bem digna de estar ao seu serviço, ele, que era o deus supremo; mas a verdadeira questão residia na ousadia que o faraó tivera, na coragem de que estava possuído para conseguir subtraí-la ao templo e levá-la para o seu palácio. Era com essa ousadia que Amon-Rá estava preocupado. De onde viera a força ao faraó, para conseguir cometer tal acto? No fundo, o faraó era um mortal, um mortal que tão frontalmente desafiava a vontade de um deus, ainda por cima o deus supremo. A solução para o problema tinha de ser muito bem ponderada...(em continuação, pág. 30- ex. X)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

DURA PRAXIS SED PRAXIS



Coimbra, sete da tarde. Uma trupe, constituída por seis doutores, avança em direcção a um caloiro desprevenido. Sete da tarde! Há uma hora que deveria estar em casa. Amanhã irá aparecer no liceu (se for aluno a partir do 5º ano), ou na universidade, de cabelo todo rapado, pois não terá outra hipótese senão recorrer a um barbeiro, depois do corte ao cabelo a que a trupe o irá sujeitar, pois foi apanhado na rua depois das seis...a não ser que se refugie debaixo de um telhado e surja o seu padrinho de faculdade para o proteger.
Este o cenário a que qualquer caloiro estava sujeito, em Coimbra, até 1974. As trupes, grupos de estudantes finalistas formados por acção da tradicional e velhissima praxe coimbrã(não sei se ainda existem), vigiavam assim a cidade, no sentido de obrigarem os estudantes ao recolhimento, no intuito de promover boas horas de estudo.
Isto para dizer que, por estes dias, na minha cidade, me veio parar ás mãos um manifesto, um manifesto anti-praxe. Um manifesto escrito por estudantes universitários, da universidade de Coimbra. Fiquei banzado!
Queixam-se eles de que a praxe retira toda e qualquer dignidade ao caloiro. A praxe Coimbrã, mãe de todas as praxes existentes hoje em dia nas universidades portuguesas,a meu ver, não pretende humilhar ninguém, apenas fazer sentir ao caloiro que um curso superior é algo de muito importante na vida de cada um, demonstrando-lhe, de forma gozona, quão despido de importância ele é antes de iniciar o seu curso, e a importância que virá a ter depois de ter o curso concluído. Evidentemente que ninguém pode levar a sério os tribunais de praxe, nem os nomes «carinhosos» com que se é presenteado. Há que ter o mínimo de senso de humor, e só alguém, que toda a vida viveu dentro de uma redoma de vidro é que se pode sentir ofendido com a sua «minimização» como pessoa.
A Queima das Fitas é um símbolo da academia conimbricense, um emblema da cidade, e é impossível haver a «queima» sem existir a praxe. Mas decerto que quem subscreveu o manifesto passa bem sem a queima das fitas, sem capa e batina e sem o fado de Coimbra.
É que quem escreveu o manifesto, de uma coisa eu tenho a certeza: não é de Coimbra, e depois do curso tirado, não assimilou a mais ínfima centelha do espírito coimbrão.
É que, Coimbra, é para deixar saudades para toda a vida. Quem essas saudades não sentir, não foi merecedor de ter pisado a histórica, ancestral e gasta calçada da Alta.