segunda-feira, 24 de abril de 2017

CRAVOS VERMELHOS NO CAMINHO

MEMÓRIAS

…Naquela manhã tudo mudou.
Tal como em todas as manhãs saí de casa por volta das oito menos um quarto em direcção ao Liceu D. João III. Todas as manhãs passava nas imediações do quartel da GNR na Avª Dias da Silva. Naquela manhã achei que as coisas não estavam, na verdade, iguais. Existiam mais homens por ali, e sentia-se que estavam mais agitados. Ao chegar ao liceu existia no ar também agitação. Viam-se muitos professores pelos corredores. Perguntei a um colega se se passava alguma coisa. Respondeu-me que havia um problema qualquer em Lisboa. Dirigi-me para a sala de aulas onde já se encontravam alguns dos meus colegas, que mais nenhumas informações puderam acrescentar. Tocou para a entrada. Do professor…nada. Passaram-se os minutos e deu o segundo toque. O professor continuava a não aparecer. Passados mais uns minutos, quando já nos preparávamos para sair da sala, lá apareceu o professor que nos ia dar a aula, num grande nervosismo.
Entrou e mandou-nos sentar. Depois disse-nos que ia ser breve. Não iam haver aulas porque estava a decorrer em Lisboa uma revolução. Disse-nos que muito provavelmente o regime fascista iria cair. Perguntámos-lhe o que era o regime fascista. Ficou admirado de não sabermos. Dissemos-lhe que nunca ninguém nos tinha falado nisso. Sentíamos que o país não estava bem; sentíamos que não havia liberdade, pois que tudo o que se escrevia tinha de ir à censura, isso sabíamos, mas de regime fascista nunca nos tinham falado. E o professor explicou-nos. E naquela minha primeira sessão de esclarecimento, que durou cerca de meia-hora, percebemos bem em que tipo de regime vivíamos, e o motivo pelo qual se estava a dar aquela revolução. Ficámos a saber que existiam em Portugal muitas prisões de presos políticos, e que a do Tarrafal, no arquipélago de Cabo Verde, era a principal. E entendemos então que a guerra do ultramar mais não era do que a luta de povos pela sua liberdade, e que nós éramos os opressores, e que Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Macau e Timor, não eram nada Portugal. E que a pide era uma polícia política, que torturava pessoas para preservar a continuidade do regime fascista. E que o que se ouvia na rádio, altas horas da noite, (de que nós já tínhamos ouvido falar), transmitido pela BBC, uma rádio democrática, era a denúncia do que se ia passando em Portugal. E que a censura era uma coisa anormal, inimiga da criatividade e da verdade, característica apenas de regimes ditatoriais. E que um dos objectivos principais da revolução era o de terminar imediatamente com a guerra do ultramar, além de erradicar o totalitarismo e implementar uma democracia.
Foi uma meia hora intensa, talvez a mais intensa de toda a minha vida. Saímos da sala de aula com uma visão completamente diferente de tudo. Percebíamos agora que em Lisboa se lutava por deixarmos de ser quem tínhamos sido até ali. Percebíamos agora a preciosidade daquela manhã, em que a vida nos dava o privilégio de estarmos a viver uma revolução, tal como as tinham vivido os portugueses de 1910, 1640 e 1383.
A manhã foi decorrendo sob uma forte ansiedade. Depois chegou a notícia de que tropas, vindas de Lisboa, marchavam sobre Coimbra, porque o Governador Civil de Coimbra não se queria submeter aos revoltosos. E quando houve a certeza de que Marcelo Caetano e Américo Tomás haviam sido derrubados, alguém gritou que fossemos cercar as instalações da PIDE/DGS. E aí, com o sangue a ferver de ardor revolucionário, um magote enorme de estudantes do Liceu D. João III, onde eu me incluía, se lançou numa corrida desenfreada em direcção à pide, cuja sede em Coimbra se localizava a cerca de 500 metros do liceu.
A sede da pide localizava-se numa espécie de casa senhorial enorme, de arquitectura colonialista, com um jardim, rodeada a toda a volta por um forte e alto gradeamento, junto à qual existia um largo. Não muito longe encontrava-se o quartel general da Região Militar Centro. No largo já existiam algumas pessoas, mas após a nossa chegada, rapidamente o largo ficou super-lotado, com algumas centenas de pessoas ali existentes a gritarem todo o tipo de ofensas, dirigidas aos agentes da pide que se sabia estarem dentro da casa. Logo a seguir surgiram soldados do quartel vizinho, amontoados em unimogues, sorridentes, a corresponderem aos vivas que lhes enviávamos, e que, de certa forma, foram servir de segurança aos «pidescos».
E foi ali, naquele largo, mesmo junto ao edifício da pide, que em Coimbra se deu o primeiro grito de liberdade. Não sei se almocei nesse dia. Não me recordo a que horas é que fui para casa. Apenas me lembro de ali ter estado muito tempo, de ter visto muitos soldados a chegarem em berliets, com largos sorrisos nos rostos, levantando bem alto as G3, ao mesmo tempo que o povo os recebia com palavras de ordem, comuns a todo o país, por certo criadas e ordenadas por alguém, que diziam: «O POVO ESTÁ COM O MFA, SOLDADO AMIGO O POVO ESTÁ CONTIGO, O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO».
Depois, pelos dias fora, foi uma permanente necessidade de acompanhar o curso dos acontecimentos pela televisão, ao mesmo tempo que eu participava em enormes manifestações pela Baixa de Coimbra, onde dava a sensação que o povo, porque era tanto, escorria pela Visconde da Luz, em direcção à Rua da Sofia. E então tudo o que estivera camuflado saltou para a ribalta: os Fortes de Caxias e o de Peniche, que nós nem sequer sabíamos que existiam, abriram as suas portas e começámos a ver essa espécie humana que de nós fora escondida- os prisioneiros políticos, a serem libertados, com muitas lágrimas e abraços apertados. Ouvimos a expressão: «Conselho da Revolução» a ser pronunciado, e claro, o eternamente belo MFA- Movimento das Forças Armadas. Surgiu o termo «bufo», espécie de homo sapiens português altamente nocivo à sociedade, que em tempos, por troca de um ou outro favor, denunciava semelhantes seus à pide, como sendo perigosos opositores ao regime.
E depois surgiram as canções de intervenção, a primeira das quais havia ganho o Festival da Canção desse ano- E Depois do Adeus, cantada pelo Paulo de Carvalho, que serviu de senha (viémos a saber depois) para o arranque do movimento. Logo a seguir veio a Grândola Vila Morena, do Zeca Afonso. O próprio Zeca Afonso tornou-se um herói nacional, com a panóplia de músicas que compusera, que cantavam e denunciavam a escuridão do regime fascista, canções que nós, até então, desconhecíamos. E sucederam-se outros autores e intérpretes. E depois chegou o momento do país ficar a conhecer os grandes Álvaro Cunhal e Mário Soares, exilados políticos, outra expressão que ficámos a conhecer a partir daí. E um nome que a todos aconchegou o coração- Salgueiro Maia, o grande Capitão de Abril, que comandou a coluna militar que saindo de Santarém marchou sobre Lisboa, e que deu o peito às possíveis balas em prol da possibilidade de uma revolução. E o Major Otelo Saraiva de Carvalho que esteve ao comando das operações, num gabinete, em Lisboa, e que mais tarde, como general, viria a comandar uma força militar que, durante algum tempo, controlou todo o país- o Copcon. E o então capitão Vasco Lourenço, outro muito famoso capitão de Abril, pela sua entrega ao Conselho da Revolução, e que, ainda hoje, passados quarenta e três anos, me transmite esse ardor revolucionário e me consegue mostrar ainda o rosto do 25 de Abril. E o General Spínola, que viria a ser o primeiro presidente da república, em democracia, depois do «corta-fitas» Américo Tomás.
E vimos todo o país ficar manchado de encarnado, a mancha formada por milhares e milhares de cravos vermelhos, que formaram um incomensurável tapete no caminho da liberdade.
Cinco dias depois festejei o meu 18º aniversário. Em casa, nesse dia 30 de Abril de 1974, ofereceram-me uma máquina fotográfica, uma Kodak, que eu ainda hoje possuo e guardo como um objecto de enorme simbolismo, pois foi uma oferta simultânea a uma outra: a oferta da liberdade e a certeza de não ir combater para o ultramar. Nesse dia, reuniram-se lá em casa, na Rua Luís de Camões, alguns dos meus melhores amigos de Coimbra, a minha prima Maria João e dois amigos que vieram de Barrô. Guardo uma fotografia desse dia onde os meus amigos fazem, com os dedos, o V de vitória, muito comum por esses dias.
Já passaram quarenta e três anos, mas por mais anos que viva guardarei no peito esse momento único da minha vida, e na vida do meu povo, o sentir uma revolução a correr-nos nas veias.
25 de Abril de 1974, o dia em que floriram cravos vermelhos no caminho!...

in PROSAS PELAS JANELAS DA VIDA livro I


domingo, 23 de abril de 2017

ESCRITORES, OS MÁGICOS DA HUMANIDADE

Neste dia mundial do livro, quero expressar o meu agradecimento a todos os escritores que, ao longo da minha vida, me proporcionaram horas fantásticas de magia, de aventura e de conhecimento, com um especial realce para Eça de Queiroz, Deana Barroqueiro, Jesús Sanchez Adalid, Stephen Lawhead, Anthony Burgess, Robyn Young, George R.R. Martin e Ken Follett. Sem eles o mundo seria muito mais pequeno e cinzento.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

TITANIC

Conheci em 1970 a trágica história do naufrágio do transatlântico Titanic, numa velha revista das Selecções do Reader’s Digest, que encontrei num baú esquecido, num sótão onde já ninguém ia. Tinha então 14 anos de idade. Mas a notícia impressionou-me tanto que a tenho perseguido pelos anos fora. Lendo umas linhas aqui, outras ali, pude montar um puzzle na minha mente, que me proporcionou a possibilidade de conhecer um pouco melhor aquele acontecimento, o mais trágico de toda a história da marinha mercante.
         Não sei se o homem considerará que alguma das máquinas que actualmente constrói será indestrutível. Mas naquele tempo, em que se davam os primeiros passos na engenharia, o homem, que tão pouco sabia, julgava ser poderoso o suficiente para não existir no universo força que o suplantasse.
         Mas essa força existia, silenciosa, imóvel e gelada, no que mais simples a natureza tinha!
         Daqui a algumas horas completar-se-ão 105 anos sobre o momento em que o Titanic, na sua viagem inaugural, naufragou, nas águas gélidas e calmas do Atlântico Norte, às 2:05h da madrugada do dia 15 de Abril de 1912, após ter embatido num descomunal icebergue.
         Entre tripulantes e passageiros seguiam no navio 2200 pessoas. Dessas, às 2:30,  1497 iriam estar mortas. As restantes sobreviveram graças a terem conseguido chegar aos poucos barcos salva-vidas existentes a bordo. A engenharia de então, e a empresa proprietária- White Star Line, não acharam necessário equipar o navio com mais barcos salva-vidas, pois consideravam que nada neste mundo era suficientemente poderoso para afundar aquele navio.
         Os sobreviventes viriam a ser recolhidos, horas depois, pelo navio Carpathia. Quanto aos mortos, apenas 306 corpos foram recuperados, e foram-no pelo navio lança-cabos submarinos Mackay-Bennett.
         O local onde repousa o Titanic está devidamente identificado, encontrando-se a uma profundidade de 3800 metros.
         Acho que seria uma manifestação de verdadeira inteligência, se começássemos a ter mais respeito pelas forças geradas pelo planeta que nos serve de casa.

         Perguntem ao inafundável Titanic!

segunda-feira, 3 de abril de 2017

ARÍSTIDES DE SOUSA MENDES, O CORAJOSO E HERÓICO CÔNSUL PORTUGUÊS EM BORDÉUS, NA II GUERRA MUNDIAL

16 de Junho de 1940, estava a Europa a sofrer a II Grande Guerra havia dez meses. França está terrivelmente trucidada pela invasão nazi. Os judeus ali residentes tentam escapar à morte certa. Espanha nega-lhes refúgio. Salazar também. Mas então, para 30.000 judeus franceses aconteceu um milagre: Bordéus transformou-se local quase sagrado, onde era possível obter a salvação. E obtiveram-na, mediante vistos que, durante sete dias, nesse mês de Junho, o Cônsul Português em Bordéus, Arístides de Sousa Mendes, passou indiscriminadamente na tentativa de salvar as vidas que lhe fosse possível salvar, mesmo contra as ordens do seu governo.
         Conseguiu os seus intentos, mas tendo sacrificado o seu bem estar e o da sua família, pois que caiu em pleno esquecimento por parte do Estado Novo, do qual era presidente do conselho António Oliveira Salazar. A sua carreira como diplomata terminou naquele ano de 1940. Aos seus catorze filhos foi-lhes negado a frequência do ensino superior em Portugal.
         Mais tarde viria a Associação Judaica de Lisboa prestar auxílio a esta família, fornecendo-lhes alimentos e assistência médica.
         Completam-se hoje 63 anos sobre a morte do Cônsul Arístides de Sousa Mendes, que ocorreu no dia 3 de Abril de 1954, na miséria.
         Hoje, a sua casa do Passal, em Cabanas de Viriato- Viseu, foi visitada pelo Presidente da República, Dr. Marcelo Rebelo de Sousa, que o homenageou postumamente com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Arístides de Sousa Mendes, um herói que Portugal esqueceu, mas que um grande Presidente recordou.

Um verdadeiro símbolo da liberdade!