sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A NOITE DO OVNI



Porque li numa noticia online que Barack Obama, para o final do ano, irá revelar alguns segredos relacionados com o fenómeno ovni (UFO em inglês), lembrei-me daquela noite.

Alfeizerão, 10 de Agosto de 1977, dez e meia da noite.
Suponho que seria um Sábado. Lá em casa decorria um jantar que os meus pais ofereceram a amigos. Para um jovem de 21 anos, estava a tornar-se uma verdadeira seca. Decidi vir à rua fumar um cigarro. Decidi, ou alguém, ou alguma coisa, decidiu por mim. Foi uma dúvida que sempre permaneceu e se mantém.
Iniciava a descer as escadas exteriores quando senti necessidade de olhar para o céu. Na noite escaldante, o céu encontrava-se divinamente estrelado. Imediatamente me apercebi de umas luzes em movimento, que a principio tendiam confundir-se com as estrelas. Mas os meus olhos não mais se despegaram daquele movimento de luzes. Gradualmente as luzes foram-se desprendendo da teia estrelar, ganhando intensidade, aumentando de tamanho. O que quer que fosse ia-se aproximando de mim.
Eu estava imóvel, com um pé num degrau e o outro pé no degrau mais abaixo, agarrando firmemente o corrimão, com a cabeça completamente inclinada para cima. As luzes foram-se aproximando, até que construíram uma forma- uma forma oval.
Decididamente o que se aproximava de mim, lá em cima, era um aparelho. Aproximou-se...aproximou-se, até que parou. Ficou completamente imóvel, tanto quanto eu. Deduzo que não estaria a mais de cem metros de altura. A forma oval era composta por dez focos luminosos, luzes intermitentes, que iam do vermelho ao verde, passando pelo azul. Subitamente, do meio dessas luzes acendeu-se um foco de luz amarela, muito maior, que projectava um raio de luz espessa. Não o sei definir de outra forma. O aparelho emitia aquele raio de luz que descia alguns metros para baixo e era literalmente sugado pela fonte, repetindo-se de novo a projecção daquela luz estranha, e uma outra vez, e mais uma.
O aparelho estava no maior silêncio. Tive então consciência de que estava na presença de um ovni. Senti, ou fizeram-me sentir, que eu também estava a ser observado. Meu Deus, eu tinha que compartilhar aquele momento maravilhoso com outras pessoas. E em minha casa estavam algumas. Abri a boca para gritar, chamá-los...não tinha voz! Tentei de novo. Articulava palavras sem som. E o raio de luz amarela continuava a ser projectado e a ser recolhido. Não sei, mas este meu encontro imediato terá durado cerca de um minuto. Depois, a luz amarela deixou de ser emitida, o aparelho pôs-se em movimento, lentamente, e com uma velocidade louca fundiu-se de novo nas estrelas, para lá dos montes do Casal Pardo.
E eu já falava. Bem me adiantava!! Já nada havia para mostrar.
É claro que contei a minha experiência. É claro que só vi sorrisos de quem, no seu cepticismo, sorria apenas para ser simpático e evitar de me chamar maluco,sorrisos esses que devem existir, neste momento, nos rostos de muitos dos que estão a ler estas palavras.
Mas este momento extraordinário vivi-o na minha juventude, e guardei-o ciosamente, responsavelmente, para que nenhum pormenor dele se perdesse no tempo. Já lá vão 32 anos e relatei-o como se o tivesse vivido há minutos.
Nesse mês de Agosto de 1977, pelo mundo fora, foram muitos os relatos de experiências com naves extraterrestres.
Ao ver o filme Encontros Imediatos do 3º Grau, senti que ali existia muito mais realidade do que a grande maioria poderia ou poderá pensar, porque eu vivi algumas cenas do filme.
Há 32 anos que procuro no céu uma outra visita.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

DANÇAREMOS...DEPOIS DE ANGOLA



...Era uma bela tarde de Sábado. A sala, comprida, estava apinhada de gente. Ao centro existia uma longa mesa cheia de bolos, sanduíches, muitas fatias de carne assada, e duas caçoilas de barro preto contendo chanfana. Pela mesa fora estavam distribuídas muitas garrafas de « laranjina c», gasosa da « canada dry», cerveja « sagres», « topázio » e « onix» e garrafas de vinho. Os convidados eram rapazes e raparigas. Num dos cantos da sala existia uma aparelhagem de som « philips». No gira-discos passava um long play dos Pink Floyd, o álbum « Dark Side of the Moon». Aquela sonoridade nova, aquela mensagem, aquele fogo de vida envolvia aqueles jovens, transmitindo-lhes sensações inebriantes, transformando-os em pequenos gnomos de uma floresta onde o amor e a magia impregnavam tudo. Quem estivesse do lado contrário àquele onde se encontrava a aparelhagem, podia sentir a música entrelaçar-se e rodopiar pelo meio do sussurro das vozes.
Álvaro estava deleitado. Não se lembrava, nem se queria lembrar, de que daí a três dias embarcaria no navio Vera Cruz, que o levaria a África, até Angola. Todos lhe demonstravam a sua amizade e a sua solidariedade. Abraçada a ele, sem o largar, estava uma moça maravilhosa, divinalmente loira, com olhar de esmeralda, que de vez em quando deitava carinhosamente a cabeça no seu ombro. Era Catarina, a Catarina Martins, sua namorada e madrinha de guerra. De quando em vez beijavam-se, o que provocava uma explosão de aplausos, gritos e assobios. Álvaro então sorria e não permitia que uma lágrima mais indisciplinada lhe aflorasse aos olhos, pois isso a acontecer iria revelar o turbilhão de sentimentos em que a sua alma estava mergulhada, por viver aquela festa...de um adeus temporário... ou um adeus definitivo.
Que juventude tão sofrida aquela! Que grande ponto de interrogação existia na vida daqueles jovens! Formar um futuro, que maravilha! Vamos depressa que a vida não espera! Vamos... alto, espera aí! Tens de parar. Recua um pouco, toma balanço, muito balanço... corre agora, isso, com velocidade, passa por cima desse fosso. Não olhes para baixo, olha sempre em frente. Tem confiança, tem fé. Esse fosso chama-se guerra... guerra colonial. Se o conseguires transpor, se fores capaz de chegar ao outro lado, isso quer dizer que a tua paragem no tempo terminou e vais voltar a ser tu próprio, com a tua personalidade, os teus ideais, caminhando em direcção ao futuro que esperou por ti. Se por azar tropeçares e caíres no fosso... olha amigo, talvez um dia as gerações futuras saibam reconhecer a tua dádiva, mas só talvez! Não te prometo!
Álvaro encontrava-se bem no meio da pequeníssima multidão que a sua casa viera, para com imensa energia o impregnarem de bons fluídos, que o ajudassem a ultrapassar as armadilhas da guerra, o protegessem das sombras esquivas e letais da guerrilha. A todos Álvaro sorria e de todos já sentia saudade. Principalmente da sua querida Catarina, que o não largava, agarrando-se a ele ansiosamente, sentindo o pulsar de todas as suas células. Ela queria manter aquela sensação por muito e muito tempo. Seria uma forma de o sentir permanentemente junto a si. A saudade já martirizava e ele ainda ali estava.
Álvaro era um rapaz de altura mediana, com ombros largos e maciços. De cabelo bem preto e rosto comprido e magro, irradiava simpatia. Nos seus olhos profundamente castanhos e leais, residia o amor. Era sem dúvida uma agradável companhia, que sabia honrar uma amizade. Puxara ao seu pai, o enfermeiro Victor.
No gira discos alguém pusera a tocar o single « We shall Dance» de Demis Roussos, e como obedecendo a um impulso ordenado por aquele música, todos os casais se uniram num enlace perdidamente inflamado de paixão. Quase estáticos dançavam.
Catarina, com os braços rodeava o pescoço de Álvaro. Levemente lhe roçava o rosto com os lábios. Álvaro abraçava-a com avidez, enquanto o seu rosto se embrenhava no belo cabelo loiro dela. Naquele momento, em que aquela louca canção, emanando do gira discos, era o único som ali audível, Álvaro recuou alguns anos. Recordava os dias em que despreocupadamente percorrera as ruas de Coimbra. Quando em criança, na companhia de outros miúdos, formava grupos por altura dos finados, e andava à noite pelo bairro onde morava, com uma caixa de sapatos na qual se fizera alguns furos, que formavam um rosto disforme, e no interior da caixa se depositara uma vela acesa. A luz da vela fluindo pelos « olhos, nariz e boca» da caixa de sapatos, construía um certo cenário macabro. E era esse cenário o mais ideal para, de porta em porta, se cantarem os « bolinhos e bolinhós ». E assim, nos dias 30 e 31 de Outubro de cada ano, os grupos de miúdos andavam numa saudável competição em busca das casas mais ricas, pois quanto mais próspera fosse « a senhora que está lá dentro assentada num banquinho faz favor de cá vir fora p’ra nos dar um tostãozinho », mais esperanças havia de que esse tostãozinho se transformasse em cobiçados escudos.
Recordou os tempos em que a adolescência irreverentemente o possuíra e em que, na companhia dos aventureiros dos « bolinhos e bolinhós », passeavam agora pelas Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz, onde gostosamente faziam as suas tão ansiadas « piscinas », enquanto discutiam as dificuldades que o poder organizado levantava à propagação do amor, o amor livre.
Lembrou-se dos inúmeros bailes particulares em que participara, onde eles alunos do Liceu D. João III, e elas alunas do Liceu D. Maria, durante a semana privados de se comunicarem, naqueles bailes aos fins de semana, feitos em garagens e por vezes em quartos, se desforravam da frustrante privação.
Lembrou-se do delírio que se viveu em Coimbra, quando no Teatro Gil Vicente foi passada durante algumas semanas a ópera rock « Jesus Christ Superstar ». Foi nesse louco e estranho ambiente de união entre o sentimento cristão e uma excepcional música rock, que Álvaro conhecera Catarina. Ela sentara-se à frente dele e ambos se observaram. Quando no ecrã, Madalena cantava a faixa « I Don’t know how to love him », Álvaro aproximou-se da nuca dela e sussurrou-lhe aos ouvidos:- « deliciosa e desconhecida loirinha, não queres ser a Madalena da minha vida? ». Ela nada respondeu, mas no final do filme, quando abandonava o seu lugar, olhou-o com os seus celestiais olhos verdes e sorrindo perguntou-lhe:- « tens coragem para seres Cristo? ». Nesse momento Álvaro teve a certeza de que ali, numa incógnita tarde de Domingo, encontrara uma diva que queria enriquecer os seus dias.
Abraçado a Catarina, inspirando o cheiro do seu cabelo, flutuava com ela ao sabor da música que docemente lhes inflamava a paixão, já de si arrebatadora. Vagueou com os olhos pelos outros jovens que como ele cativos estavam da canção sedutora, que do gira discos fluía numa harmoniosa alegria de viver. E lembrou-se que muito brevemente iria deixar de usar calças « à boca de sino », a moda que os jovens adoravam. E não as vestiria por um longo período, porque todo o tempo futuro seria uma época, apenas e só do camuflado. Com ele iria viver a guerra, iria ver matar, iria ver morrer, iria matar e poderia... para quê pensar?
Recuou ao passado recente em que pela primeira vez conhecera Mafra e tomara contacto com o imenso « Calhau ». Fora no « Calhau » , no Convento de Mafra, onde estava instalada a Escola Prática de Infantaria, também conhecida pela sigla « EPI», que fora incorporado no C.O.M, o Curso de Oficiais Milicianos, de que muito se orgulhava. Mafra ficara sem segredos para si. No Alto da Vela, na extensa planície onde estava o velho e ferrugento carro de combate, no vale escuro, na pista do P.D.I., nos quatro caminhos e na Tapada Real conquistara a patente de aspirante, da qual se despedira havia poucos dias, quando às portas de viajar até Angola, fora promovido a alferes. Recordação pouco consentânea com o ambiente de festa que o envolvia. Mas se todos ali estavam, era porque ele estava na tropa e a tropa o levava para longe. Se o amor o envolvia, a tropa também. Afinal, talvez aquela recordação não fosse tão desajustada assim.
A agulha correu pelo disco e foi-se aninhar no seu lugar de descanso. A música acabara. Os amantes, que mutuamente viveram aqueles poucos minutos de magia, separaram-se, e todos sorriam...(em continuação pág. 45)

in VISITADOS

Novembro/1999

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

À MESA, O DÉFICE DE PORTUGALIDADE

...- Foi uma boa opção ter escolhido este restaurante, senhor Victor. Há muito tempo que eu não comia leitão tão saboroso.
- Então meu caro Rui, para leitão só mesmo o príncipe dos restaurantes da Mealhada. Vim aqui muitas vezes com o Álvaro.
- Toma um cafézinho?
- Sim e também um digestivo. Hoje apetece-me cometer uma infracção aos meus hábitos alimentares. Venha de lá um velho brandy Constantino. Mas se não se importa Rui, vamos tomar a bica para o bar do restaurante. Estamos mais à vontade para conversarmos.
- Vamos sim. Estou ansioso por ouvir o muito que tem para me contar.
- Um dia passado com um velho não o aborrece?
- Senhor Victor, ser-se velho è sinónimo de uma anterior juventude. Os novos têm de aprender a ouvir os velhos. A velhice è o curso superior da vida. Que seria de toda a juventude se não tivesse uma velhice em quem se apoiar?
- Engraçada essa imagem Rui. Você tem razão. Eu aprendi muito com o meu avô. Embora conheça jovens excepcionais, outros há, desprovidos de valores, medíocres, idiotas, nada civilizados, pseudo-educados, filhos de uma mentalidade anárquica que se diz democrática, emergente, que consideram que os velhos são um produto do passado e que por tal motivo não têm lugar no presente. Sabe, além dessa forma nova de se viver Portugal, existe a outra, a omnipresente, essa secular mentalidade tão nossa inimiga. Somos um povo apaixonado. Apaixonamo-nos pelo estrangeiro que nos visita, sem nos ofendermos com a falta de interesse que ele revela por nós, quando esporadicamente visitamos o seu país. Apaixonamo-nos pelos dramas de outros países, quantas vezes não reparando nos dramas que ocorrem à nossa porta. Somos apaixonados pelo produto estrangeiro, desprezando por completo o produto nacional. Apaixonamo-nos por tudo quanto è consumo, quantas vezes sem nos vir à ideia se a nossa carteira terá capacidade para tanto. E os problemas surgem...sofrerá o nosso povo de um recalcamento colectivo? Ainda andaremos nós à procura de algo que perdemos? Será que nos sentimos ainda confusos e órfãos?
- Órfãos??
- Sim, não se esqueça Rui, de que sofremos um colapso com a perda do nosso rei D. Sebastião, e que não tem havido nevoeiro suficientemente poderoso para o devolver a Portugal. Em 1578, na batalha de Álcacer-Quibir, ficámos terrivelmente mutilados. O nosso poderio diluiu-se. Passámos do topo do mundo para os seus arredores. Não lhe parece estranho que um país como Portugal, que nos séculos XV e XVI foi uma potência mundial, seja hoje totalmente desconhecido para muitos, e para outros considerado uma província espanhola?
- Bem, de facto, as coisas vistas por esse prisma parecem realmente não terem muita lógica. Mas sabe senhor Victor, isso nunca me preocupou muito...
- Pois aí reside muito do nosso mal, caro Rui. È precisamente pelo facto de os portugueses não se identificarem com a sua história, que o nosso país è pouco considerado no estrangeiro. Não sabemos preservar, nem tão pouco cultivamos o orgulho pelos nossos notáveis antepassados. O meu amigo vai a Verona, em Itália, e lá encontra um túmulo muito visitado, o qual pertence ao par amoroso Romeu e Julieta. E no entanto esse par nunca existiu. È pura ficção. Mas os italianos honram a memória e o talento de William Shakespeare, que nem sequer era italiano. Aqui, em Portugal, temos a memória de um par verdadeiro, tragicamente apaixonado e pertença da nossa história, o nosso rei D. Pedro I e Inês de Castro, sepultados no Mosteiro de Alcobaça, e quase ninguém os visita. Pergunte à maioria dos portugueses se sabem quem foi Inês de Castro, onde está sepultada, e verá que respostas obtém.
- Mas isso será assim tão importante senhor Victor?
- Para quem è português sem ter sentimentos de patriotismo, è evidente que a história nada tem de interessante nem de importante. Mas para quem è orgulhosamente português, vivendo com a esperança e a preocupação de que o seu país suba no conceito do mundo, è óbvio que a vida dos portugueses do passado tem muita importância.
- Pensando assim, não se cairá num nacionalismo doentio?
- Gostar do que è nosso não è doença nenhuma. Desprezar a nossa memória colectiva è quebrar o vínculo ao que de mais profundo existe em nós, enquanto povo. E isso pode ser perigoso. Talvez por essa razão existam tantos portugueses que não estão minimamente preocupados em colaborarem no progresso do país. Ser nacionalista, gostar do que è nacional, è apenas e só manter bem viva a alegria de ser ter nascido num determinado país. Olhe o exemplo das grandes potências: todos eles estimam a sua história.
- O senhor Victor è uma pessoa muita crítica. Eu talvez não seja tão radical, mas reconheço que o conhecimento da história portuguesa não è motivo de interesse para a maioria dos portugueses. E vejo agora que o senhor teve muita influência no seu filho. Era assim que ele pensava.
- Sim, eu sei. Eu e o Álvaro conversávamos muito.
- Porque razão não tirou ele um curso superior?
- Por causa da tropa.
- Da tropa?
- È verdade Rui. Ele dizia que na vida de um homem as coisas têm de acontecer no tempo certo. Ele pedir espera à tropa, tirar um curso...ia levar alguns anos. Seria depois chamado já com vinte e muitos... ele preferiu assim.
- Foi sempre um óptimo amigo.
- E um querido filho. Nasceu em 1951. Foi criado no Calhabé. Mal me descuidei, já tinham passado vinte e dois anos. Escondido, chorei na festazita que se fez lá em casa para amigos e familiares, que lhe quiseram desejar muita saúde, muitas felicidades e muita sorte. Como o meu coração estava apertado. Ele fora mobilizado para Angola. Partia dali a três dias. Estávamos em Fevereiro de 1973...(em continuação- pág. 40)

in VISITADOS

Novembro/1999

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A TRONCALHADA



Como que recatadamente inserida numa campânula que a protege do reboliço citadino, imune ao avanço do betão que ao tempo dá forma disforme, cinzenta, fria, a contra relógio, a Troncalhada vive a sua paz salgada, já as sombras se avizinham e o marnoto adormece.
Refastelada de paz e natureza, enquanto ao longe Aveiro se apressa no perfume do monóxido de carbono, a Troncalhada observa, placidamente, as salinas suas irmãs que a rodeiam.
Calma...que amanhã o irmão sol nascerá de novo para que a brancura cristalina da flor de sal seja possível, e o horizonte se pontilhe de minúsculas serras brancas, a razão a que a Troncalhada, sempre na pacífica existência, deve a razão de ser.
Mesmo hoje, neste alvoroço apressado, A Troncalhada mantém-se na quietude de outros tempos.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

NA QUIETUDE DA ALDEIA PORTUGUESA, UM DISTANTE NATAL

...- Perdoe-me Luísa se a ofendi. Não era essa a minha intenção...
- Não Américo, não me ofendeu. Eu já suspeitava. Vossemecê foi muito digno ao dizer que uma das razões pela qual se apaixonou por mim, foi a forma como eu vivo a viuvez do António. Que pensaria vossemecê de mim, se soubesse que eu me apaixonara de novo?
Américo estremeceu. Apaixonada? Quem seria o maldito? O mundo começou a esboroar-se debaixo dos seus pés. E apreensivamente respondeu:
- Eu pensaria que estava certo. A Luísa tem direito à vida. A viuvez não é deformação. É somente um estado civil que pode ser alterado como qualquer outro. Penso que seria fazer uma ofensa a Deus, uma mulher como a Luísa não voltar a ser amada. Mas... está apaixonada?
- Por si! - E ao dizer isto recomeçou a andar. Américo ficou especado. Os seus sentidos, o seu ser, acabavam de receber um impacto capaz de desmoronar um homem.
- Luísa, espere - gritou Américo. Cães nas redondezas começaram a ladrar, alertados por aquele grito saído de garganta louca de felicidade. Américo deu uma corrida.
- Luísa, espere.
- Não posso. Não me force a parar. Jurei que vossemecê nunca haveria de saber disto. Não compreendo o que me aconteceu.
- Ora Luísa, é a felicidade de novo a bater à porta.
- Felicidade? Qual felicidade? Acha que uma criada e um advogado têm futuro?
- Luísa, um homem e uma mulher que se amam têm sempre futuro. A criada e o advogado são somente as roupas que vestem. Eu tenho trinta e três anos. Sei o que quero da vida.
- E o que dirão os seus pais?
- Os meus pais querem ver o filho feliz.
- Não sei se iria ter coragem de os enfrentar.
- Luísa, esqueça agora os meus pais. Olhe para mim... olha para mim - rectificou Américo.
- Não Américo, não estou preparada. Desculpe, vou ter de me colocar toda em ordem. Por esta cabeça está a passar uma tempestade. A casa dos meus pais já se avista.
- Ao fim de tantos meses de angústia o mundo sorri de novo para mim - retorquiu Américo - dá-me ao menos um pequeno sinal do teu amor.
- Esse sinal já lho dei ao dizer-lhe que o amo. Nada mais lhe posso dar neste momento. Preciso de ficar bem comigo mesma. Desculpe Américo, não insista, pelo amor que me tem.
- Nem ao menos me podes tratar por tu?
- Farei tudo isso quando o momento chegar, se a minha consciência se não opuser. Hoje já fiz o que nunca imaginei ser capaz.
- E esta escuridão que me não deixa ver esse teu rosto divino. Que abençoada noite de Natal! - disse Américo Afonso.
Luísa apressou muito o passo. Por isso rapidamente percorreram a distância que os separava da casa dos seus pais. Uma casa térrea, bem simples, como simples era a vida das pessoas que ali moravam. Ao lado da casa existia um pequeno alpendre, que guardava alguma lenha para a lareira do inverno, meia dúzia de utensílios de lavoura, enxadas, forquilhas e ancinhos. Entre o alpendre e a casa existia uma casota minúscula. Era a oficina de oleiro, onde o pai de Luísa elaborava as peças de cerâmica tão apetecidas. Tal como as outras casas por onde tinham passado, também a casa de Luísa irradiava espírito de Natal, como se fosse possível que uma casa ganhasse vida e transmitisse sentimentos. Mas era isso mesmo que acontecia. A mística do Natal era tão forte e profunda, que ao transformar por completo o mundo e as pessoas, dando clarividência ao coração humano, tornando pois possível o perdão e colocando amor onde antes existia mal querer, prolongava essa dádiva do céu até às casas.
As duas janelas que ladeavam a porta de pau da casa do oleiro estavam brilhantes com a luz que por elas transbordava. Pela chaminé fluía um fumo calmo. Cheiro de lenha de pinheiro queimada, misturado com os aromas natalícios que andavam no ar, eram um condimento da quietude da aldeia portuguesa.
Luísa e Américo chegaram junto à porta. Com os nós dos dedos Américo Afonso bateu no pau rijo que escondia a intimidade daquele lar.
- Quem é? - perguntou uma voz de rapazinho.
- Sou eu, a mãe - respondeu Luísa.
A porta logo se abriu. À luz das candeias de azeite surgiu um rapazinho loiro.
- Boas noites Carlos. Aqui te trago a tua mãe.
- O senhor Doutor Américo veio acompanhar a minha mãe? - perguntou o pequeno Carlos Avilar.
- É verdade. Estás admirado?
- Há por aí muitos senhores doutores que em calhando, não o faziam - disse o pequeno.
À porta surgiram os pais de Luísa e também a pequenita Rosa. Fizeram pressão para que o senhor Doutor entrasse, mas este recusou, pois a família esperava-o na Casa das Leis.
Após os votos mútuos de uma santa noite, Américo abandonou a casa de Luísa, não sem antes lhe ter enviado um suplicante e apaixonado olhar, ao que ela correspondeu. Américo inspirava o Natal que existia no ar frio. Pensava que tal como o caminho do calvário, em Jerusalém, ficara célebre porque ali vivera Jesus Cristo os seus últimos minutos de vida terrena, também o caminho que levava de sua casa à casa de Luísa deveria ficar conhecido, porque fora através dele que Américo chegara à felicidade. Ao passar pela figueira à beira do caminho, tirou-lhe o chapéu. Ela merecia esta reverência. Só uma árvore respeitável como aquela poderia ter perfil para ser testemunha de uma declaração de amor, como fora a dele e também a de Luísa Avilar.
Pelo resto do caminho foi andando ligeiro, saltitando de quando em vez, assobiando ao ar, às casas, ao céu estrelado, à capacidade que o homem tem em conseguir ser feliz. Enfim, rejuvenescera.
Ao entrar na Casa das Leis perdera o ar macilento e sem vigor que o acompanhava havia bastantes meses.
- Minha mãe, venha de lá esse bacalhau cozido que tenho fome de lobo.
- Ai menino, que a noite transformou-te. Isto só pode ser milagre - dizia feliz D. Vitoriana.
- Pois foi minha mãe, foi milagre! Mas, demora o bacalhauzito?
- Não filho, num ápice estaremos todos à mesa.
Já noite dentro, quando todas as lareiras se haviam apagado, depois de muita alegria se ter espalhado, após muitos espíritos se terem aquecido e afogueado em altos ideais filosóficos, sob a inspiração do suor vermelho-tinto da terra, qual fragrância de baco, Américo encontrava-se deitado no seu leito, pensando, iluminado pelo luar suave, o mesmo luar que iluminava o belo rosto de Luísa. Quase se adivinhava que entre as duas casas se formara uma corrente telepática. Américo ansiava pelo momento em que pela primeira vez abraçaria Luísa Avilar.
Luísa tentava pôr um pouco de racionalidade em toda aquela situação. E mais do que os medos de enfrentar os preconceitos sociais, era o remorso latente em colocar na sua vida um outro homem, no lugar de António Avilar, que a afligiam. Iria finalmente compreender que António não passava de uma bela recordação, ecos de uma guerra distante, apenas e só uma saudade...(em continuação- pág. 70)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

sábado, 17 de outubro de 2009

O AMOR, O NATAL E UMA FIGUEIRA

...D. Vitoriana procurou o filho e encontrou-o na sala, junto à lareira acesa, conversando com um tio, irmão do Doutor Sebastião.
- Américo, filho, seria muita ralação para ti se fosses acompanhar a Luísa até casa ? Sabes, já é noite.
Ò providencial noite!
Américo sentiu um vazio no estômago. Que pretendia Deus fazer, ao dar-lhe aquela oportunidade, de por alguns momentos poder estar a sós com Luísa? Seria um teste? Um teste à sua capacidade de poder penetrar naquele espírito inexpugnável? Talvez Luísa não fosse assim tão inacessível. Por um ou outro momento, Américo suspeitara haver naquele olhar uma candura, que antes lhe não conseguía reconhecer. Era Natal. Com certeza o Menino Jesus condoera-se desta criatura apaixonada e intercedera por Américo Afonso junto de Deus, Seu Pai.
Estas reflexões perpassaram a mente do jovem advogado, levando o tempo que ele demorou a refazer-se da surpresa causada pela pergunta da mãe.
- A minha mãe refere-se à Luísa Avilar?
- Américo, pois a quem há-de ser? Conheces aqui outra Luísa?
- Não minha mãe... pensei que... olhe, não pensei nada.
- Mas vai filho, faz-me esse obséquio.
- É claro que vou. Não há-de a rapariga ir por esses caminhos, cheia de frio.
- Bom, não é bem o frio que me preocupa.
- Pois, eu sei minha mãe. Mas que está frio, está!
- O cunhado deu de beber ao Américo? - perguntou D.Vitoriana.
- Não, ele apenas bebeu um cálice de Porto - respondeu o irmão do Doutor Sebastião.
- Parece que estás esquisito rapaz - disse D. Vitoriana ao filho.
- Talvez tenha enchido demais o cálice - respondeu Américo.
- Então anda se fazes o favor, que se faz tarde. - E os dois, mãe e filho, dirigiram-se à cozinha onde Luísa os esperava. Ali chegados D. Vitoriana disse:
- Esperem aqui um pouco que me lembrei agora mesmo de uma coisa.
Ali, entre a porta da cozinha e a porta de saída, o mundo parou para Américo e Luísa. Os dois atraíam-se sofredoramente. E na atrapalhação de um desejo escondido, recalcado, queriam quebrar aquele silêncio opressivo, provocado pela súbita ausência de D. Vitoriana. Ali estavam, como duas múmias, ela olhando para o chão e tomando um súbito interesse por um botão do casaco de lã que ameaçava cair, e ele, vigiando a janela próxima, vendo o reflexo do seu rosto no vidro da janela, iluminado pela luz das velas, admirando a sua expressão facial denunciadora de mortificante ansiedade. Para salvação dos dois, aquela animada conversa foi interrompida com o regresso de D. Vitoriana. Trazia nas mãos dois saquinhos de pano.
- Pensei que se tinham ido embora. Não vos ouvia - disse D. Vitoriana.
- Que tenho eu para falar com o senhor Doutor Américo? - perguntou Luísa.
A esta pergunta Américo olhou muito sério para Luísa e D. Vitoriana encolheu os ombros.
- Bem Luísa - disse a senhora - estão aqui dois saquinhos para os teus filhos. Vai uma boneca de porcelana para a tua Rosa e um peão para o Carlos. Pões na chaminé. Prenda do Menino Jesus. Tive pena de hoje os não poderes trazer, mas como viste o movimento foi muito.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana. O Menino Jesus lá lhes há-de entregar estes presentinhos.
- Dá cumprimentos nossos aos teus pais. Boas Festas para todos.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana. Também uma santa noite para todos vós.
E finalmente a porta de saída foi aberta. A noite estava realmente fria. Mas era uma benção para os rostos escaldantes de Luísa e Américo.
Luísa tentava apressar o passo. Américo fazia por o retardar. No ar havia o cheiro de lenha queimada em lareiras domésticas. Muitas chaminés expeliam o fumo com sabor a Natal. Aqui e ali divisavam-se janelas iluminadas por velas que alimentavam chamas aconchegadoras, mais brilhantes do que nunca, que sorriam àquela abençoada escuridão. Era noite de Natal.
- A Luísa gosta do Natal? - perguntou Américo, interrompendo finalmente o silêncio.
- Gosto sim senhor Doutor. O Natal é a época do amor entre os homens.
- Acha o amor bonito?
Luísa considerou a pergunta perigosa. Cautelosamente respondeu:
- Para quem der valor ao amor acho que o deve achar bonito.
- E a Luísa dá valor ao amor?
- Já fui casada senhor Doutor. Estava apaixonada pelo meu marido.
- Conseguirá a Luísa apaixonar-se de novo?
- Senhor Doutor Américo, essa pergunta é muito despropositada. Na minha posição não posso ter este tipo de conversas com o Senhor Doutor.
- Luísa, peço-lhe, não me trate mais por senhor doutor. Sinto-me ficar a léguas de si.
- Mas é falta de respeito da minha parte se o tratar de outra maneira.
- E quem foi que lhe disse que eu quero de si esse tipo de respeito, frio, distante, sem nada de íntimo?
- Íntimo? - perguntou Luísa, dando força a uma palavra carregada de intenção.
Américo estancou o passo. Suavemente agarrou um braço de Luísa, pelo que esta também parou. O céu estava paradisiacamente estrelado. O frio fazia-os aproximarem-se um do outro. Uma grande figueira, havia muito plantada à beira do caminho, era testemunha deste jogo de vontades, do alvorecer daquilo que de mais belo existe na criação.
- Sim, íntimo, pessoal, um sentimento partilhado a dois.
- Senhor Doutor...
- Então Luísa, o que lhe pedi?
- Senhor Américo...
- Retire o senhor!
- Américo? - perguntou Luísa.
- Américo! - respondeu Américo.
- Pois seja. Américo, eu não devia estar aqui consigo. Sei que não há nada de mal, mas um homem e uma mulher no meio da noite...
- Luísa - interrompeu Américo - eu amo-a. A sua beleza, a sua bondade e a lealdade para com a memória do seu marido, desfizeram alguns preconceitos que eu tinha sobre o casamento. Desculpe-me a franqueza, mas este fogo que há muito me consome tinha de o partilhar consigo.
Luísa chorava baixinho...(em continuação- pág. 66)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A PÉROLA DA ESTREMADURA OESTE



Corria o ano de 1974. Portugal saudava o primeiro Outono de liberdade. Depois de ter estudado na Cidade do Conhecimento, a minha Aeminium, a Coimbra que me comprimia o coração de tristeza por já lá não viver, mergulhado na penumbra da saudade, uma saudade profunda, cantada pelos poetas do penedo, esse lugar onde as musas moram, único no mundo- O Penedo da Saudade, preparei-me para entrar num outro ambiente estudantil, sem tradição, sem praxes, que se me afigurava um deserto de ideias. Felizmente que, muito em breve, iria reconhecer que me enganara.
Chegava ao Liceu das Caldas da Rainha, localizado num encantador cadinho de magia- o parque D. Carlos I.
O parque, portas meias com o hospital termal mais antigo do mundo, revelou-se-me um verdadeiro encanto. Densamente arborizado, estava repleto de enormes relvados, onde nós, estudantes dos anos 70, nos deitávamos, aos magotes,sob as sombras das copas maciças, nos dias escaldantes de verão, discutindo sobre a liberdade, o amor livre, Pink Floyd, Deep Purple... e edificando paixões platónicas.
No inverno, a brisa fresca roçando os ramos agora despidos, transmitia-me paz interior ao meu espírito revolto.
O lago artificial era o coração do parque. Belíssimo. As suas margens atapetadas de relva, com ramagens de árvores a descerem até à água, como que sedentas sob o sol abrasador,eram o sítio eleito para soltar a jovialidade. De vez em quando algum de nós lá ia para a aula a escorrer água.
O liceu, embora ficasse muito aquém, a nível de instalações, do Liceu D. João III que eu frequentara em Coimbra, era agradável. Constituído por três enormes naves, do exterior, no parque, proporcionava uma visão arquitectónica de excelente qualidade.
Toda a cidade se me abria em simpatia. Adorava ver o reboliço da feira da fruta, ás segundas-feiras, no centro da cidade. Explorei os segredos do café Thai-Ti (já não existe), na Rua das Montras, espaço por excelência da estudantada. Conheci a velhinha e agora já extinta Casa da Cultura, onde tomei contacto com a arte da dramatização. A arte, nas Caldas, encontrava-se ao virar da esquina.
Conheci as Caldas da Rainha ainda como uma cidade tipicamente provinciana, que já não é hoje. O seu romantismo fez com que me não lembrasse tantas vezes das pedras da Sé Velha. E porque sinto nas Caldas uma frescura que me lava a alma, e porque nela se contaram páginas muito felizes da minha juventude, é pois, para mim, a Pérola da Estremadura, a zona Oeste actualmente.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Á PORTA DA LOBITO DE BENGUELA

...Os seus pais não gostaram muito da possibilidade de ele poder chegar tarde a casa. E ainda eles não sabiam quais os seus objectivos. Mas confiavam nele. Sabiam que ele era um rapaz ponderado.
O seu pai, Manuel César Velasques, era além de tudo um bom amigo. Funcionário dos Correios, sempre o tratara com imenso carinho. Uma vez disse-lhe: « tu és o meu filho mais novo, um cadinho de amor que Deus me ofereceu ». Na altura ele ficou confuso. O filho mais novo? Mas se ele era filho único! Então perguntou ao pai:- « sou o teu filho mais novo? Onde è que está então o meu irmão mais velho? ». O pai ficou um momento em silêncio e depois respondeu: - « Eu disse que tu és o meu filho mais novo? Estava a delirar com certeza. Apenas quis dizer que és o único filho que tenho e que me enches o coração de amor ».
A mãe, Maria Amélia Almeida César Velasques, doméstica, era simplesmente a mãe. Embora ele estivesse a entrar na idade adulta, a sua mãe continuava a senti-lo como se ele ainda fosse pequenino, o que por vezes o fazia sentir-se ridículo. Mas sabia que as mães eram mesmo assim. E ainda bem que o eram. Através dos pais ele estava bem com a vida.
Ali estava a alfaiataria. Mesmo ao lado existia uma soberba casa de arquitectura colonial, em cuja parede estava incrustado a letras de ferro o nome « Casa Lobito de Benguela ». A casa estava rodeada por um extenso muro, encimado por um robusto gradeamento de ferro pintado a verde escuro. A casa apresentava uma comprida fachada onde se contavam quatro enormes janelas. Possuía ainda um grande alpendre que tinha por acesso umas escadas. Era ali decerto a porta de entrada. A casa, era toda ela ladeada por altas palmeiras. Serôdio nunca estivera em África, mas sem dúvida que aquele pedacinho de Portugal transmitia uma ambiência bem africana.
Serôdio estava hesitante. Parado no passeio, observava um combóio que passava do outro lado da rua. A Estação da CP era muito próxima dali. Fazia de conta que parara ali apenas por casualidade, enquanto o seu cérebro tentava aflitivamente coordenar ideias e pensamentos. Iria bater à porta de alguém que nunca vira na vida para anunciar um tremendo disparate. Mas, e se no dia seguinte viesse a saber que naquela casa se cometera um crime? Como poderia ele viver com o remorso de poder ter evitado esse crime e nada ter feito? Seria o Narciso Conde tão pérfido, a ponto de conseguir executar aquela barbaridade? Estava decidido! Iria contar à senhora que ali morava que o seu sobrinho planeava assaltá-la. Se ela corresse com ele, paciência. Pelo menos cumpriria com a sua obrigação moral.
Ao centro do muro que isolava aquela casa do resto do mundo, existia um gigantesco e sólido portão de ferro, também ele pintado de verde escuro. Ali existia um pequeno sino. Serôdio empurrou o badalo e ouviu-se então um som estridente e metálico, que lhe fez sobressaltar o coração. Aguardou alguns momentos. Lá ao fundo surgiu então a figura de um homem negro. Aparentava ter cerca de trinta anos de idade. O homem desceu as escadas do alpendre e dirigiu-se para o portão onde se encontrava Serôdio. Ao chegar junto ao rapaz, o homem sorriu exibindo naquele sorriso a brancura dos dentes, em contraste com a pele escura do rosto.
Ao vê-lo, Serôdio sentiu que o seu colega Zé não mentira nem inventara nada. Como poderia ele adivinhar que naquela casa havia um criado negro?
- Boa tarde- disse o homem.
- Muito boa tarde- respondeu Serôdio à saudação, mostrando-se um tanto ou quanto atrapalhado.
- Em que posso ajudar o senhor?- perguntou simpaticamente o homem negro.
- Bem... sabe... eu nem sei como hei-de dizer. Mora nesta casa uma senhora que è tia de um rapaz da minha idade chamado Narciso Conde?
- Sim, sim. Mas o menino Narciso não está cá em casa.
- Sim, eu sei. Não è com ele que eu quero falar. Eu preciso de conversar com a senhora.
- O senhor conhece o menino Narciso?- perguntou o homem.
- Conheço sim, somos colegas de turma.
- E como se chama o senhor?
- Eu... eu chamo-me Serôdio, Serôdio Almeida César Velasques.
- Pois senhor Serôdio, espere aqui que eu vou ver se a senhora o recebe.
E dizendo isto o homem negro voltou costas, sem ter aberto o portão. Serôdio ali ficou, aguardando impacientemente. Mas que raio de situação aquela. Se o professor não tivesse faltado naquela aula da parte da manhã, não estaria ele agora ali a fazer aquela figura ridícula.
Entretanto o homem negro atravessou a casa e entrou numa sala imensa, onde sentada num enorme sofá forrado a veludo azul, uma senhora vestida toda de preto, que deveria rondar os cinquenta anos de idade, lia rodeada de imensa paz e silêncio.
- Senhora D. Silvina, está lá fora um senhor alto, magro e loiro- disse o homem negro.
- Um senhor loiro? Que tipo de senhor?
- Diz que è colega de turma do menino Narciso.
- Do meu sobrinho? Armando, então não è um senhor. Será talvez um jovem moço, não?
- Sim, talvez seja- respondeu o homem sorrindo, voltando a mostrar a sua alva dentadura.
- E o que deseja esse moço?
- Quer falar com a senhora.
- Comigo? Mas que assunto terá um desconhecido adolescente para falar comigo?
- Não sei senhora, ele não me disse.
- Que entre então, Armando. Acompanha-o até aqui.
- Sim, senhora- e o homem abandonou a sala...(em continuação, pág. 15)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

SOPRAM BONS VENTOS DA GALIZA

Desde que me conheço que ouço, quando alguém pretende demonstrar que outra pessoa é explorada, dizer que essa pessoa «trabalha como um galego». O que quer dizer que a figura do galego, aquele que é natural da Galiza, está bastante enraizada na nossa cultura. E em consonância com esta particularidade ibérica, tomei nota de várias reportagens que têm passado, de quando em vez, no Telejornal da RTP, sobre a grande aproximação, quase identificação, dos galegos connosco, tanto a nível linguístico, como até cultural. Compreende-se perfeitamente: o território nacional que vai até Coimbra fazia parte, antes da nacionalidade, do reino da Galiza.
No entanto eu nunca tinha estado na presença de um galego. E comecei a nutrir uma especial atenção por ele, porque senti que entre o galego e o português existe uma recíproca simpatia, embora ele seja espanhol ( o que acho uma coisa fantástica), ou, pelo menos, eu considerasse que fosse espanhol. Não conhecia nenhum... até há poucos dias, quando fui a uma clínica a uma consulta.
O médico que me atendeu, rondando os quarenta, ar bonacheirão, de trato afável, não era português. Mas que raio de língua era aquela, que eu percebia perfeitamente, com uma levíssima influência espanhola. E disse-lhe:
- O sr. dr. não é português?!
- Pois não.
- Suponho que seja espanhol, mas...
- Não, não sou espanhol. Sou orgulhosamente galego- respondeu-me ele convictamente (eh pá!).
Foi o bastante para despoletar uma interessantíssima conversa. Muitos de nós, portugueses, andamos a dizer por aí que preferiríamos ser espanhóis. Pois o meu médico não vê a hora para se poder naturalizar português, porque tem alma portuguesa...ele e a Galiza inteira, segundo ele.
Depois de um diálogo extremamente enriquecedor, ele fez-me uma observação que, francamente me surpreendeu:
- Intriga-me bastante que em Portugal se dê tão pouca importância a Olivença, pior, que nem saibam do que se trata. Sabia que os espanhóis que sabem falar português estão proibidos de o fazer em Olivença?
Por aí, quantos de nós sabemos do que se trata a questão de Olivença, que este meu médico galego defende de forma tão entusiástica a nosso favor, essa questão que já leva 208 anos?
Esta amena e agradabilíssima cavaqueira foi interrompida por uma enfermeira, avisando que já existiam doentes a reclamarem pela demora da minha consulta.
Um aperto de mão apressado e um sorriso sem fronteiras.
Só em casa, depois de abrir o envelope que me foi entregue, é que soube o veredicto do médico, porque na consulta não houve tempo para mais.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

UM ASSALTO EM PERSPECTIVA

...Nessa manhã, no final das aulas, um colega de turma de Serôdio abordou-o, dizendo:
- Serôdio, preciso de falar contigo.
- Fala.
- Precisamos de nos afastar.
- È assim uma coisa tão séria?
- È.
- Vamos então sair daqui.
Afastaram-se do recinto do Liceu. Ambos caminhavam sérios e apreensivos.
- Aqui já dá para falares?- perguntou Serôdio ao seu colega.
Este, antes de falar, observou bem as redondezas, certificando-se de que não havia perigo. Depois disse:
- Sim, aqui estamos em segurança.
- Quase que aposto que o assunto tem a ver com o Narciso Conde!- disse Serôdio.
- Tem mesmo- retorquiu o outro- há bocado, durante o furo, eu fui até às máquinas de flippers, mas de repente tive necessidade de ir à casa de banho, com uma dor de barriga...
- E então?
- Estava eu sentado na sanita, à porta fechada, quando o Narciso entrou na casa de banho com o grupinho dele. Reconheci-lhe a voz. Eles pensavam que estavam sozinhos. O que ali conversaram è muito grave.
- E o que foi?- perguntou Serôdio em expectativa.
- O Narciso combinou com os outros irem esta noite assaltar uma casa.
- O quê Zé? Isso è verdade?
- È. Mas há mais. A casa pertence a uma tia rica do Narciso. Parece que vive apenas com um criado negro. O Narciso disse que se for preciso até a matam.
- Zé, isso já è muita fantasia, não achas?- perguntou Serôdio.
- Olha Serôdio, isto foi o que eu ouvi. Não achas o Narciso Conde capaz de o fazer?
- Que ele è um rufião com pretensões a besta, disso não duvido. Mas daí a roubar a tia e até matá-la ainda vai um pedaço. Eles disseram onde mora essa tia?
- Parece que mora na Rua João de Moura, numa casa ao lado de uma alfaiataria.
- E o que è que pensas fazer Zé?
- Eu? Eu nada. Já fiz o que devia, contei-te.
- E se isso vier a acontecer, resolve o problema da senhora?
- Não... mas... pensei que tu...
- Estás-me a passar a batata quente para as mãos, è isso?
- Serôdio, eu não sou do género aventureiro. Tu és muito mais corajoso e afoito do que eu. Com certeza que irás pensar em alguma coisa. Por aquela senhora eu fiz o que podia.
- Está bem Zé, eu vou ver o que se pode fazer.


Serôdio percorria a Rua João de Moura à procura da tal alfaiataria. Ao certo não sabia porque motivo estava ali. Que tinha ele a ver com a possibilidade do Narciso ir assaltar a própria tia? Mas por outro lado, encontrara nesta possibilidade de assalto um forte argumento para fazer frente ao Narciso Conde, e mostrar-lhe que nem todos andavam amedrontados com a sua arrogância. Estava perfeitamente consciente de que corria alguns riscos, pois o Narciso e os seus amigos tinham instintos violentos. Mas tudo não passaria de uns murros e uns olhos negros. Talvez assim a turma pudesse respirar de alívio.
Ainda se lembrara de ir à policia, mas pôs essa hipótese de lado. Que iria dizer? Que uma casa iria ser assaltada à noite? E como explicaria ele o conhecimento desse facto futuro? Isso era muito complicado. Preferiu agir por sua conta e risco. Se algo estivesse para acontecer, isso só o beneficiaria a ele. Parecia-lhe que já estava a ver o ambiente no liceu, com todos os colegas a observarem-no com admiração e dizendo:- « o Serôdio è um herói. Sozinho fez frente ao grupo do Narciso Conde e evitou que uma velhinha fosse roubada ».
E se tudo isto não passasse de uma confusão da cabeça do Zé? Bom, iria falar com moderação. Com certeza que a senhora o compreenderia, caso nada viesse a acontecer...(pág. 11)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

terça-feira, 6 de outubro de 2009

DOIS TRONOS PARA UM HOMEM SÓ



Viajando pela blogosfera reparei que em blogues do Brasil, à passagem do dia 7 de Setembro de 2009, em que se comemorou a proclamação da sua independência, muitas vezes vi fazer-se menção ao nome de D.Pedro- D. Pedro I do Brasil, D. Pedro IV de Portugal. E muito francamente, do que li, não me foi possível perceber se D. Pedro é uma figura histórica querida no Brasil, ou alguém por quem se nutre um sentimento de indiferença.
Para mim, D. Pedro, quarto filho do nosso rei D. João VI e da rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon, que por força dos caminhos insondáveis do destino ascendeu a herdeiro do trono de Portugal, é uma das grandes figuras da nossa história. Nascido a 12 de Outubro de 1798, veio a viver vinte e cinco anos da sua curta vida no Brasil, que por sua vontade tornou um país independente, no dia 7 de Setembro de 1822. Não foi, por isso, bem amado pelos portugueses de então, que no entanto, dez anos depois, o aclamaram como libertador.
Depois de ter tornado o Brasil um país independente, veio a Portugal devolver-lhe a liberdade. O dia 08 de Julho de 1832 poderia bem ser comparado ao dia 25 de Abril de 1974. Mas não o é, porque caiu em absoluto esquecimento. A liberdade custou muito sangue, dois anos de intensos combates fratricidas. 16 de Maio de 1834 foi o culminar da vitória liberal, na Batalha de Asseiceira, sobre as forças absolutistas de D. Miguel.
Em Lisboa (fotografia acima), D. Pedro é recordado como o grande general à frente do 8000 homens que constituíram o Exército Libertador, que no dia 08 de Julho de 1832 desembarcou na Praia de Pampelido, no Mindelo, que para a história ficou conhecida como a Praia da Memória.
A vida apenas lhe deu tempo de cumprir a sua missão.
D Pedro I do Brasil, D Pedro IV de Portugal, faleceria a 24 de Outubro de 1834, com 36 anos de idade.
Um nome que se fez grande numa vida pequena.

sábado, 3 de outubro de 2009

DE REGRESSO AO PRESENTE

...Cada um foi para seu lado. Victor seguiu em direcção da sua casa. As lágrimas afloravam-se-lhe aos olhos e corriam amargas pelo rosto endurecido, sob o jugo da traição. Naquele momento o mundo não tinha nada de belo para lhe oferecer, mas no fundo do seu íntimo, aquele mesmo fundo que tudo parecia saber, algo lhe dizia que isso era falso. Alguma mulher naquele momento aguardava por ele, a mulher da sua vida. Algum amigo, ainda desconhecido, esperava o momento certo para se poder apresentar.
A enfermagem esperava-o. Solto das preocupações que lhe haviam ofuscado a mente, para a enfermagem ia de alma e coração...

-...para a enfermagem fui de alma e coração. O meu íntimo tinha razão.
Bons amigos me apareceram pela vida fora. Uma óptima mulher me aguardava e me tem feito companhia nos quarenta e seis anos que já leva de duração o nosso casamento.
- E a Ana Maria?
- A Ana Maria nunca mais a vi.
- Ela e o Duarte Amorim chegaram a casar-se?
- Não Rui, não casaram. Penso que o caso deles terminou ali mesmo. A Ana Maria diluiu-se no tempo. Fiquei de tal modo perturbado com aquela traição, que só uma década depois voltei à Rua Luís de Camões. A maioria dos moradores eram já outros, eu era um desconhecido. A Ana Maria e os pais já não moravam naquela casa. Se ela ainda for viva è hoje uma velha tal qual eu. Não sei se na vida procurou só fulanos brincalhões ou se lhe terá calhado em sorte algum macambúzio sem interesse, como eu. Não sei se foi feliz ou infeliz. E isso pouco me importa. A Ana Maria è para mim apenas um exercício de memória.
- E o Duarte Amorim, senhor Victor?
- Foi uma total desilusão. Desilusão em 1946 e cinquenta anos depois a confirmação dessa desilusão. Durante todos estes anos guardei resquícios da nossa forte amizade. Infelizmente ele só guardou rancor. Sentado no alto do pedestal, que foi o seu sucesso como arquitecto, esqueceu todos os virtuosismos que eu lhe reconheci na juventude. Mas a vida continua, não è Rui? Caramba, já è quase meio-dia. Convido-o para almoçar num bom restaurante que conheço. Que me diz?
- Estou à sua disposição senhor Victor. Eu próprio estava para lhe fazer o mesmo convite, mas a viagem em que fez o favor de me levar, estava tão apetecível, que não o quis interromper. Agradeço que me deixe pagar o almoço.
- Porquê Rui?
- Há coisas que não têm explicação. Esta è uma delas. Apenas me daria muita satisfação pagar um almoço a uma pessoa especial como o senhor.
- Pois não serei eu que lhe hei-de estragar esse prazer. Mas de especial não tenho nada...apenas possuo experiência de vida.
- Tem sim. Se assim não fosse, os extraterrestres não o teriam escolhido...
- Concluíram que se enganaram na escolha. Mas, vamos ao almocinho. Deixemos esta mesa para outros clientes.
- Não se esqueça do seu guarda-chuva, senhor Victor. Ainda chove e tenho o carro junto ao Tivoli...(pág. 36)

in VISITADOS

Novembro/1999

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

BRIOSA, MEU ENCANTO



Aguardando que começasse o jogo do Benfica, via há pouco um programa na SIC, em que uma senhora dava a conhecer todo o carinho que tem pelo seu clube encarnado. Pois bem, bateu-me uma coisa na alma, que me fez correr para o computador e dizer ao mundo que:

EU SOU DA ACADÉMICA!

Mesmo que a Briosa algum dia vá parar ao INATEl, no meu coração desportivo não há lugar para nenhum outro clube, porque quando nasci trazia a Académica nas veias, porque...eu sou de Coimbra!

Um tremendo AFRA- ...Chiribitatatata, Chiribitatatata, Urra, Urra, Urra.