sábado, 3 de outubro de 2009

DE REGRESSO AO PRESENTE

...Cada um foi para seu lado. Victor seguiu em direcção da sua casa. As lágrimas afloravam-se-lhe aos olhos e corriam amargas pelo rosto endurecido, sob o jugo da traição. Naquele momento o mundo não tinha nada de belo para lhe oferecer, mas no fundo do seu íntimo, aquele mesmo fundo que tudo parecia saber, algo lhe dizia que isso era falso. Alguma mulher naquele momento aguardava por ele, a mulher da sua vida. Algum amigo, ainda desconhecido, esperava o momento certo para se poder apresentar.
A enfermagem esperava-o. Solto das preocupações que lhe haviam ofuscado a mente, para a enfermagem ia de alma e coração...

-...para a enfermagem fui de alma e coração. O meu íntimo tinha razão.
Bons amigos me apareceram pela vida fora. Uma óptima mulher me aguardava e me tem feito companhia nos quarenta e seis anos que já leva de duração o nosso casamento.
- E a Ana Maria?
- A Ana Maria nunca mais a vi.
- Ela e o Duarte Amorim chegaram a casar-se?
- Não Rui, não casaram. Penso que o caso deles terminou ali mesmo. A Ana Maria diluiu-se no tempo. Fiquei de tal modo perturbado com aquela traição, que só uma década depois voltei à Rua Luís de Camões. A maioria dos moradores eram já outros, eu era um desconhecido. A Ana Maria e os pais já não moravam naquela casa. Se ela ainda for viva è hoje uma velha tal qual eu. Não sei se na vida procurou só fulanos brincalhões ou se lhe terá calhado em sorte algum macambúzio sem interesse, como eu. Não sei se foi feliz ou infeliz. E isso pouco me importa. A Ana Maria è para mim apenas um exercício de memória.
- E o Duarte Amorim, senhor Victor?
- Foi uma total desilusão. Desilusão em 1946 e cinquenta anos depois a confirmação dessa desilusão. Durante todos estes anos guardei resquícios da nossa forte amizade. Infelizmente ele só guardou rancor. Sentado no alto do pedestal, que foi o seu sucesso como arquitecto, esqueceu todos os virtuosismos que eu lhe reconheci na juventude. Mas a vida continua, não è Rui? Caramba, já è quase meio-dia. Convido-o para almoçar num bom restaurante que conheço. Que me diz?
- Estou à sua disposição senhor Victor. Eu próprio estava para lhe fazer o mesmo convite, mas a viagem em que fez o favor de me levar, estava tão apetecível, que não o quis interromper. Agradeço que me deixe pagar o almoço.
- Porquê Rui?
- Há coisas que não têm explicação. Esta è uma delas. Apenas me daria muita satisfação pagar um almoço a uma pessoa especial como o senhor.
- Pois não serei eu que lhe hei-de estragar esse prazer. Mas de especial não tenho nada...apenas possuo experiência de vida.
- Tem sim. Se assim não fosse, os extraterrestres não o teriam escolhido...
- Concluíram que se enganaram na escolha. Mas, vamos ao almocinho. Deixemos esta mesa para outros clientes.
- Não se esqueça do seu guarda-chuva, senhor Victor. Ainda chove e tenho o carro junto ao Tivoli...(pág. 36)

in VISITADOS

Novembro/1999

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