sexta-feira, 23 de outubro de 2009

À MESA, O DÉFICE DE PORTUGALIDADE

...- Foi uma boa opção ter escolhido este restaurante, senhor Victor. Há muito tempo que eu não comia leitão tão saboroso.
- Então meu caro Rui, para leitão só mesmo o príncipe dos restaurantes da Mealhada. Vim aqui muitas vezes com o Álvaro.
- Toma um cafézinho?
- Sim e também um digestivo. Hoje apetece-me cometer uma infracção aos meus hábitos alimentares. Venha de lá um velho brandy Constantino. Mas se não se importa Rui, vamos tomar a bica para o bar do restaurante. Estamos mais à vontade para conversarmos.
- Vamos sim. Estou ansioso por ouvir o muito que tem para me contar.
- Um dia passado com um velho não o aborrece?
- Senhor Victor, ser-se velho è sinónimo de uma anterior juventude. Os novos têm de aprender a ouvir os velhos. A velhice è o curso superior da vida. Que seria de toda a juventude se não tivesse uma velhice em quem se apoiar?
- Engraçada essa imagem Rui. Você tem razão. Eu aprendi muito com o meu avô. Embora conheça jovens excepcionais, outros há, desprovidos de valores, medíocres, idiotas, nada civilizados, pseudo-educados, filhos de uma mentalidade anárquica que se diz democrática, emergente, que consideram que os velhos são um produto do passado e que por tal motivo não têm lugar no presente. Sabe, além dessa forma nova de se viver Portugal, existe a outra, a omnipresente, essa secular mentalidade tão nossa inimiga. Somos um povo apaixonado. Apaixonamo-nos pelo estrangeiro que nos visita, sem nos ofendermos com a falta de interesse que ele revela por nós, quando esporadicamente visitamos o seu país. Apaixonamo-nos pelos dramas de outros países, quantas vezes não reparando nos dramas que ocorrem à nossa porta. Somos apaixonados pelo produto estrangeiro, desprezando por completo o produto nacional. Apaixonamo-nos por tudo quanto è consumo, quantas vezes sem nos vir à ideia se a nossa carteira terá capacidade para tanto. E os problemas surgem...sofrerá o nosso povo de um recalcamento colectivo? Ainda andaremos nós à procura de algo que perdemos? Será que nos sentimos ainda confusos e órfãos?
- Órfãos??
- Sim, não se esqueça Rui, de que sofremos um colapso com a perda do nosso rei D. Sebastião, e que não tem havido nevoeiro suficientemente poderoso para o devolver a Portugal. Em 1578, na batalha de Álcacer-Quibir, ficámos terrivelmente mutilados. O nosso poderio diluiu-se. Passámos do topo do mundo para os seus arredores. Não lhe parece estranho que um país como Portugal, que nos séculos XV e XVI foi uma potência mundial, seja hoje totalmente desconhecido para muitos, e para outros considerado uma província espanhola?
- Bem, de facto, as coisas vistas por esse prisma parecem realmente não terem muita lógica. Mas sabe senhor Victor, isso nunca me preocupou muito...
- Pois aí reside muito do nosso mal, caro Rui. È precisamente pelo facto de os portugueses não se identificarem com a sua história, que o nosso país è pouco considerado no estrangeiro. Não sabemos preservar, nem tão pouco cultivamos o orgulho pelos nossos notáveis antepassados. O meu amigo vai a Verona, em Itália, e lá encontra um túmulo muito visitado, o qual pertence ao par amoroso Romeu e Julieta. E no entanto esse par nunca existiu. È pura ficção. Mas os italianos honram a memória e o talento de William Shakespeare, que nem sequer era italiano. Aqui, em Portugal, temos a memória de um par verdadeiro, tragicamente apaixonado e pertença da nossa história, o nosso rei D. Pedro I e Inês de Castro, sepultados no Mosteiro de Alcobaça, e quase ninguém os visita. Pergunte à maioria dos portugueses se sabem quem foi Inês de Castro, onde está sepultada, e verá que respostas obtém.
- Mas isso será assim tão importante senhor Victor?
- Para quem è português sem ter sentimentos de patriotismo, è evidente que a história nada tem de interessante nem de importante. Mas para quem è orgulhosamente português, vivendo com a esperança e a preocupação de que o seu país suba no conceito do mundo, è óbvio que a vida dos portugueses do passado tem muita importância.
- Pensando assim, não se cairá num nacionalismo doentio?
- Gostar do que è nosso não è doença nenhuma. Desprezar a nossa memória colectiva è quebrar o vínculo ao que de mais profundo existe em nós, enquanto povo. E isso pode ser perigoso. Talvez por essa razão existam tantos portugueses que não estão minimamente preocupados em colaborarem no progresso do país. Ser nacionalista, gostar do que è nacional, è apenas e só manter bem viva a alegria de ser ter nascido num determinado país. Olhe o exemplo das grandes potências: todos eles estimam a sua história.
- O senhor Victor è uma pessoa muita crítica. Eu talvez não seja tão radical, mas reconheço que o conhecimento da história portuguesa não è motivo de interesse para a maioria dos portugueses. E vejo agora que o senhor teve muita influência no seu filho. Era assim que ele pensava.
- Sim, eu sei. Eu e o Álvaro conversávamos muito.
- Porque razão não tirou ele um curso superior?
- Por causa da tropa.
- Da tropa?
- È verdade Rui. Ele dizia que na vida de um homem as coisas têm de acontecer no tempo certo. Ele pedir espera à tropa, tirar um curso...ia levar alguns anos. Seria depois chamado já com vinte e muitos... ele preferiu assim.
- Foi sempre um óptimo amigo.
- E um querido filho. Nasceu em 1951. Foi criado no Calhabé. Mal me descuidei, já tinham passado vinte e dois anos. Escondido, chorei na festazita que se fez lá em casa para amigos e familiares, que lhe quiseram desejar muita saúde, muitas felicidades e muita sorte. Como o meu coração estava apertado. Ele fora mobilizado para Angola. Partia dali a três dias. Estávamos em Fevereiro de 1973...(em continuação- pág. 40)

in VISITADOS

Novembro/1999

2 comentários:

Gibson Azevedo disse...

Caro amigo F. Gomes, comungo convosco quando sentem-se descaracterizados por um lixo, um entulho de costumes estrangeiros, que nos visitam - aí, fazendo morada-,alheios a nossa vontade, e que transmudam a personalidade dos nossos jovens (as jóias mais ricas dos nossos verdadeiros tesouros.) Isto também nos acontece... Felizmente, temos vozes como a vossa, emblemáticas, na figura de um Ariano Suassuna que abomina, com veemência, toda essa tralha estrangeira que nos defomam e nos diminuem. Fiquemos firmes nas trincheiras! Não baixemos a guarda!...
Grande abraço deste seu amigo.
Gibson Azevedo.

Poeta do Penedo disse...

Agradeço as suas entusiásticas e comoventes palavras. Na verdade estou cansado de me sentir diminuído pelo estrangeiro. Nós, portugueses do século XXI, ao mesmo tempo que herdamos a nobreza da nossa história, também herdamos a pequenez que nela está contida, de genes que têm feito fraca a forte gente. Desde o início do séc. XIX que temos vindo em sentido descendente, a perder a nossa identidade. O carácter de Portugal, que está de toda a Europa, tem de despertar.
Com bastante amizade
Fareleira Gomes