sábado, 28 de fevereiro de 2015

UM TESOURO DO 61, QUE EM ANGOLA SE SUPÕE VIVO

...Depois de ter fumado mais um cigarro, escondido no escuro, fazendo tempo para que a rapariga entrasse bem no sono, verificou se levava consigo os apetrechos de que iria precisar. Decidiu-se então por avançar. Calçava sapatilhas para poder ter maior liberdade de movimentos. Por uma última vez olhou atentamente em seu redor. Não havia vivalma. Tudo estava em silêncio. Agachou-se, e durante quinze minutos trabalhou freneticamente, em absoluto silêncio.
         Conseguira ultrapassar a barreira que a fechadura representava. Era apenas mais uma. Com a chave improvisada puxou lentamente o engate da fechadura, deu um leve empurrão à porta, e eis que a ténue luz do candeeiro distante penetrava a escuridão do corredor. Já no interior da casa encostou a porta da rua. Num dos bolsos do casaco preto que vestia, procurou o frasco de clorofórmio, e indagou se o lenço que preparara, também lá estava. Tudo confirmado tirou do outro bolso uma lanterna e muito lentamente abriu a porta do quarto, onde julgava estar a rapariga. Acertara em cheio! Ouvia uma respiração suave e compassada. Ela dormia profundamente. Não iria ser preciso sequer usar o clorofórmio. Acendeu a pequena lanterna, com o facho de luz a iluminar o chão, e começou a andar muito lentamente. Contornava a cama onde a rapariga dormia. A circunferência de luz que se desenhava no chão, começou lentamente a subir e passou para o guarda-vestidos. Subitamente a luz foi reflectida no espelho do guarda-fatos. O homem, que se tinha esquecido desse pormenor, teve um movimento brusco com o corpo, surpreendido com a inesperada reflexão da luz, e deixou cair a lanterna. Tudo isso contribuiu para que a rapariga acordasse. De imediato Catarina pressentiu que alguém, além dela, estava no quarto. Em pânico, de um salto se sentou na cama e gritou:
-         Quem está aí?
         O homem, desesperado, deu-lhe uma violenta bofetada. Seguidamente atirou-se para cima dela e procurou a almofada. Catarina debatia-se o mais que podia e gritava. O homem, encontrando a almofada, arremessou-a violentamente sobre o rosto de Catarina e pressionou, pressionou imenso. Abafara o som dos gritos. Pouco tempo depois, aquele jovem e terno corpo não oferecia mais resistência. O homem, extenuado pela aspereza da sua atitude, pegou na lanterna que ainda se mantinha acesa no chão, e de uma forma atarantada apontava a luz para todas as direcções. Finalmente detectou o estupor do livro, poisado em cima da mesinha de cabeceira. Avidamente pegou nele e fugiu daquele maldito quarto. Aquele serviço tão inocente, afinal acabara por correr muito mal. Nunca matara ninguém. Era um grande ladrão, mas assassino não gostava de ser, e agora já o era. Raios partissem o maldito livro! Mas aquela inesperada ocorrência haveria de encarecer o trabalho. O maluco do arquitecto ia ver como. E logo havia de manchar as mãos numa rapariga tão bonita!
         O homem saiu de casa a correr. A porta ficou escancarada. Entrou aflitivamente no carro, deu à ignição  e rapidamente desapareceu.
         O número 61 mantinha-se em silêncio, enquanto nele, um coração em Angola, supunha lá guardar o seu tesouro...(em continuação, pág. 90, ex. XXVIII)
in Visitados
Novembro/1999


sábado, 14 de fevereiro de 2015

IX JANELA SOBRE O MEU PAÍS: ALFEIZERÃO, UMA HISTÓRIA ÁRABE COM TREZE SÉCULOS

Alfeizerão, essa doce vila, localizada no Concelho de Alcobaça, terra do internacional pão de ló de Alfeizerão, foi fundada pelos árabes em 717, seis anos após a sua ocupação da Península Ibérica.
Era esta terra de mouros aquando da fundação da nacionalidade. Dizem os entendidos que o seu castelo, em ruínas, com as ameias redondas, é demonstrativo das suas origens.
Não é por acaso que o seu Brasão apresenta uma meia lua árabe.

Nós, portugueses, somos mesmo um caldeirão de culturas!

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A NOITE DESASSOSSEGADA PERGUNTA SE A VIDA TEM ALMAS

...Sentado na velha cama de ferro, fumando o cigarro sofregamente, António Avilar tentava perceber se o pesadelo que lhe inquietara o espírito tinha algum significado e se o tivesse, qual seria? Porquê aparecer-lhe um automóvel, coisa que ele apenas vira duas ou três vezes aquando das suas deambulações por Lisboa e Bombarral?! Porque razão criara a sua mente a figura de um homem que ele nunca vira? Porque motivo esse homem se misturara com a desagradável figura do mouro? Finalmente, que teriam vindo fazer os soldados alemães à quietude do seu solitário sono? Esses ele sabia bem o que significavam. Reclamavam a sua vida, a vida pela qual tanto fizeram para que fosse roubada. Isso significava a morte, aquela mesma que estivera junto a si, nos campos da Flandres. Sim, aquele pesadelo fora um aviso. Os soldados alemães só poderiam significar algo funesto para si. Enviar avisos através de sonhos só está ao alcance de Deus ou como acredita o povo, através de almas boas que se encontram ao seu serviço. Ele não tinha a certeza se acreditava nessas coisas. Bem sabia do que acontecera em Fátima havia cinco anos. A aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos acontecera em Maio de 1917. Por essa altura já ele andava na guerra, em terras de França. Lá nunca soube de nada. Foi depois de ter regressado, que tomou conhecimento de toda a paixão que o povo sentia pelo 13 de Maio em Fátima. Esse mistério que é do conhecimento de todo o Portugal e os outros, aqueles que vão acontecendo pelas aldeias do país, almas boas que entram no corpo de pessoas que as recebem e através delas tentam ajudar homens e mulheres em aflição, traziam consolo e esperança à vida de António Avilar. Seria aquele homem vestido de preto um emissário de Deus? Qual quê! Se Deus o abandonara! Estava a ser injusto. Contrariamente a muitos milhares de camaradas seus, Deus poupara-lhe a vida em França. Para quê? Para ver a sua doce e bela Luísa casada com outro? Para ver uma filha a quem nem um beijo podia dar? Não, Deus salvara-lhe a vida para lhe dar a oportunidade de ele redimir o seu acto de banditismo, cometido ali mesmo, na noite de 8 de Outubro de 1910. E se lhe dava essa oportunidade era porque saberia que ele era merecedor dela. Afinal, ele talvez fosse uma boa pessoa. Mas como essa remissão ainda não fora cumprida e ele, de alguma forma talvez corresse perigo de vida, eis que viera o aviso. Mas quem seria aquele homem vestido de pr...? Esta pergunta  ao atravessar o espírito de António Avilar, deixou-o subitamente suspenso no rosto daquele homem. Muito direito, o olhar fixo no vácuo, fazia-se-lhe luz na memória. Mas é claro, aquele homem era o morgado Vitorino. Uma única vez o vira na vida. Aquele rosto jovem, profundamente carregado de aflição, o impressionara para sempre. E no sonho ele levara-o por um braço para junto da morte, ou antes, para que ele a soubesse reconhecer. Porque motivo quereria a alma do morgado ajudá-lo, agora que deveria saber que ele participou no assalto ao seu solar? Talvez porque, como alma que era, possuísse a faculdade de conhecer a essência de cada pessoa e assim tivesse tomado conhecimento dos grandes remorsos que o possuíam a si, um pobre caminhante desta vida. Talvez ainda, porque não esquecia que fora pai dos dois rapazes que viviam separados e os quisesse ver de novo unidos, vivendo em pleno direito nas terras que lhes pertenciam. Afinal, as almas se existissem, com certeza que iam seguindo as vidas dos que por cá iam ficando, e decerto se preocupariam com as condições de vida terrena dos que lhes estiveram ligados por laços familiares. Ou a vida das almas não seria nada disto? Era tudo tão confuso. Mas fosse como fosse, por Deus ou por uma alma amiga, ficara-lhe a forte intuição de que o sonho fora um sério alerta. Mas que era isto? Não podia dar largas à sua imaginação. Não ia ser um tolo pesadelo que o ia tornar obcecado na ideia de uma perseguição à sua pessoa. Naquele momento, embora não parecesse, o perseguidor era ele...(em continuação, pág. 119, ex. XLIV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998