sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A NOITE DESASSOSSEGADA PERGUNTA SE A VIDA TEM ALMAS

...Sentado na velha cama de ferro, fumando o cigarro sofregamente, António Avilar tentava perceber se o pesadelo que lhe inquietara o espírito tinha algum significado e se o tivesse, qual seria? Porquê aparecer-lhe um automóvel, coisa que ele apenas vira duas ou três vezes aquando das suas deambulações por Lisboa e Bombarral?! Porque razão criara a sua mente a figura de um homem que ele nunca vira? Porque motivo esse homem se misturara com a desagradável figura do mouro? Finalmente, que teriam vindo fazer os soldados alemães à quietude do seu solitário sono? Esses ele sabia bem o que significavam. Reclamavam a sua vida, a vida pela qual tanto fizeram para que fosse roubada. Isso significava a morte, aquela mesma que estivera junto a si, nos campos da Flandres. Sim, aquele pesadelo fora um aviso. Os soldados alemães só poderiam significar algo funesto para si. Enviar avisos através de sonhos só está ao alcance de Deus ou como acredita o povo, através de almas boas que se encontram ao seu serviço. Ele não tinha a certeza se acreditava nessas coisas. Bem sabia do que acontecera em Fátima havia cinco anos. A aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos acontecera em Maio de 1917. Por essa altura já ele andava na guerra, em terras de França. Lá nunca soube de nada. Foi depois de ter regressado, que tomou conhecimento de toda a paixão que o povo sentia pelo 13 de Maio em Fátima. Esse mistério que é do conhecimento de todo o Portugal e os outros, aqueles que vão acontecendo pelas aldeias do país, almas boas que entram no corpo de pessoas que as recebem e através delas tentam ajudar homens e mulheres em aflição, traziam consolo e esperança à vida de António Avilar. Seria aquele homem vestido de preto um emissário de Deus? Qual quê! Se Deus o abandonara! Estava a ser injusto. Contrariamente a muitos milhares de camaradas seus, Deus poupara-lhe a vida em França. Para quê? Para ver a sua doce e bela Luísa casada com outro? Para ver uma filha a quem nem um beijo podia dar? Não, Deus salvara-lhe a vida para lhe dar a oportunidade de ele redimir o seu acto de banditismo, cometido ali mesmo, na noite de 8 de Outubro de 1910. E se lhe dava essa oportunidade era porque saberia que ele era merecedor dela. Afinal, ele talvez fosse uma boa pessoa. Mas como essa remissão ainda não fora cumprida e ele, de alguma forma talvez corresse perigo de vida, eis que viera o aviso. Mas quem seria aquele homem vestido de pr...? Esta pergunta  ao atravessar o espírito de António Avilar, deixou-o subitamente suspenso no rosto daquele homem. Muito direito, o olhar fixo no vácuo, fazia-se-lhe luz na memória. Mas é claro, aquele homem era o morgado Vitorino. Uma única vez o vira na vida. Aquele rosto jovem, profundamente carregado de aflição, o impressionara para sempre. E no sonho ele levara-o por um braço para junto da morte, ou antes, para que ele a soubesse reconhecer. Porque motivo quereria a alma do morgado ajudá-lo, agora que deveria saber que ele participou no assalto ao seu solar? Talvez porque, como alma que era, possuísse a faculdade de conhecer a essência de cada pessoa e assim tivesse tomado conhecimento dos grandes remorsos que o possuíam a si, um pobre caminhante desta vida. Talvez ainda, porque não esquecia que fora pai dos dois rapazes que viviam separados e os quisesse ver de novo unidos, vivendo em pleno direito nas terras que lhes pertenciam. Afinal, as almas se existissem, com certeza que iam seguindo as vidas dos que por cá iam ficando, e decerto se preocupariam com as condições de vida terrena dos que lhes estiveram ligados por laços familiares. Ou a vida das almas não seria nada disto? Era tudo tão confuso. Mas fosse como fosse, por Deus ou por uma alma amiga, ficara-lhe a forte intuição de que o sonho fora um sério alerta. Mas que era isto? Não podia dar largas à sua imaginação. Não ia ser um tolo pesadelo que o ia tornar obcecado na ideia de uma perseguição à sua pessoa. Naquele momento, embora não parecesse, o perseguidor era ele...(em continuação, pág. 119, ex. XLIV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

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