quarta-feira, 28 de julho de 2010

PALAVRAS DE MOXICO

...Naquele dia de Novembro frio, de 1973, Catarina saíra de sua casa, no Alto da Conchada, após o almoço, e encaminhava-se para o café Nicola. Teria de caminhar pela rua íngreme que descia da Conchada, atravessaria o Beco de Montarroio, passaria junto ao Pátio da Inquisição, mais uma vez admiraria a imponência antiga de um Portugal velho, traduzida na magnífica fachada da Igreja de Santa Cruz, subiria a Rua Visconde da Luz, e já na Ferreira Borges o Nicola a esperava como acontecia quase todos os dias.
O Nicola era por excelência o café que muitos estudantes, tal como Catarina, elegiam para seu refúgio de estudo e lazer. Ali se edificavam grandes exames, ali nasciam grandes amores platónicos, ali se choravam lágrimas vertidas por corações rasgados, penando uma desilusão amorosa.
Catarina ia bela. Vestia calças vermelhas, justas às pernas, e muito largas junto aos pés. No «sino» das calças, a letras cinzentas, estava inscrita a frase «make flowers not war». Vestia ainda uma grossa camisola de lã preta, de gola alta, bem cingida ao corpo, e um pesado casaco preto, bordado à frente com caracteres vermelhos e cinzentos, que começavam junto aos ombros e desciam até ao peito, salientando o volume dos seios. O preto do casaco e o vermelho das calças contrastavam com o brilhante cabelo loiro, que lhe descia até meio das costas. Decerto não passava despercebida . Mas ela não dava atenção aos olhares provocadores que lhe eram dirigidos. Assim estava bem com a vida, e o sol frio mas radioso que beijava Coimbra naquele dia de Novembro, despertara nela o orgulho em ser bonita.
De manhã recebera mais uma carta de Álvaro. Ela vivia das cartas e para as cartas. Desde que Álvaro partira para Angola, já havia nove meses, escrevera aerogramas sem conta e os recebera, os « bate estradas » como Álvaro chamava àquelas deliciosas cartas. Ele cumpria com o que prometera. Conseguira transmitir-lhe toda a envoltura de Angola.
« Minha loirinha, após te ter escrito a última carta, percorri quatrocentos quilómetros. A minha companhia foi transferida para um aquartelamento no Distrito do Moxico. È uma zona densamente arborizada. Para meu espanto, vim encontrar este quartel bem no coração da floresta. Ao quartel chamam-lhe Ninda. A cerca de quinhentos metros passa o rio Cuango. Quando nos vamos abastecer de água, temos de montar uma forte vigilância, pois caso contrário podemo-nos tornar vulneráveis. Nunca sabemos quando o turra nos espreita.
Perto do aquartelamento existe uma pista para aterragem de avionetas, que nos trazem o fornecimento de alimentos, tabaco e medicamentos, bem como os nossos adoráveis bate estradas, pelos quais as nossas ninfas da Metrópole nos aquecem os corações.
Na selva existem árvores colossais, tanto em altura como em diâmetro. De manhã, sob o sol abrasador de África, somos envolvidos pelo som indescritível de milhares de aves a cantarem, e gritos de outros tantos macacos. Não fosse a guerra, diria que o local onde me encontro è decerto o paraíso. A cerca de um quilómetro do Ninda existe uma sanzala. Lá vivem nativos, pertencentes ao povo Nhemba. Não têm sido hostis. Um ou outro nativo fala um português rudimentar, que dá perfeitamente para nos entendermos. Há dias fomos à caça e apanhámos cinco facuqueros, javalis africanos. Levámo-lhes um. Eles ficaram muito agradecidos. È conveniente termos boas relações com esta gente. Entre tantos inimigos, se tivermos alguns amigos, teremos arranjado uma fonte de apoio que nos pode vir a ser de grande utilidade...» (pág. 60- ex. XII- em continuação)

in Visitados

Novembro/1999

domingo, 25 de julho de 2010

AO ENCONTRO DOS ÚLTIMOS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS


Estou de regresso de uma viagem fascinante, tendo tido por guia a jovem autora Robyn Young. Com mestria surpreendente, dada a sua idade, fui levado a conhecer os bastidores da maior, mais famosa e mais poderosa ordem militar que jamais existiu: a Ordem dos Templários.
Nas 1465 páginas, distribuídas por três volumes (A Irmandade, A Cruzada e Requiem), o enredo desenrola-se em Inglaterra, França, Escócia e Palestina, aqui com maior incidência na cidade de Acre, último bastião Franco na Terra Santa- Outremer (havendo lugar a uma breve alusão à cidade de Tomar, cidade portuguesa templária por excelência).
A partir de 1260, acompanhando o jovem sargento do Templo, William Campbell, fui de encontro ás cerimonias iniciáticas, pelas quais os sargentos do Templo eram iniciados como cavaleiros templários. Seguindo de perto a vida do jovem cavaleiro, fui conhecendo as tramas da alta política de então, onde se envolveram templários, reis, ministros e o papa, e em que Campbell se enredou, vindo a tornar-se num importante comandante. Não esqueceu a autora de me transportar ao seio da sociedade muçulmana da época, onde tive a oportunidade de contactar a outra perspectiva das cruzadas.
Uma narrativa apaixonante, verdadeiramente arrebatadora, sobre os últimos quarenta e sete anos da existência de dois séculos, da Ordem dos Templários, extinta no dia 13 de Outubro de 1307, quando tinha por Grão-Mestre, o último grão-mestre, Jacques de Molay.
Uma magnífica simbiose entre ficção e realidade, onde se sente ter havido um exaustivo trabalho de pesquisa, numa escrita de fluidez rica, simples, mas tremendamente eficaz. Uma obra que recomendo a todos os que sintam algum fascínio pela Ordem dos Templários.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

NUM DOMINGO DE OUTUBRO...

...Os grilos cantavam a sua melodia estival. Eram acompanhados pelo coaxar macio e sereno das rãs. Num quadro de maravilha, as silhuetas de seis carvalhos recortavam-se contra a imagem luminosa e bela de uma lua, que sorrindo a uma noite de verão, subia para ocupar o seu lugar no céu. A doçura da natureza não combinava com a amargura do íntimo do Caminhante. Fora um dia duro. O luar iluminava-lhe o rosto, brilhante de lágrimas. O tempo de inactividade estava a chegar ao fim. Sem saberem, todos lhe pediam que agisse. Brevemente iria fazê-lo.

Num Domingo de Outubro de 1922 realizou-se o casamento de Américo Afonso e de Luísa. A Casa das Leis foi o palco da cerimónia simples de união entre dois amantes. Casaram-se pelo civil. D. Vitoriana ficou muito triste por não poder ver o seu filho perante o altar católico, numa cerimónia religiosa que com certeza a encheria de alegria. Mas dado o estado civil de Luísa, essa cerimónia era de todo impossível. Foi este o único aspecto do casamento do filho que verdadeiramente a entristeceu. O povo falava. O povo escandalizava-se. Mas se o fazia, era mais por inveja do que por outra razão. Até aí, Luísa sempre fora estimada por todos. D. Vitoriana sentia que o filho lhe arranjara uma nora em condições. Na verdade, o dinheiro não era tudo na vida. Se as qualidades humanas já não tinham valor, para onde iria o mundo?
Pela segunda vez Luísa abandonava a casa de seus pais. Comparando a simplicidade da casa da Quinta do Louro com a sumptuosidade da Casa das Leis, Luísa melhorara em muito a sua vida com aquele segundo casamento. Da riqueza assim oferecida beneficiavam também a pequena Rosa e o jovem Carlos Avilar. Os dois pequenos, partindo de uma vivência inadaptada ao novo ambiente, começaram progressivamente a ambientar-se ao luxo daquelas paredes e a conquistarem a verdadeira estima do padrasto e dos avós adoptivos.
Passada que fora uma lua de mel cheia de encanto e romance, vivida no paradisíaco Hotel do Buçaco, onde desfrutaram da envolvência outonal de uma floresta matizada de ouro, regressaram ao Bombarral. Em finais desse mês de Outubro, no aconchego da intimidade do quarto, Luísa disse a Américo:
- Chegou a altura de te revelar um segredo.
- Um segredo? - perguntou Américo com perplexidade.
- Sim, um grande segredo. Espero que me compreendas.
- Diz Luísa, fala - dizia Américo deveras curioso, sem no entanto deixar de sentir um pouco de preocupação.
- Com quem è que tu achas que o Carlos se parece?
- O teu filho? Não sei, não tenho jeito para tirar parecenças, mas acho que contigo não é. Só se for com o António, mas eu nunca o conheci.
- O Carlos não se parece nem comigo nem com o António, porque ele não é nosso filho.
- O quê? O Carlos não é teu filho?
- Não.
- Mas eu sempre o conheci agarrado às tuas saias.
- O António trouxe-o deveria ele ter um ano de idade.
- Foi uma adopção?
- Não, foi talvez um salvamento.
- Mas então, quem são os pais do miúdo? Nasceu onde?... (pág. 93, ex. XXXI-em continuação)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

terça-feira, 20 de julho de 2010

DA ESTRADA DA DANADA DA VIDA VEM O TI ZÉ

...A taberna do Ti Chico Bento ainda estava aberta. Mas o Caminhante passou ao lado. A conversa que tivera com o pároco concentrara-o apenas no grande propósito que o obrigava a manter-se em Alfeizerão. O diálogo com o padre reavivara as memórias do passado, levara lume às feridas espirituais que se recusavam a cicatrizar. O Caminhante vivia o presente de uma forma superficial. A sua força, o seu verdadeiro ser encontrava-se no passado, o mesmo que fazia naquele momento acelerar as batidas do coração. Que memórias tão profundas seriam aquelas?
Entrou na herdade. Ao encaminhar-se para o minúsculo casebre que lhe servia de habitação, situado no meio do casario trabalhador, o Caminhante passou pela casa de Lucinda Matias. Aquela mulher era um mistério. A cor vermelha e alegre do seu farto cabelo, contrastava com a permanente tristeza do preto da roupa que usava. Que ele soubesse, àquela mulher não lhe morrera nenhum familiar. Porquê então o luto permanente?
A noite já dava luz às estrelas e à lua. A porta de entrada da casa de Lucinda encontrava-se entreaberta. Cá fora, na soleira da porta, estava sentado um rapazinho. Era o Hélder. Com um pequeno pauzito desenhava rabiscos no chão arenoso. Estava triste e perdido, viajando sentado nos pensamentos velozes que o transportavam ao limite dos seus conhecimentos, sabedorias débeis, próprias de um tenro jovem.
- Boa noite Hélder- disse o Caminhante.
- Boa noite Ti Zé da Estrada - respondeu Hélder.
- É do meu olho são ou estás mesmo triste? - perguntou o Caminhante.
- Pois estou sim senhor. E não é para estar? Sempre que eu faço anos, a minha mãe farta-se de chorar.
- Não chorará ela de alegria? É sempre mais um ano que vingaste.
- Não é nada disso não senhor. É mesmo um chorar de tristeza. Hoje faço treze anos e foram lágrimas até não mais acabar.
- Ouve rapaz, a vida é uma coisa muito séria. A danada da vida, para alguns é muito boa, mas para outros pode ser muito difícil. Se a tua mãe chora sempre que fazes anos, é porque lá terá as suas razões, razões essas que talvez seja cedo para tu perceberes. Mas de uma coisa fica tu ciente, o amor que ela tem por ti é muito grande. Vai, vai ter com ela e abraça-a, acompanha-a. Ela está a precisar do teu apoio.
- Ó Ti Zé da Estrada, quem o ouve falar até pensa que vossemecê está dentro da cabeça da minha mãe. Parece saber tudo.
- Não meu rapaz, eu não sei nada. Se soubesse tudo não era agricultor. Mas há uma coisa de que eu sei muito, é de vida. Antes de tu nasceres já havia mundo e eu já por cá andava. É natural que conheça algumas coisas que tu ainda terás de aprender. Tem confiança em mim. Vai pelo que eu te digo. A tua mãe não tem prazer nenhum em chorar. Se o faz é porque o seu coração está magoado.
- Comigo? - perguntou Hélder.
- Não, não é contigo. É com a vida.
- E porque razão é que isso acontece sempre que eu faço anos? A minha mãe não chora quando o meu irmão Pedro faz anos.
- Não te martirizes com isso. Contenta-te com a certeza de que aquelas lágrimas nada têm a ver contigo. Fazem parte da vida, uma vida que tu um dia irás entender. Agora vai, vai dar um forte abraço à tua mãe. Ela merece. Boa noite Hélder.
- Boa noite Ti Zé da Estrada.
O Caminhante seguiu o seu caminho, na ânsia de repousar o corpo cansado na enxerga humilde... (pág. 90- ex. XXX- em continuação)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

domingo, 18 de julho de 2010

DUO OURO NEGRO- UM COMETA DE VIBRAÇÃO MUSICAL QUE NÃO MAIS REGRESSARÁ



Há dias, a desfolhar uma revista especializada em música,onde são apresentados todos os festivais rock que se vão fazendo por esse país, em que ao leitor são apresentadas as histórias desconhecidas das suas bandas favoritas, toda essa informação acompanhada por fotografias superproduzidas, surgiu-me, subitamente, uma fotografia antiga. No meio de toda a panóplia de músicos e músicas das mais variadas correntes, eis que ali, naquela página, o Milo Macmahon e o Raúl Indipwo, no sossego da sua arte, acompanhados pelas suas violas acústicas, cantavam uma das suas belíssimas canções. Naquela revista havia espaço para o DUO OURO NEGRO.
Fui habituado a ouvir o Duo Ouro Negro. A nenhum português da minha geração esse nome passará despercebido.
No artigo, que acompanhava a fotografia, tive oportunidade de conhecer um pouco melhor a história deste grupo emblemático da música popular portuguesa, de total influência africana, mais propriamente angolana, pois tanto o Raúl, como o Milo, eram naturais de Angola. E eles cantaram em todos os continentes, tendo actuado no Olympia de Paris em 1967.
O Duo Ouro Negro, pode-se dizer terminou em 1985, aquando da morte de um dos seus membros- O Milo, muito embora o Raúl tenha perpetuado a sua memória e as músicas do Duo pelos anos fora, apresentando-se sempre vestido de branco, até a 2006, ano em que também ele faleceu. E foi para lembrar a sua morte que a revista que eu desfolhava publicou o artigo.
Sensibilizou-me! Neste país ainda vai havendo quem tenha sensibilidade suficiente para conseguir olhar para trás, e reconhecer o mérito de quem, com simplicidade, muito justamente o ganhou.
Termina o autor dizendo que «..nos últimos anos tornaram-se alvo da ignorância e do esquecimento. Mas, como todos os cometas, deixaram um rasto que é preciso seguir».
A música que escolhi para acompanhar este texto- vou levar-te comigo- de 1984, foi a última música criada pelo Duo Ouro Negro.
Ao autor do artigo- Jorge Pires, lhe faço companhia numa homenagem sincera aos dois elementos que constituíram o Duo Ouro Negro: Milo Macmahon e Raúl Indipwo.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A VILAFRANCADA

...Entretanto, em 1822, no dia 23 de Setembro, é promulgada a Constituição Portuguesa que dá a liberdade de expressão aos cidadãos. Portugal afastava-se assim do regime absoluto. A Constituição foi a génese de todos os conflitos que estavam para chegar, muito embora, fosse, concomitantemente, um bálsamo para a repressão que até ali fora exercida sobre o povo.
Pois é, a política é sempre um pau de dois bicos.
E os problemas não se fizeram esperar. Enquanto que o rei D. João VI jurava a constituição, a rainha D. Carlota Joaquina recusou fazê-lo, colocando-se, ela própria, à frente de uma conspiração que devolvesse ao reino o regime absolutista.
Nesse ano de 1822 eu estava a terminar o meu curso de medicina, em Coimbra. Em toda a universidade foi uma enorme alegria o juramento da Constituição por parte de Sua Majestade. E, se porventura, se aguardava a reacção da aristocracia mais conservadora, nunca se imaginou que essa reacção à implementação do liberalismo em Portugal, viesse de onde veio – da própria rainha D. Carlota Joaquina, e do seu filho D. Miguel. Eu, quando soube que, nesse mesmo ano, a rainha conspirava para depor o seu marido do trono e lá fazer sentar o infante D. Miguel, fiquei convicto de que tendo o liberalismo adversários deste calibre, Portugal iria ser invadido de novo, agora não por franceses, mas por portugueses.
Aquela notícia caiu-me bem cá no fundo do meu ser. Portugal de uma guerra civil não se livrava. Mas eu iria ter a minha pacata actividade de médico. A minha guerra seria contra as infecções e os micróbios.
Do lugar em que me encontro e onde escrevo estas linhas, olhando para esse já distante passado, e sendo agora o que sou, sei do poder da força da natureza humana, e o quanto pode alterar o rumo das vidas dos homens.
Os primeiros sinais da guerra civil que o destino colocava em marcha para Portugal, logo se fizeram sentir. Reagindo à conspiração que contra o rei se organizava, nesse ano de 1822, os conspiradores absolutistas foram presos; mas volvidos quatro meses, a 23 de Fevereiro de 1823, uma nova acção antiliberal foi mais uma vez abafada pelo governo do reino, revolta essa liderada pelo general Manuel da Silveira. Era constante a movimentação de tropas de um e de outro lado. O general Manuel da Silveira, Conde de Amarante, fugiu para Espanha, enquanto a coroa confiscava todos os seus bens.
Três meses depois, em 27 de Maio de 1823, teve lugar uma nova investida das forças absolutistas, esta, no entanto, muito mais perigosa do que a anterior, pois voltava a ter como cérebros da conspiração a própria rainha D. Carlota Joaquina e o seu filho, o infante D. Miguel. Dado o rei ter cedido a este contra-ataque, por parte da sua esposa e do seu filho mais novo, e porque foi perpetrado em Vila Franca de Xira, ficou conhecido para a história como a Vilafrancada...(pág. 12- ex. V- em continuação)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009