segunda-feira, 30 de novembro de 2009

AI MONDENGO...MONDENGO...



Há alguns anos, numa povoação nos arredores de Aveiro, morava um homem, que, segundo reza a história, dialogava constantemente com Baco. Em bom português, era um borrachola inveterado. Esse homem tinha um cão- o Mondego. Num dia de festa na terra, chegou a casa, pela noite, mais bêbado do que era costume. A mulher, cansada de lhe aturar as bebedeiras, que felizmente eram compostas por um vinho fácil, agarrou-o por um braço e pô-lo na rua, ordenando-lhe que fosse cozer a bebedeira para onde a tinha apanhado. O homem saiu, numa amargura cambaleante, sem antes ter dedicado umas carícias ao seu velho e fiél amigo, o Mondego, que ao aspirar o bafo que vinha do dono se afastou rapidamente. Raio de vida, até o cão o abandonava!
O homem regressou ao recinto da festa, tendo-o encontrado completamente vazio. A falar com os seus botões, amaldiçoando, em segredo, a mulher que daquela forma desumana o tratava, para ali se encostou na barraca dos frangos, procurando por alguma garrafa de pinga esquecida, mas não encontrando nada, pois tudo andava com uma sede desgraçada, que as garrafas era um ver se te avias,deitou-se num comprido banco de suma a pau e adormeceu.
Pela manhã, compondo a gravata sebenta de nódoas de vinho, tentando aparentar boa figura, enchendo o peito para absorver o ar da manhã, ganhando coragem para assim enfrentar o previsível mau humor da esposa, tomou a direcção de casa. Ao chegar, foi recebido pelo seu fiél cão, que aos saltos e abanando freneticamente a cauda, demonstrava a sua alegria por ver o dono. O homem, sensibilizado por aquela demonstração de carinho, disse:
- Ai Mondengo, Mondengo, largas terras tem o mundo. Ainda te lembras de mim, cãozinho?
O herói chegava a casa, depois da sua extenuante, longa e perigosa jornada!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O CAMINHANTE

...Andava com passos sofridos e desalentados. O fardo da vida era enorme. Chegara a Lisboa havia dois meses, em Março último, no dia em que dois portugueses partiam de avião, numa viagem de aventura atravessando o Oceano Atlântico. Não se admirara com o avião. Já anteriormente vira alguns. Que onda de alegria varria a capital nesse dia. A vida era assim mesmo. Para uns a glória, para outros a humilhação, a tristeza. Saboreara um pouco a felicidade do povo lisboeta e logo de seguida metera pés ao caminho, por esse Portugal dentro. Dinheiro não tinha, por isso caminhava. De vez em quando carroceiros aliviavam-lhe a caminhada, transportando-o por alguns quilómetros. Visitara o seu primeiro destino. Corria o ano de 1922. Como tudo mudara. Não tivera forças para alterar o percurso da vida, a vida de quem o amara. Ele não sabia até que ponto estaria à altura de voltar a ter uma vida normal. Na dúvida, preferiu deixar as coisas ficarem como estavam. As feridas da alma podem fazer desaparecer o tino a um homem.
Envergava umas calças amarelas muito largas e remendadas. Vestia uma camisa aos quadrados vermelhos e castanhos, com o colarinho e os punhos coçados. Por cima usava um casaco castanho de fazenda, com muitos anos. Calçava uns socos com falhas na madeira. Um chapéu preto com minúsculos rasgões completavam o traje. Estava cego do olho esquerdo, por isso usava uma venda. Tinha uma cicatriz muito pronunciada no rosto abundantemente barbado, que começava na sobrancelha esquerda, atravessava obliquamente o rosto e terminava junto à orelha direita. A tiracolo levava um bordão apoiado no ombro direito. Na ponta do bordão tinha atado um saco onde transportava os seus parcos haveres. Procurava trabalho. Encaminhava-se para o seu segundo destino - Alfeizerão. Finalmente lá chegara. As poucas pessoas que foi encontrando no caminho olhavam-no desconfiadas. Ele não se importava. De que outra maneira as pessoas se poderiam sentir ao verem um estranho, com uma tão estranha aparência?
Atravessou a pequena aldeia. Viu uma taberna aberta. Nela entrou. Que enorme pipa ali existia. Estavam dois homens encostados ao balcão de pau cru. Do lado interior do balcão encontrava-se o taberneiro.
- Santas tardes a todos - disse o caminhante.
- Santas tardes - responderam os três homens com ar desconfiado.
- Podem-me dizer se aqui é Alfeizerão? - perguntou o caminhante.
- É aqui mesmo - respondeu o taberneiro.
- Ponha-me aí um copo de três. A garganta está seca - disse o desconhecido.
- Tem dinheiro para pagar? - perguntou o taberneiro.
- Ainda vou tendo uns centavos.
- Quer tinto ou branco?
- Tinto, dá mais força ao sangue.
- Tiozinho, vem de muito longe? - perguntou um dos dois fregueses.
- Venho, venho de muito longe - respondeu o caminhante fixando o seu único olho no interlocutor - venho aqui a Alfeizerão para procurar trabalho. Ouvi dizer que existe aqui uma herdade valente, que está a precisar de braços para trabalhar.
- É verdade - respondeu o taberneiro.
- Quem é o dono? - perguntou o caminhante.
O taberneiro não respondeu. Fixou atentamente o caminhante, perplexo com a pergunta, sem alento para dar a resposta.
- O dono é o senhor Barreto Raposo - respondeu um dos fregueses.
O caminhante fixou o chão. Depois disse para o taberneiro:
- Qual é a sua graça?
- E porque razão quer saber?
- Eu espero ficar seu freguês, caso o senhor Barreto Raposo me dê trabalho, e mal ficará o freguês não saber o nome do homem que lhe vende o vinho - respondeu o caminhante.
- Pois seja. Chamo-me Chico Bento. E o seu nome qual é?
- O meu... eu lá sei se tenho nome. Chame-me o que quiser. Para que lado é a herdade?
- O tiozinho desce por essa estrada fora. Há-de passar junto a uma capelinha. Continue em frente que o caminho o há-de levar até lá. Logo verá um solar. Chama-se Vila de Ló - respondeu um dos fregueses.
- São todos cá de Alfeizerão? - perguntou o caminhante.
- Só eu sou de cá - respondeu o taberneiro - eles são do Bombarral.
- Bem me pareceu - respondeu o caminhante.
- Bem lhe pareceu? Alto lá com a conversa - disse um dos fregueses.
- Não se zangue. Não falei por mal. Também passei pelo Bombarral e achei que vocês falam à moda de lá. Mas incomodei-os com alguma coisa?
- Não, não - responderam os dois homens.
- Ainda bem. Vou então procurar a tal Vila de Ló. Tenho que ver se ganho algum dinheiro para o deixar na sua taberna, senhor Chico Bento. Vale a pena. A pinga é boa. Até mais ver.
Ti Chico Bento veio à porta ver o desconhecido afastar-se em direcção ao solar. Limpava as mãos a um pano cheio de nódoas de vinho. Aquele homem intrigara-o.
- É um pobre diabo - disse o taberneiro.
- Acha? Cá a mim aquela cicatriz diz-me que é sujeito de brigas, tal qual o mouro e o verruga.
- Não me pareceu - respondeu o taberneiro.
- Não sei se o fivelas o aceitará.
- Ora, ora, o fivelas quer é bons braços. As cicatrizes não o incomodam - respondeu Ti Chico Bento - mas aquele homem não há-de ser mau diabo...(em continuação- pág. 78)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

terça-feira, 24 de novembro de 2009

PASSAGEM DE AUSÊNCIAS



No reboliço adormecido da cidade, na noite que molhada acontece, sobre as águas plàcidas da ria os candeeiros inúteis iluminam a passagem da ausência dos homens. A solidão impera!
A noite se abandona ao Outono.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

QUANDO AO PEQUENO ALMOÇO SE SERVE...PAIXÃO

...Com a chegada do novo ano, o de 1922, as ocupações profissionais de Américo Afonso tomaram um novo rumo. Um caso em que ele trabalhava adquiriu subitamente contornos que exigiram de Américo um maior dispêndio de tempo. Teria realmente a matéria do facto sofrido alterações ou, pelo contrário, não teria sido antes o advogado a sofrer modificações? Teria a certeza do amor de Luísa influenciado a perspicácia de Américo? Teria ele ganhado maior profundidade na sua pesquisa? É possível que sim. A serenidade de espírito transformou-o num advogado mais eficiente. Por isso a sua alegria no trabalho era muito maior. E por tudo isto, passava menos tempo em casa.
Já se estava em Fevereiro de 1922. Sobre aquela transformadora noite de Natal se haviam passado dois meses. Mas o romance de Luísa e Américo parara à porta da casa do oleiro. Nem mais um passo os dois avançaram. Tendo aberto os corações um ao outro, alimentavam a paixão com olhares breves mas intensos. Era o silêncio amordaçado de duas bocas... que falavam sem palavras. Ocasionalmente se encontravam. Mas em cada dia que passava, para Américo e Luísa existiam dois momentos de verdadeira expectativa e delícia: para ela, quando de manhã arrumava o quarto ocupado por ele durante a noite. Para ele, quando à noite ocupava o quarto arrumado por ela durante o dia. E por estes momentos solitários, mas arrebatadamente vividos, se foram espraiando os dias.
Numa radiosa manhã de Março Luísa dirigiu-se bem cedo, como sempre, para a Casa das Leis. Ao entrar deparou-se com D. Vitoriana e o Doutor Sebastião Afonso, prontos para saírem.
- Bom dia Luísa - disse D. Vitoriana.
- Bom dia minha senhora.
- Estás admirada de nos veres prontos para sair, não é?
- Realmente estou - respondeu Luísa.
- Pois é. Eu e o senhor Doutor Sebastião temos de ir às Caldas da Rainha tratar de assuntos. Só voltaremos à noitinha. Por isso, tu em arrumando os quartos podes ir embora.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana.
- O meu filho ainda dorme. Esteve até tarde a trabalhar no escritório. Mas não deve almoçar em casa.
Luísa sentiu então o seu coração bater mais forte. Sem o saber, pela segunda vez, D. Vitoriana dava oportunidade a que Américo Afonso e Luísa se encontrassem.
Finalmente os patrões saíram. Dois meses de reflexões sobre a sua condição de mulher jovem, viúva e de novo apaixonada, conscientemente apaixonada, desinibiram-na relativamente à relação com Américo Afonso, a qual no seio de intensos fogos silenciosos que consumiam o seu ser, tentava florescer. Ela voltava a não ter controle sobre si mesma. Na ânsia de não fazer barulho, logo bateu com um pé na perna de uma cadeira, fazendo com que aquela fizesse barulho ao cair. Rasgou o pleno silêncio em que a casa ficara mergulhada, depois da saída dos patrões, dando a sensação a Luísa de que a queda da cadeira ecoara por toda a casa, parecendo-lhe que quase fizera estremecer as paredes. Américo estava ali. Luísa foi arrumar o quarto dos patrões. Passou pela porta do quarto de Américo. Parecia que tinha íman, tal era a força atractiva que a puxava para ali. Depois do quarto arrumado, passou pelo escritório. Arrumou a papelada o melhor que pôde. Embora não soubesse ler, demorou os olhos nos rabiscos feitos por Américo. Não pôde esperar mais. Ele tinha de saber que ambos estavam sozinhos. E que melhor maneira havia do que levar-lhe o pequeno almoço ao quarto?
Como todos os dias, só com a diferença de que naquele momento ia muito mais apressada, foi à padaria comprar pão fresco e à leitaria o costumeiro litro de leite. Ao reentrar em casa, tudo se mantinha em silêncio. Na cozinha preparou um lindo tabuleiro forrado com uma pequena toalha de linho. Nele colocou uma chávena com um pires, dois bules, um de café e outro de leite, dois pães, um açucareiro, uma bonita colher de prata e dois potes, um com manteiga e outro com compota de pêssego. Aquele tabuleiro estava um regalo. Olhá-lo abria de imediato o apetite ao pequeno-almoço.
A Casa das Leis era bastante grande. No andar térreo encontravam-se a cozinha, um grande espaço que servia de antecâmara de acesso à casa, onde se tinha desenrolado a patética cena entre Luísa e Américo Afonso, momentos antes de iniciarem a histórica jornada até casa de Luísa, na anterior noite de Natal, o escritório do Doutor Sebastião e a sala de jantar. Através de umas largas escadas se subia ao primeiro andar onde se situavam os quartos dos hóspedes e dos residentes, e o escritório de Américo Afonso. Todas as divisões possuíam generosas janelas que davam uma forte luminosidade a toda a casa.
Luísa segurando o magnífico tabuleiro subiu as escadas e dirigiu-se ao quarto de Américo. Bateu levemente. Não obteve resposta. Bateu de novo. Continuava o silêncio. Insistiu com mais força, equilibrando o tabuleiro numa só mão. Finalmente uma voz roufenha disse:
- Minha mãe, que quer?
- Não é a sua mãe, seu mandrião. - De dentro do quarto não se ouviu qualquer resposta. No entanto existia movimento. Ouviu-se um arrastar de chinelos. Luísa mantinha-se imóvel, com um leve sorriso nos lábios de deusa. A maçaneta da porta rodou e surgiu o rosto de Américo, com os olhos entreabertos, lutando contra a agressividade da luz matinal.
- És tu Luísa?
- Sou eu sim senhor. Vim trazer-lhe o pequeno-almoço. O Américo não tem fome?
- Eu... fome? Sim, sim, estou esfomeado - disse Américo ainda atónito.
- Américo, será que eu posso entrar? Este tabuleiro já pesa!
- Entrar? No meu quarto? Mas claro... pois... eu vou tomar o pequeno-almoço no quarto!!
Depois de Luísa ter entrado, Américo espreitou o exterior com ar intrigado. Estava admirado por a mãe ter mandado Luísa trazer-lhe o pequeno-almoço ao quarto.
- Estou admirado com a minha mãe. Mandar-te aqui com o pequeno-almoço?!
- Os seus pais não estão em casa. Foram às Caldas. Como sei que o Américo trabalhou até tarde, lembrei-me que talvez lhe fosse agradável tomar o pequeno-almoço no quarto. Fiz mal?
- Ò anjo da minha vida, como podes perguntar se fizeste mal?! Eu ainda não estou em mim. Além de nós, mais ninguém está em casa?
- Mais ninguém. O Américo tome o seu pequeno-almoço, que depois eu virei arrumar o quarto - disse Luísa enquanto abria as portinholas de madeira das janelas, que mantinham o quarto resguardado da luz solar.
- Não meu amor, talvez Deus não me torne a dar uma oportunidade como esta de te poder ter nos braços.
Luísa estava estática. Os seus grandes olhos fixavam os olhos de Américo Afonso. Os lábios entreabertos suplicavam por um beijo. Ele aproximou-se. Envolveu-a com os seus braços. Luísa não esboçou resistência. Américo Afonso aproximou os seus lábios dos dela, embrenhou-se nos seus longos e belos cabelos negros e o mundo reduziu-se ao espaço daquele quarto. O belo tabuleiro ficou abandonado, inútil. O café e o leite arrefeceram nos bules. Numa dança de corpos escaldantes, onde a roupa não tinha lugar, Luísa e Américo caminhavam no reino de Cupido. Tudo era belo e simples. Quanto mais conheciam daquele reino mais queriam conhecer. Percorreram todos aqueles caminhos até à exaustão. O mundo era perfeito...(em continuação- pág. 75)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O POVO É SOBERANO

Nestes dias em que, em Portugal, se assiste a esta espectacular mostra de decência moral, a voz do povo, mesmo que vinda da profundidade do século passado, é de uma actualidade impressionante. A voz do povo, embora seja do povo, sempre foi e continuará a ser uma voz genuína, verdadeira e incomodativa.

Gosto do preto no branco,
como costumam dizer.
Antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.


Quantas sedas aí vão,
quantos colarinhos.
São pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos.


Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.

António Aleixo (1899-1949)

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

FARAÓ, DEUSES- O EGIPTO



...Naquela específica estação de Peret, em que, desde então, já se passaram dez mil e cinquenta e nove estações, ocorreu um evento da mais alta importância para o meu país: um novo faraó chegava ao poder. Intitulou-se Amenhotep, O Quarto. E aqui se iniciam as minhas memórias muito particulares, aquelas mesmas que apenas existem na minha textura de pedra semi-preciosa.
Antes de se apresentar aos homens, o novo faraó deveria apresentar-se aos deuses. Sim, era conveniente. O faraó, se queria ter um reinado feliz, em que perspectivava vir a reinar com justiça e sabedoria, a fim de trazer a prosperidade ao seu povo, teria de se encontrar sempre em harmonia com os deuses, pois neles iria beber os conhecimentos que dele fariam um faraó amado por todo o Egipto.
A apresentação aos deuses era feita de forma extremamente secreta. O faraó, na condição de deus entre os homens, era o único homem à face da terra, que tinha a possibilidade de contactar, fisicamente, os seres divinos. Assim, numa noite dessa específica estação de Peret, o salão real de Amenhotep, O Quarto, recebeu a visita dos deuses preponderantes na vida egípcia: Aton, Amon-Rá, Nut, Geb, Osíris, Ísis, Hórus e Ánubis. Existia ainda um deus de que todos falavam, mas do qual apenas queriam distância- Seth, o deus maldito, o deus que apenas trazia confusão e caos. Por essa razão, Seth não se encontrava no salão real. Não é que o próprio não quisesse estar presente, pois Seth adoraria abençoar o novo faraó com a sua maléfica sombra, mas tal não lhe era permitido pelo deus mais poderoso - Amon-Rá.
À luz de pequenos archotes, que iluminavam as paredes do palácio real, plenamente pintadas com ilustrações alusivas à relação existente entre o faraó e os deuses, estes iniciavam o novo rei no seu reinado, com a simbólica cerimónia da coroação do faraó, coroação essa efectuada por Amon-Rá, que na cabeça do novo faraó colocava a coroa dupla, simbolizando a união do Alto e do Baixo Egipto.
Amon-Rá, alto, bem entroncado, de cabelo loiro e olhos de um azul profundo, todo ele transmitindo energia, a própria energia do sol, envergando apenas uma leve túnica de azul celeste, pegando com ambas as mãos a coroa dupla, se aproximava do novo faraó, dizendo:
- A ti, Amenhotep, O Quarto na escala dinástica, te confiro os poderes de, nesta abençoada terra do Egipto, seres o meu representante, bem como dos restantes deuses, no mundo impuro dos homens. É teu dever e obrigação velares para que aos homens nunca falte o pão e a justiça. O pão, como símbolo da prosperidade e felicidade do povo por quem és responsável; a justiça, como garante da aplicação de todas as leis universais, ás quais tens acesso, para que a «maet» esteja sempre presente em cada dia do teu reinado. Apenas através dela conseguirás uma boa harmonia entre os homens, e como tal, entre ti e a sabedoria dos deuses a quem deves lealdade. Se tudo isto for legado do teu reinado, abençoado faraó serás.
E proferidas as palavras divinas, Amon-Rá colocou coroa dupla na cabeça do novo faraó. Este, vestindo uma túnica de um branco quase transparente, bordada a ouro, e tendo como adorno um enorme colar ao pescoço, feito de peças de marfim e pedras preciosas, que lhe cobria os ombros, parte das costas e do peito, levantou-se do seu trono, ajoelhou-se em frente de Amon-Rá e beijou-lhe as mãos. Seguidamente ergueu-se, dirigiu-se aos restantes deuses ali presentes, e um a um, pegou-lhes nas mãos, beijando-as também. Depois regressou ao seu trono e sentou-se. Olhou para todos os deuses que se encontravam na sua presença. Depois, fixando apenas o deus supremo- Amon-Rá, o novo faraó disse:
- Aqui me tens, divino e mestre Amon. O teu conhecimento e a tua vontade servirão de orientação para a minha conduta. O meu reinado irá representar a tua verdade. Que Horus me auxilie em tão enorme tarefa.
- Horus, o rei solicitou o teu auxílio. Tens algo a responder-lhe ?- perguntou Amon-Rá ao deus Horus, ali presente.
- Pelas atribuições designadas pelo concelho de Massiftonrá, cabe-me velar pela integridade moral, ética e intelectual de todos os reis, que no Egipto reinem. Amenhotep, O Quarto, podes ter a certeza de que sempre estarei atento à tua conduta, não só como rei, mas também como homem. O meu auxílio será prestado sempre que necessário; para isso bastará ao rei solicitar-mo.
- Já és faraó- disse Amon-Rá, dirigindo-se ao novo rei- reina com amor, sabedoria e justiça. Se assim o fizeres, terás ajudado a que o Egipto seja o Império dos Impérios. Toma por exemplo todo o trabalho desenvolvido pelo teu ancestral Menés, faraó a quem deves a coroa que usas neste momento. E lembra-te Amenhotep, O Quarto, não julgues que é pelo simples facto de seres coroado faraó que ganhas o estatuto de deus na terra. Chegaste a faraó por herança, mas para chegares a representante dos deuses na terra, tens de mostrar que o mereces. Os homens consideram-te o representante dos deuses no seu seio, mas nós, que somos os deuses, poderemos não ser dessa opinião. Por isso te abençoou-o e te revelo a minha confiança em ti. Em relação ao culto a que a mim farás, determino que o sumo-sacerdote do Templo de Tebas, ao deus Amon-Rá, continue a ser Masahemba.
- E porquê esse Masahemba?- perguntou o faraó.
- Amenhotep, O Quarto, a palavra de um deus não é para ser questionada - disse o deus Hórus.
- Perdão- retorquiu o jovem faraó, baixando o olhar.
- A tua interpelação não foi maldosa, eu sei. Apenas curiosidade- disse Amon-Rá em tom paternal- mas eu não quero que no trono do Egipto esteja um faraó, em cuja mente possa existir uma minúscula semente, que seja, de dúvidas. Por isso te respondo. Masahemba é filho de um homem que veio de um reino do sul, trabalhar para o Egipto. Esse homem dedicou-me toda a sua vida, a ponto de a perder, quando numa discussão, esbirros de Seth desonraram o meu nome. Já no Rio dos Mortos, em domínios de Osíris e Ánubis, eu prometi a esse homem que lhe protegeria o filho- Masahemba. O meu Sumo- Sacerdote não é egípcio, mas o seu bem estar tornou-se no juramento de um deus- o meu juramento; por essa razão Masahemba, enquanto for vivo e tiver forças para o fazer, será o meu Sumo- Sacerdote e um egípcio da mais alta estirpe. É esta a minha vontade. Nós, deuses, também temos destas coisas. Faraó Amenhotep, O Quarto, que a próxima estação de Shemu te seja extremamente favorável. Seria um óptimo sinal iniciares o teu reinado com colheitas abundantes...(em continuação- pág. 6)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A AMETISTA



Sou uma pedra. Tal afirmação parece ser uma estupidez, mas não é. É que eu sou mesmo uma pedra! É claro que não sou uma pedra qualquer; nem tão pouco sou apenas uma pedra especial. Sou muito, mas muito mais do que isso. Começo por ser uma pedra semi-preciosa, mas não é a semi-preciosidade que me transmite este carácter tão peculiar. As pedras não têm o dom da memória e da comunicação; no entanto eu tenho memória, uma longa memória, e como se está a ver, consigo comunicar. Assim fossem todas as pedras e a história do mundo seria muito rica e completa. Se todas as pedras tivessem memória e pudessem comunicar as suas recordações, cada templo, cada monumento, transformar-se-iam num relato vivo das vidas humanas e dos acontecimentos importantes ou não, que se escondem na mudez das pedras de que são feitos os templos e os monumentos.
Eu tenho memória, e na minha textura, encerro a memória de um homem a quem eu acompanhei pela profundidade dos tempos. Esse homem foi a causa da minha existência; por tal razão o protegi.
Estou a escrever em português, mas a minha língua original é muito, muito diferente desta. É verdade, tenho também a capacidade de ser poliglota. Por tudo isto imagine-se o incomensurável poder do meu criador- conseguir dar vida e identidade a um elemento, ainda que semi-valioso, não passa, no entanto, de um elemento inerte.
Espreguiço-me de tanta inactividade. Fui criada há dez mil e cinquenta e nove estações, tendo passado a esmagadora maioria delas apenas observando. Bem, quando me refiro a inactividade, refiro-me à física, pois no que concerne à actividade mental e intelectual, tenho sido uma moira de trabalho. Observei, interpretei, interiorizei e compreendi todo o ambiente que me rodeia; por outras palavras, acrescentei ás memórias da minha própria identidade as recordações históricas que pertencem ao chão onde me depositei há dez mil e trinta e oito estações, ou seja, vinte e uma estações depois de ter sido criada.
A memória das minhas origens é fértil em beleza, capacidade criativa, inteligência, amizade, amor e magia; mas também tem o seu lado sórdido: a inveja, a cobiça e a maldade. E no meio de tudo isso, existem acontecimentos de que os homens de hoje em dia são sabedores, mas também existem os acontecimentos que tiveram lugar paralelamente aos anteriores, que apenas são substância na estrutura fria de mim própria; e são os acontecimentos, vizinhos dos que constam na história universal, que constituem a minha memória. E só em mim existem; escusam de os procurar nas vossas enciclopédias, porque lá não os encontram. Tal é a força do meu ser!

O primeiro momento destas minhas recordações, tem início precisamente há dez mil e cinquenta e nove estações, em plena estação de Peret, quando as águas do rio Nilo regressavam ao seu leito. Mais uma estação das cheias que terminava. Como sempre acontecia, era a época em que os «felas», nome dado aos camponeses do Egipto, iniciavam as sementeiras. As terras estavam moles pela saturação de água do rio Nilo, e impregnadas de sedimentos que o rio nelas depositara, tornando-as extremamente férteis. Era uma imensa azáfama. Os homens, de tronco nu, apenas envergando um saiote de linho, que lhes rodeava a cintura, curvados sobre a terra amiga, manuseando as suas alfaias. Eram milhares e milhares, que se iam distribuindo pelas margens do Nilo, rodeados sempre por exóticas palmeiras e tamareiras, próprias dos climas tropicais. Ali residia uma das grandes riquezas do Egipto- a sua agricultura.
É verdade, eu sou egípcia; é sobre o Egipto que vos quero falar, que convosco quero partilhar as recordações daquele meu país distante, geograficamente falando, mas muito mais distante no tempo...(em continuação, pág. 3)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

LARANJAS AMARGAS EM OLIVENÇA

Da minha consulta ao médico galego a que fiz menção no tópico «sopram bons ventos da Galiza», ficou-me o espanto que ele denotou pelo facto dos seus amigos portugueses não demonstrarem qualquer interesse pela questão de Olivença. No entanto, isso não quer dizer que todos os portugueses assim procedam. Ainda hoje Olivença é assunto de conversa em Portugal; ainda hoje é fonte de algum azedume em relação a Espanha, muito embora o governo português considere que Olivença é folclore. Possivelmente é pelo facto de folclorizarmos questões internacionais, que fomos empurrados para a cauda da Europa e de lá não saímos. Ganhámos gosto à «lanterna vermelha» e não há quem nos consiga fazer sentir que estar-se sempre no fim do comboio pode não ser grande ideia. E se porventura alguém surge com um pouco mais de iluminação, é um «bota-abaixismo» que é de fugir.
Corria o ano de 1792 quando a revolução francesa decapitou o rei Luís XVI. Este acto pôs em polvorosa as grandes potências monárquicas europeias, que em uníssono decidiram fazer guerra à jovem república francesa. Nesse sentido a Península Ibérica comungou do sentimento de afronta, pelo que Portugal e Espanha enviaram os seus exércitos para combaterem a barbárie francesa, na que ficou conhecida como a Campanha do Rossilhão...que correu muito mal para espanhóis e portugueses. Durante os três anos seguintes, as batalhas que então aconteceram tiveram sempre como derrotados os Ibéricos.
E porque nessa altura já estava instituída a nacional pasmaceira, o ministro e general espanhol Manuel de Godoy, ao serviço se Suas Majestades os reis espanhóis Carlos V e a rainha Maria Luisa,assinou, em segredo, a paz com os franceses, em 1795, através do Tratado de Basileia. Em resultado desse tratado, o ingénuo governo português viu-se a braços com um gravíssimo problema: estava sózinho em guerra com a França. Portugal tudo fez para fazer a paz, mas Napoleão Bonaparte determinou que a paz apenas seria possível com uma condição: Portugal deveria fechar os seus portos a todos os navios ingleses, exigência que, pela aliança de séculos, era impraticável e foi-o.
Mas que grande Rossilhão arranjámos! A França manteve-se como potência inimiga de Portugal, e vendo que a Inglaterra continuava, impávida e serena, a utilizar os nossos portos, fez com que a Espanha nos invadisse. E assim, Godoy, à frente do exército espanhol, em Maio de 1801, entrou em Portugal pelo Alentejo, tomando algumas localidades, entre elas Olivença. Essa invasão foi plenamente pacífica. Mesmo sem o recurso às armas, Portugal deixava-se invadir. Tempos viriam, que não tardariam, em que os portugueses se iriam tornar em exímios soldados. Espanha fez uma invasão pacífica, porque os reis espanhóis eram pais da rainha portuguesa, à época D. Carlota Joaquina. Manuel Godoy, em demonstração da sua pacifica conquista e lealdade para com os seus soberanos, enviou à coroa de Espanha um ramo de laranjeira, cortado de uma laranjeira alentejana. Esse acto apelidou essa guerra como a guerra das laranjas. Assim ficou conhecida para a história.
Em Junho desse ano de 1801 foi assinada a paz entre os dois países ibéricos, no Tratado de Badajoz, com a obrigação de Portugal fechar os seus portos aos navios ingleses, obrigando-se Espanha a entregar todas as localidades tomadas. Portugal continuou a não fechar os portos aos ingleses e Espanha entregou todas as localidades tomadas, excepto Olivença. Não contente com isso, poucos anos depois uniu-se aos franceses no decurso das invasões francesas a Portugal.
Em 1808, o general inglês Beresford entrou em Olivença, à frente de tropas portuguesas, reconquistando a cidade para a bandeira portuguesa, mas, incompreensivelmente, entregou-a à administração espanhola. Já nessa altura a corte portuguesa se encontrava no Brasil.
Poucos anos depois Napoleão foi, finalmente, derrotado, pelo que capitulou no Tratado de Viena. Nesse Tratado foi reconhecida a nulidade do Tratado de Badajoz, pelo que Olivença deveria ser entregue a Portugal, o que não aconteceu. Por essa altura, Portugal tomou Montevideu, pretendendo com essa conquista fazer uma moeda de troca- Montevideu por Olivença. Aconteceu então a independência do Brasil e Portugal deixou de ser a potência dominante naquela zona do mundo. Naturalmente Montevideu regressou à posse de Espanha...adeus Olivença.
Olivença, hoje Olivenza, conta uma história apenas portuguesa, bem patente nos seus monumentos: um castelo eregido por D. Dinis, uma torre mandada construir por D. João II, o palácio do Conde de Olivença, Rui de Melo, que ostenta um magnífico portal carregado de símbolos portugueses- a Cruz de Cristo, Esferas Armilares e as Cinco Quinas, a Igreja de Santa Maria Madalena, construída por Frei Henrique de Coimbra, o prelado que disse a primeira missa em terras de Santa Cruz. Guarda-se o Foral Manuelino datado de 1510.
Dizemos que o tempo tudo resolve. A experiência diz-nos que esta expressão é muito verdadeira. Se assim é, em relação a Olivença, o tempo já resolveu.
Mas a história, que muito se traduz no que as pedras nos têm para contar, continua a dizer-nos que o que o tempo resolveu, resolveu-o mal.
O meu médico galego disse-me que a língua portuguesa é proibida em Olivença. Se assim for, percebe-se bem porquê.
Quando o corpo não fala a língua da alma, corre-se o risco de perigosas incompatibilidades.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

ENTRE LOBITO E AVEIRO SE CONTA UMA AMIZADE

...- Dos três filhos do meu irmão, o Narciso è o sobrinho por quem nutro menos simpatia, isso è certo. De certa forma a opinião que tenho dele vai de encontro à descrição que tu dele fizeste. Acho-o pouco simpático, muito exibicionista e demasiado convencido. Resumindo, deve muito à boa educação. Mas de forma alguma responsabilizo o meu irmão por isso. Aos seus três filhos ele deu, por igual, uma boa educação. Mas as pessoas não são todas iguais. Os filhos são uma fonte de alegrias, mas também podem criar grandes problemas aos pais.
- Onde estão os filhos da senhora?
- Eu não tive filhos meu caro jovem. Deus não me concedeu essa graça- disse a senhora tristemente.
- Foi pena, porque a senhora D. Silvina teria dado uma excelente mãe.
- Porque dizes isso? Tu não me conheces.
- Habituei-me a viver com um sexto sentido, que me informa sempre quem são as boas e as más pessoas. E para fazer essa distinção não preciso de muito tempo. A senhora è uma óptima pessoa.
D. Silvina sentada no sofá, com as mãos sobre as pernas, sorriu levemente. Quando ia falar, foi interrompida pela entrada do criado negro. Armando segurava um enorme tabuleiro, onde transportava um bule, duas chávenas e um prato repleto de convidativos bolos secos. Ao colocar o tabuleiro numa pequena mesa, feita também de pau preto, situada entre a patroa e Serôdio, D. Silvina disse:
- Sabes Armando, este jovem veio-me avisar de que o meu sobrinho Narciso se prepara para esta noite vir assaltar esta casa, na companhia de mais três rapazes.
- Senhora, isso não pode ser verdade.
- E porque não?- perguntou D. Silvina.
- Porque eu nunca conheci ninguém que fosse roubar a própria família.
- Isso não è razão para não dar crédito ao que este jovem veio cá dizer. Infelizmente há por ai muitos casos desses.
- O menino Narciso è mau, mas acho que não faz isso à tia dele.
- Porque è que tu dizes que ele è mau, Armando?
- Porque ele trata-me sem respeito nenhum, por eu ser preto.
- Eu nunca me apercebi disso- disse a senhora.
- Pois não, porque trata-me mal e chama-me nomes só quando a senhora está longe.
- Já me devias ter contado isso.
- E ir aborrecer a senhora? Nem sei porque è que eu disse isto agora.
- Come jovem- disse D. Silvina, dirigindo-se a Serôdio- está à tua vontade. Podes-me repetir o teu nome?
- Chamo-me Serôdio.
- Serôdio? È fora do vulgar.
- Sim, não se vêem muitos- respondeu o rapaz.
- Agora não sei que medidas hei-de eu tomar para prevenir a minha segurança, numa hipotética situação como essa.
- A senhora chama a policia- disse Armando.
- Policia? Não! Caso esta história esquisita se venha a tornar realidade, eu não posso fazer isso ao meu irmão. Mandar o seu filho para a prisão, Deus me livre.
- Eu compreendo- disse Serôdio depois de beber um pouco de chá e de já ter comido dois bolos- mas como se irá sentir o seu irmão se o Narciso vier a fazer algum mal à senhora?
- Antes de fazer mal à senhora ele tem de passar por mim. As catanas ainda...
- Armando, proíbo-te de teres pensamentos violentos. Se ele cá vier tudo se há-de resolver.
- Se a senhora D. Silvina não se importar, eu posso cá pernoitar. Ficamos os três acordados, com as luzes apagadas. Se eles entrarem, acendemos as luzes e recebêmo-los.
- E os teus pais não se importam que chegues tarde a casa?
- Eu telefono-lhes. Eles compreenderão. Estão habituados a confiarem em mim- respondeu o rapaz sorrindo.
- Então assim seja. Jantas cá em casa e conversamos um pouco. Se nada acontecer tanto melhor. Não haverá razões para preocupações, e eu com certeza terei encontrado um amigo.
- Já encontrou D. Silvina, já encontrou- disse Serôdio com um expressivo sorriso a inundar-lhe o rosto.






O pai de Serôdio não ficara nada satisfeito ao saber que o filho se encontrava quase na qualidade de guardião de uma viúva. Mas como também achou aquela história um perfeito disparate, sem o mínimo de credibilidade, não insistiu para que o filho se viesse embora. Se tinha cabimento um sobrinho ir assaltar a tia! Uma imaginação fértil por parte dos rapazes, bem ao jeito das histórias do Robin dos Bosques… e uma viúva, que por certo se sentiu seduzida pela ideia de ter um jovem rapaz a velar por ela, eis no fundo ao que ficava confinada aquela questão. Mas servia este assunto para demonstrar a nobreza de carácter que o seu filho Serôdio possuía. Sim, porque o seu filho Serôdio no fundo estava plenamente convencido de que na realidade existia um ladrão, que naquela noite iria atacar a casa da viúva, onde o seu filho corajosamente o aguardava. Deixá-lo viver aquela fantasia! Era inofensiva e fortalecia-lhe o ego.
Entretanto na casa « Lobito de Benguela» o jantar decorrera magnificamente. O criado negro, Armando, cozinhara um suculento frango de caril. Serôdio achara a comida fortemente apaladada, com sabor africano. Bebera quase duas garrafas grandes de gasosa. Depois do jantar, o rapaz e a senhora de preto instalaram-se na sala africana. Ao fim de algumas horas de convívio, ela considerava Serôdio como uma pessoa muita amiga. No fundo do seu intimo, nascia a vontade de o adoptar como seu filho, um filho que ela nunca pudera ter.
- A senhora D. Silvina tem esta sala deslumbrantemente decorada- disse Serôdio.
- Mas olha que a decoração não è minha- disse D. Silvina tratando o rapaz por um tu muito mais cordial e afectuoso- eu vivi muitos anos em África, mas sempre abominei a selvajaria. Acho pouco cristão caçarem-se os bichos por mero desporto. Mas fui-me habituando. O meu falecido marido adorava tudo isso. Para a Metrópole foi enviando os trofeus de caça que ele considerava serem os mais bonitos. Numa casa que tenho perto de Vagos encontram-se lá muitos mais. Esta casa onde estamos, foi toda desenhada por ele. E esta sala, que è o salão nobre, decorou-a ao seu inteiro gosto. Depois da sua morte eu não toquei em nada, respeitando assim a sua vontade.
- Viveram então muitos anos em África?!
- Sim, mais propriamente em Angola. Fizemos quase toda a nossa vida no Lobito, por isso o nome da nossa casa. Casámo-nos na igreja pequenina que se encontra ao lado do Museu de Santa Joana, em 1944. Eu tinha vinte anos de idade. O Raúl era mais velho do que eu dois anos. Nessa altura era alferes da Academia. Quando rebentou a guerra em Angola, em 1961, o Raúl tinha sido recentemente promovido a major. Ele foi mobilizado e eu quis ir com ele. O meu marido gostou tanto daquela terra, que pediu ao Estado Maior para lhe prolongarem a comissão de serviço. Por lá ficamos até ao vinte cinco de Abril. Durante esses anos, muitos carregamentos o meu marido enviou para aqui. Hoje temos um grande espólio africano, que em muito enriquece o nosso património.
- Na sua opinião, senhora D. Silvina, caso o seu sobrinho aqui venha mesmo, o que terá ele em mente? Algo desse espólio?
- Não, dinheiro, apenas dinheiro- respondeu a senhora- tenho ainda o mau hábito de guardar uma certa quantia em casa, e o meu sobrinho Narciso sabe perfeitamente que guardo esse dinheiro num cofre que se encontra embutido na parede, por detrás daquele quadro- e apontou para um enorme quadro, onde indígenas se espalhavam por uma savana de África, de lança em riste, na caça a um leão, que no meio deles, de juba alvoroçada, tentava escapar ao cerco que lhe era montado- reparaste Serôdio, com que naturalidade eu te revelei a existência do cofre?
- Realmente, eu nem sei que diga...
- Não digas nada. Isto è sintoma de que confio em ti...(em continuação- pág. 23)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A LOBITO DE BENGUELA- UMA MIGALHA DE ÁFRICA

...- O jovem moço acompanhe-me- disse o criado negro sorrindo.
Quando ambos entraram no interior da casa, por momentos Serôdio perdeu-se nos motivos exóticos que se viam por toda a parte: eram peças de mobiliário em pau preto, desde magníficas estantes exibindo cenas em baixo relevo de uma qualquer mashamba, passando por belas estatuetas de arte indígena, que colocadas junto às paredes, contavam ao visitante histórias de Angola. Depois existiam ainda os soberbos troféus de caça. Logo à entrada uma cabeça de impala com a magnífica pelagem castanha e compridos chifres, dava as boas vindas a quem entrava. Ao fundo de um comprido corredor, o visitante deparava-se com uma enorme cabeça de búfalo africano, que com a armação de poderosos cornos e um olhar vítreo e feroz, fazia nascer um arrepio na espinha a quem pela primeira vez olhava para aquele troféu. Serôdio passou pela cabeça do búfalo, mas instintivamente desviou-se dela o mais que pôde.
Guiado pelo criado negro entrou finalmente num enorme salão. África inteira explodia ali. Por cima de uma lareira, uma portentosa e quase viva cabeça de leão vigiava todo o salão, ostentando as suas poderosas mandíbulas, cravejadas de arrepiantes e enormes dentes, e ainda uma imponente juba. Por toda aquela divisão eram visíveis ainda uma cabeça de javali africano, um suricata embalsamado, mantendo-se na vertical como se na realidade estivesse em posição de vigilância, dois enormes dentes de elefante, que se posicionavam cruzados, exibindo o branco sujo do marfim, e imensos artefactos africanos, desde alfaias agrícolas até armas de guerreiros tribais, tais como lanças e compridos escudos de couro forrados a pele de leopardo e de chita.
Maravilhado com tanto exotismo, Serôdio não dera pela presença da senhora vestida de negro. Ela, de imediato simpatizara com aquele moço. Alto, magro, olhos de um azul profundo, cabelo curto espetado de um loiro escuro, irradiava bondade e simpatia. Apercebendo-se de que ele não dera conta da sua presença, deixou-o deleitar-se um pouco com aquela fechada e silenciosa migalha de África. Depois perguntou:
- Aprecias motivos africanos?
Ao som daquela voz feminina, Serôdio caiu em si com um pequeno tremor.
- Desculpe-me minha senhora, não reparei que a senhora estava presente.
- Sim, eu notei isso. Chamo-me Silvina, Silvina Conde de Mendonça- disse a senhora estendendo a mão direita para um cumprimento.
- Eu chamo-me Serôdio Almeida César Velasques- disse o rapaz, retribuindo o cumprimento.
- Aprecias África?
- Sim, embora nunca lá tenha estado. Deve ser um continente maravilhoso. Segundo parece, serviu de berço à espécie humana. Estava longe de imaginar que houvesse em Aveiro um espaço com sabor tão forte a África.
- Todas estas peças são memórias do meu falecido marido. Tomas qualquer coisa?
- Não... muito obrigado...
- Talvez um chá e uns bolinhos secos?
- Bem, se não for incómodo...- retorquiu Serôdio, cujo vazio do estômago não deixou que recusasse tal oferta.
- Não è incómodo nenhum- depois a senhora dirigiu-se ao criado negro dizendo- Armando, vai fazer um chá preto e traz também um tabuleiro de bolos de mel.
- Sim senhora, è só um momento- disse o criado negro abandonando a sala.
- O Armando è outra recordação de África- disse a senhora quando o criado abandonou a sala- è quase uma herança. Começou a servir-nos em 1963, tinha ele treze anos apenas. Quando se deu o 25 de Abril, o meu marido quis trazê-lo. Fiel como o Armando foi a um militar colonialista, o meu marido temeu pela sua vida.
- O marido da senhora foi militar?
- Sim, era o coronel Silva Mendonça. Morreu há um ano. Um antigo ferimento de guerra, que nunca se curou definitivamente, degenerou e matou-o. Mas não falemos disso. Qual è a razão que te fez vir conversar com uma velha viúva? Já sei que és colega do meu sobrinho Narciso. È algo relacionado com ele?
- Bem, senhora D. Silvina... não sei se será um disparate o que eu vou dizer- começou o rapaz, falando pouco à vontade- efectivamente o que me traz aqui è algo que se relaciona com o Narciso.
- Muito bem. E também se relaciona comigo?
- Sim, a senhora está envolvida.
- Mas em que mistério me terá envolvido o meu sobrinho?! Nós quase não nos vemos. E eu tenho a impressão de que ele não morre de amores por mim- disse a senhora com um ligeiro sorriso nos lábios.
- Também me parece que não.
- O que te leva a dizer isso?
- Bom, esta manhã um colega meu ouviu uma conversa entre o Narciso e o grupo dele. Combinavam vir assaltar a casa da senhora esta noite.
- O quê?! O meu próprio sobrinho vir assaltar a minha casa? Isso è um perfeito disparate.
- Pois... eu também achei que talvez fosse disparate... mas...
- Diz-me uma coisa meu caro jovem, o que te leva a supor que o meu sobrinho seja capaz de cometer um acto desses?
- Minha senhora, desculpe-me. Eu já estou arrependido de cá ter vindo, mas preocupei-me com a senhora...
- Mesmo sem me conheceres?
- Sim, porque mesmo não a conhecendo, senti que alguém podia estar em perigo. E se amanhã eu viesse a saber que algo tinha acontecido aqui? Eu não iria ficar bem com a minha consciência, pois nada fizera para evitar o que quer que fosse.
- Compreendo. Mas não respondeste à minha pergunta. Quais as razões que te induzem a pensares que o meu sobrinho Narciso seja capaz de tal acto?
- Na turma ninguém gosta dele, excepto três rapazes que com ele formam um grupo. Eles exigem que as raparigas trabalhem por eles. Permanentemente exibem uma postura agressiva, sempre prontos para a violência. Não respeitam quem quer que seja. São uns autênticos rufiões. E depois, o meu colega que ouviu a conversa, não conhecendo a senhora, nem esta casa, disse-me que a senhora vive aqui apenas na companhia de um criado negro.
- Caramba, esse teu tal colega disse-te isso?
- È verdade, ouviu-o da boca do seu sobrinho, D. Silvina.
- E tu ao veres o Armando consideraste como provada a veracidade dessa história, è isso?
- È isso mesmo minha senhora...(em continuação- pág. 19)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003