segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A LOBITO DE BENGUELA- UMA MIGALHA DE ÁFRICA

...- O jovem moço acompanhe-me- disse o criado negro sorrindo.
Quando ambos entraram no interior da casa, por momentos Serôdio perdeu-se nos motivos exóticos que se viam por toda a parte: eram peças de mobiliário em pau preto, desde magníficas estantes exibindo cenas em baixo relevo de uma qualquer mashamba, passando por belas estatuetas de arte indígena, que colocadas junto às paredes, contavam ao visitante histórias de Angola. Depois existiam ainda os soberbos troféus de caça. Logo à entrada uma cabeça de impala com a magnífica pelagem castanha e compridos chifres, dava as boas vindas a quem entrava. Ao fundo de um comprido corredor, o visitante deparava-se com uma enorme cabeça de búfalo africano, que com a armação de poderosos cornos e um olhar vítreo e feroz, fazia nascer um arrepio na espinha a quem pela primeira vez olhava para aquele troféu. Serôdio passou pela cabeça do búfalo, mas instintivamente desviou-se dela o mais que pôde.
Guiado pelo criado negro entrou finalmente num enorme salão. África inteira explodia ali. Por cima de uma lareira, uma portentosa e quase viva cabeça de leão vigiava todo o salão, ostentando as suas poderosas mandíbulas, cravejadas de arrepiantes e enormes dentes, e ainda uma imponente juba. Por toda aquela divisão eram visíveis ainda uma cabeça de javali africano, um suricata embalsamado, mantendo-se na vertical como se na realidade estivesse em posição de vigilância, dois enormes dentes de elefante, que se posicionavam cruzados, exibindo o branco sujo do marfim, e imensos artefactos africanos, desde alfaias agrícolas até armas de guerreiros tribais, tais como lanças e compridos escudos de couro forrados a pele de leopardo e de chita.
Maravilhado com tanto exotismo, Serôdio não dera pela presença da senhora vestida de negro. Ela, de imediato simpatizara com aquele moço. Alto, magro, olhos de um azul profundo, cabelo curto espetado de um loiro escuro, irradiava bondade e simpatia. Apercebendo-se de que ele não dera conta da sua presença, deixou-o deleitar-se um pouco com aquela fechada e silenciosa migalha de África. Depois perguntou:
- Aprecias motivos africanos?
Ao som daquela voz feminina, Serôdio caiu em si com um pequeno tremor.
- Desculpe-me minha senhora, não reparei que a senhora estava presente.
- Sim, eu notei isso. Chamo-me Silvina, Silvina Conde de Mendonça- disse a senhora estendendo a mão direita para um cumprimento.
- Eu chamo-me Serôdio Almeida César Velasques- disse o rapaz, retribuindo o cumprimento.
- Aprecias África?
- Sim, embora nunca lá tenha estado. Deve ser um continente maravilhoso. Segundo parece, serviu de berço à espécie humana. Estava longe de imaginar que houvesse em Aveiro um espaço com sabor tão forte a África.
- Todas estas peças são memórias do meu falecido marido. Tomas qualquer coisa?
- Não... muito obrigado...
- Talvez um chá e uns bolinhos secos?
- Bem, se não for incómodo...- retorquiu Serôdio, cujo vazio do estômago não deixou que recusasse tal oferta.
- Não è incómodo nenhum- depois a senhora dirigiu-se ao criado negro dizendo- Armando, vai fazer um chá preto e traz também um tabuleiro de bolos de mel.
- Sim senhora, è só um momento- disse o criado negro abandonando a sala.
- O Armando è outra recordação de África- disse a senhora quando o criado abandonou a sala- è quase uma herança. Começou a servir-nos em 1963, tinha ele treze anos apenas. Quando se deu o 25 de Abril, o meu marido quis trazê-lo. Fiel como o Armando foi a um militar colonialista, o meu marido temeu pela sua vida.
- O marido da senhora foi militar?
- Sim, era o coronel Silva Mendonça. Morreu há um ano. Um antigo ferimento de guerra, que nunca se curou definitivamente, degenerou e matou-o. Mas não falemos disso. Qual è a razão que te fez vir conversar com uma velha viúva? Já sei que és colega do meu sobrinho Narciso. È algo relacionado com ele?
- Bem, senhora D. Silvina... não sei se será um disparate o que eu vou dizer- começou o rapaz, falando pouco à vontade- efectivamente o que me traz aqui è algo que se relaciona com o Narciso.
- Muito bem. E também se relaciona comigo?
- Sim, a senhora está envolvida.
- Mas em que mistério me terá envolvido o meu sobrinho?! Nós quase não nos vemos. E eu tenho a impressão de que ele não morre de amores por mim- disse a senhora com um ligeiro sorriso nos lábios.
- Também me parece que não.
- O que te leva a dizer isso?
- Bom, esta manhã um colega meu ouviu uma conversa entre o Narciso e o grupo dele. Combinavam vir assaltar a casa da senhora esta noite.
- O quê?! O meu próprio sobrinho vir assaltar a minha casa? Isso è um perfeito disparate.
- Pois... eu também achei que talvez fosse disparate... mas...
- Diz-me uma coisa meu caro jovem, o que te leva a supor que o meu sobrinho seja capaz de cometer um acto desses?
- Minha senhora, desculpe-me. Eu já estou arrependido de cá ter vindo, mas preocupei-me com a senhora...
- Mesmo sem me conheceres?
- Sim, porque mesmo não a conhecendo, senti que alguém podia estar em perigo. E se amanhã eu viesse a saber que algo tinha acontecido aqui? Eu não iria ficar bem com a minha consciência, pois nada fizera para evitar o que quer que fosse.
- Compreendo. Mas não respondeste à minha pergunta. Quais as razões que te induzem a pensares que o meu sobrinho Narciso seja capaz de tal acto?
- Na turma ninguém gosta dele, excepto três rapazes que com ele formam um grupo. Eles exigem que as raparigas trabalhem por eles. Permanentemente exibem uma postura agressiva, sempre prontos para a violência. Não respeitam quem quer que seja. São uns autênticos rufiões. E depois, o meu colega que ouviu a conversa, não conhecendo a senhora, nem esta casa, disse-me que a senhora vive aqui apenas na companhia de um criado negro.
- Caramba, esse teu tal colega disse-te isso?
- È verdade, ouviu-o da boca do seu sobrinho, D. Silvina.
- E tu ao veres o Armando consideraste como provada a veracidade dessa história, è isso?
- È isso mesmo minha senhora...(em continuação- pág. 19)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

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