quinta-feira, 19 de novembro de 2009

QUANDO AO PEQUENO ALMOÇO SE SERVE...PAIXÃO

...Com a chegada do novo ano, o de 1922, as ocupações profissionais de Américo Afonso tomaram um novo rumo. Um caso em que ele trabalhava adquiriu subitamente contornos que exigiram de Américo um maior dispêndio de tempo. Teria realmente a matéria do facto sofrido alterações ou, pelo contrário, não teria sido antes o advogado a sofrer modificações? Teria a certeza do amor de Luísa influenciado a perspicácia de Américo? Teria ele ganhado maior profundidade na sua pesquisa? É possível que sim. A serenidade de espírito transformou-o num advogado mais eficiente. Por isso a sua alegria no trabalho era muito maior. E por tudo isto, passava menos tempo em casa.
Já se estava em Fevereiro de 1922. Sobre aquela transformadora noite de Natal se haviam passado dois meses. Mas o romance de Luísa e Américo parara à porta da casa do oleiro. Nem mais um passo os dois avançaram. Tendo aberto os corações um ao outro, alimentavam a paixão com olhares breves mas intensos. Era o silêncio amordaçado de duas bocas... que falavam sem palavras. Ocasionalmente se encontravam. Mas em cada dia que passava, para Américo e Luísa existiam dois momentos de verdadeira expectativa e delícia: para ela, quando de manhã arrumava o quarto ocupado por ele durante a noite. Para ele, quando à noite ocupava o quarto arrumado por ela durante o dia. E por estes momentos solitários, mas arrebatadamente vividos, se foram espraiando os dias.
Numa radiosa manhã de Março Luísa dirigiu-se bem cedo, como sempre, para a Casa das Leis. Ao entrar deparou-se com D. Vitoriana e o Doutor Sebastião Afonso, prontos para saírem.
- Bom dia Luísa - disse D. Vitoriana.
- Bom dia minha senhora.
- Estás admirada de nos veres prontos para sair, não é?
- Realmente estou - respondeu Luísa.
- Pois é. Eu e o senhor Doutor Sebastião temos de ir às Caldas da Rainha tratar de assuntos. Só voltaremos à noitinha. Por isso, tu em arrumando os quartos podes ir embora.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana.
- O meu filho ainda dorme. Esteve até tarde a trabalhar no escritório. Mas não deve almoçar em casa.
Luísa sentiu então o seu coração bater mais forte. Sem o saber, pela segunda vez, D. Vitoriana dava oportunidade a que Américo Afonso e Luísa se encontrassem.
Finalmente os patrões saíram. Dois meses de reflexões sobre a sua condição de mulher jovem, viúva e de novo apaixonada, conscientemente apaixonada, desinibiram-na relativamente à relação com Américo Afonso, a qual no seio de intensos fogos silenciosos que consumiam o seu ser, tentava florescer. Ela voltava a não ter controle sobre si mesma. Na ânsia de não fazer barulho, logo bateu com um pé na perna de uma cadeira, fazendo com que aquela fizesse barulho ao cair. Rasgou o pleno silêncio em que a casa ficara mergulhada, depois da saída dos patrões, dando a sensação a Luísa de que a queda da cadeira ecoara por toda a casa, parecendo-lhe que quase fizera estremecer as paredes. Américo estava ali. Luísa foi arrumar o quarto dos patrões. Passou pela porta do quarto de Américo. Parecia que tinha íman, tal era a força atractiva que a puxava para ali. Depois do quarto arrumado, passou pelo escritório. Arrumou a papelada o melhor que pôde. Embora não soubesse ler, demorou os olhos nos rabiscos feitos por Américo. Não pôde esperar mais. Ele tinha de saber que ambos estavam sozinhos. E que melhor maneira havia do que levar-lhe o pequeno almoço ao quarto?
Como todos os dias, só com a diferença de que naquele momento ia muito mais apressada, foi à padaria comprar pão fresco e à leitaria o costumeiro litro de leite. Ao reentrar em casa, tudo se mantinha em silêncio. Na cozinha preparou um lindo tabuleiro forrado com uma pequena toalha de linho. Nele colocou uma chávena com um pires, dois bules, um de café e outro de leite, dois pães, um açucareiro, uma bonita colher de prata e dois potes, um com manteiga e outro com compota de pêssego. Aquele tabuleiro estava um regalo. Olhá-lo abria de imediato o apetite ao pequeno-almoço.
A Casa das Leis era bastante grande. No andar térreo encontravam-se a cozinha, um grande espaço que servia de antecâmara de acesso à casa, onde se tinha desenrolado a patética cena entre Luísa e Américo Afonso, momentos antes de iniciarem a histórica jornada até casa de Luísa, na anterior noite de Natal, o escritório do Doutor Sebastião e a sala de jantar. Através de umas largas escadas se subia ao primeiro andar onde se situavam os quartos dos hóspedes e dos residentes, e o escritório de Américo Afonso. Todas as divisões possuíam generosas janelas que davam uma forte luminosidade a toda a casa.
Luísa segurando o magnífico tabuleiro subiu as escadas e dirigiu-se ao quarto de Américo. Bateu levemente. Não obteve resposta. Bateu de novo. Continuava o silêncio. Insistiu com mais força, equilibrando o tabuleiro numa só mão. Finalmente uma voz roufenha disse:
- Minha mãe, que quer?
- Não é a sua mãe, seu mandrião. - De dentro do quarto não se ouviu qualquer resposta. No entanto existia movimento. Ouviu-se um arrastar de chinelos. Luísa mantinha-se imóvel, com um leve sorriso nos lábios de deusa. A maçaneta da porta rodou e surgiu o rosto de Américo, com os olhos entreabertos, lutando contra a agressividade da luz matinal.
- És tu Luísa?
- Sou eu sim senhor. Vim trazer-lhe o pequeno-almoço. O Américo não tem fome?
- Eu... fome? Sim, sim, estou esfomeado - disse Américo ainda atónito.
- Américo, será que eu posso entrar? Este tabuleiro já pesa!
- Entrar? No meu quarto? Mas claro... pois... eu vou tomar o pequeno-almoço no quarto!!
Depois de Luísa ter entrado, Américo espreitou o exterior com ar intrigado. Estava admirado por a mãe ter mandado Luísa trazer-lhe o pequeno-almoço ao quarto.
- Estou admirado com a minha mãe. Mandar-te aqui com o pequeno-almoço?!
- Os seus pais não estão em casa. Foram às Caldas. Como sei que o Américo trabalhou até tarde, lembrei-me que talvez lhe fosse agradável tomar o pequeno-almoço no quarto. Fiz mal?
- Ò anjo da minha vida, como podes perguntar se fizeste mal?! Eu ainda não estou em mim. Além de nós, mais ninguém está em casa?
- Mais ninguém. O Américo tome o seu pequeno-almoço, que depois eu virei arrumar o quarto - disse Luísa enquanto abria as portinholas de madeira das janelas, que mantinham o quarto resguardado da luz solar.
- Não meu amor, talvez Deus não me torne a dar uma oportunidade como esta de te poder ter nos braços.
Luísa estava estática. Os seus grandes olhos fixavam os olhos de Américo Afonso. Os lábios entreabertos suplicavam por um beijo. Ele aproximou-se. Envolveu-a com os seus braços. Luísa não esboçou resistência. Américo Afonso aproximou os seus lábios dos dela, embrenhou-se nos seus longos e belos cabelos negros e o mundo reduziu-se ao espaço daquele quarto. O belo tabuleiro ficou abandonado, inútil. O café e o leite arrefeceram nos bules. Numa dança de corpos escaldantes, onde a roupa não tinha lugar, Luísa e Américo caminhavam no reino de Cupido. Tudo era belo e simples. Quanto mais conheciam daquele reino mais queriam conhecer. Percorreram todos aqueles caminhos até à exaustão. O mundo era perfeito...(em continuação- pág. 75)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

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