quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O CAMINHANTE

...Andava com passos sofridos e desalentados. O fardo da vida era enorme. Chegara a Lisboa havia dois meses, em Março último, no dia em que dois portugueses partiam de avião, numa viagem de aventura atravessando o Oceano Atlântico. Não se admirara com o avião. Já anteriormente vira alguns. Que onda de alegria varria a capital nesse dia. A vida era assim mesmo. Para uns a glória, para outros a humilhação, a tristeza. Saboreara um pouco a felicidade do povo lisboeta e logo de seguida metera pés ao caminho, por esse Portugal dentro. Dinheiro não tinha, por isso caminhava. De vez em quando carroceiros aliviavam-lhe a caminhada, transportando-o por alguns quilómetros. Visitara o seu primeiro destino. Corria o ano de 1922. Como tudo mudara. Não tivera forças para alterar o percurso da vida, a vida de quem o amara. Ele não sabia até que ponto estaria à altura de voltar a ter uma vida normal. Na dúvida, preferiu deixar as coisas ficarem como estavam. As feridas da alma podem fazer desaparecer o tino a um homem.
Envergava umas calças amarelas muito largas e remendadas. Vestia uma camisa aos quadrados vermelhos e castanhos, com o colarinho e os punhos coçados. Por cima usava um casaco castanho de fazenda, com muitos anos. Calçava uns socos com falhas na madeira. Um chapéu preto com minúsculos rasgões completavam o traje. Estava cego do olho esquerdo, por isso usava uma venda. Tinha uma cicatriz muito pronunciada no rosto abundantemente barbado, que começava na sobrancelha esquerda, atravessava obliquamente o rosto e terminava junto à orelha direita. A tiracolo levava um bordão apoiado no ombro direito. Na ponta do bordão tinha atado um saco onde transportava os seus parcos haveres. Procurava trabalho. Encaminhava-se para o seu segundo destino - Alfeizerão. Finalmente lá chegara. As poucas pessoas que foi encontrando no caminho olhavam-no desconfiadas. Ele não se importava. De que outra maneira as pessoas se poderiam sentir ao verem um estranho, com uma tão estranha aparência?
Atravessou a pequena aldeia. Viu uma taberna aberta. Nela entrou. Que enorme pipa ali existia. Estavam dois homens encostados ao balcão de pau cru. Do lado interior do balcão encontrava-se o taberneiro.
- Santas tardes a todos - disse o caminhante.
- Santas tardes - responderam os três homens com ar desconfiado.
- Podem-me dizer se aqui é Alfeizerão? - perguntou o caminhante.
- É aqui mesmo - respondeu o taberneiro.
- Ponha-me aí um copo de três. A garganta está seca - disse o desconhecido.
- Tem dinheiro para pagar? - perguntou o taberneiro.
- Ainda vou tendo uns centavos.
- Quer tinto ou branco?
- Tinto, dá mais força ao sangue.
- Tiozinho, vem de muito longe? - perguntou um dos dois fregueses.
- Venho, venho de muito longe - respondeu o caminhante fixando o seu único olho no interlocutor - venho aqui a Alfeizerão para procurar trabalho. Ouvi dizer que existe aqui uma herdade valente, que está a precisar de braços para trabalhar.
- É verdade - respondeu o taberneiro.
- Quem é o dono? - perguntou o caminhante.
O taberneiro não respondeu. Fixou atentamente o caminhante, perplexo com a pergunta, sem alento para dar a resposta.
- O dono é o senhor Barreto Raposo - respondeu um dos fregueses.
O caminhante fixou o chão. Depois disse para o taberneiro:
- Qual é a sua graça?
- E porque razão quer saber?
- Eu espero ficar seu freguês, caso o senhor Barreto Raposo me dê trabalho, e mal ficará o freguês não saber o nome do homem que lhe vende o vinho - respondeu o caminhante.
- Pois seja. Chamo-me Chico Bento. E o seu nome qual é?
- O meu... eu lá sei se tenho nome. Chame-me o que quiser. Para que lado é a herdade?
- O tiozinho desce por essa estrada fora. Há-de passar junto a uma capelinha. Continue em frente que o caminho o há-de levar até lá. Logo verá um solar. Chama-se Vila de Ló - respondeu um dos fregueses.
- São todos cá de Alfeizerão? - perguntou o caminhante.
- Só eu sou de cá - respondeu o taberneiro - eles são do Bombarral.
- Bem me pareceu - respondeu o caminhante.
- Bem lhe pareceu? Alto lá com a conversa - disse um dos fregueses.
- Não se zangue. Não falei por mal. Também passei pelo Bombarral e achei que vocês falam à moda de lá. Mas incomodei-os com alguma coisa?
- Não, não - responderam os dois homens.
- Ainda bem. Vou então procurar a tal Vila de Ló. Tenho que ver se ganho algum dinheiro para o deixar na sua taberna, senhor Chico Bento. Vale a pena. A pinga é boa. Até mais ver.
Ti Chico Bento veio à porta ver o desconhecido afastar-se em direcção ao solar. Limpava as mãos a um pano cheio de nódoas de vinho. Aquele homem intrigara-o.
- É um pobre diabo - disse o taberneiro.
- Acha? Cá a mim aquela cicatriz diz-me que é sujeito de brigas, tal qual o mouro e o verruga.
- Não me pareceu - respondeu o taberneiro.
- Não sei se o fivelas o aceitará.
- Ora, ora, o fivelas quer é bons braços. As cicatrizes não o incomodam - respondeu Ti Chico Bento - mas aquele homem não há-de ser mau diabo...(em continuação- pág. 78)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

Sem comentários: