quarta-feira, 28 de abril de 2010

A MAET (ORDEM NATURAL DAS COISAS) POSTA EM CAUSA POR UMA RAINHA


...A sacerdotisa, ao ouvir aquelas palavras, por breves instantes susteve a respiração. Se bem interpretara as palavras do faraó, ele estava-lhe a dar a entender que a queria para sua rainha. Ela, rainha do Egipto?! Ela, uma humilde felas, que pela cor do seu cabelo fora escolhida por Amon-Rá para o servir como sacerdotisa, era agora alvo da atenção do faraó?! Isis decerto que intercedera junto de Amon, no sentido de a libertar dos votos de castidade, considerando que o seu corpo, sensual e esbelto, fora criado para ser fértil. Isis, a deusa do amor, da magia e da fertilidade, achava que o seu ventre estava predestinado a dar continuidade à linhagem dos faraós. Só assim se explicava o interesse que o jovem faraó estava a demonstrar por ela. Deixava de ser serva de Amon, para passá-lo a ser do descendente do grande faraó Menés. Ela, Nefertiti, rainha do Egipto!! Sim, o faraó a queria, o faraó a teria.
No seu entusiasmo, suscitado por estes pensamentos, esboçou o gesto de levantar o olhar para o faraó, mas logo desistiu dessa intenção. No entanto, tal vontade não passou despercebida ao rei. Por isso, Amenhotep, o quarto, postado atrás da sacerdotisa, tirou as mãos de cima dos seus ombros e disse:
- Levanta-te Nefertiti. Levanta-te e olha-me bem nos olhos.
A sacerdotisa obedeceu. Levantou-se com extrema elegância da sua posição de ajoelhada. Depois, virando-se lentamente, com os braços estendidos ao longo do corpo, ficou bem de frente para o faraó. Percebera bem qual o sentido das suas palavras. Tal sentido não lhe desagradava. Muito lentamente levantou os olhos; percorreu com o olhar o corpo do seu rei, até que o olhou bem nos olhos. O faraó estremeceu.
- Que bela rainha serás, Nefertiti. Deus nenhum poder terá para conseguir evitar que sejas rainha do Egipto. É essa a tua vontade?
- Divino senhor, perante tal proposta, o que pode responder uma humilde mulher, cujos horizontes não vão além das paredes de um templo?
- Mas responde-me, Nefertiti, serás rainha em corpo e sacerdotisa de Amon em alma?
- Não, divino senhor. Não é por acaso que és deus na terra. As tuas palavras estão cheias de sabedoria, e conseguiram fazer-me entender que o faraó, na qualidade de deus e também de homem, exerce supremacia ao direito de possuir uma mortal, relativamente a um outro deus, mesmo que esse deus seja Amon-Rá. Por essa razão, caso assim o desejes, serei a tua rainha, tanto no corpo como na alma.
- Então, Nefertiti, considera-te a próxima rainha do Egipto, a rainha do fogo, cuja beleza ensombra a grandiosidade da sagrada pirâmide. Vem, vamos embora.
- Mas, assim, sem mais nem menos?- perguntou Nefertiti, um pouco aflita.
- Assim mesmo! Os laços com o templo, cortados abruptamente, ficam definitivamente eliminados. Não vais ter uma abrupta mudança de condição? Pois então será assim mesmo.
E o faraó pegou em Nefertiti ao colo, e com ela bem presa nos seus braços fortes, saiu da sala de reflexão. Quando ambos se dirigiam para o imenso pórtico, foram surpreendidos por Masahemba, que, entretanto, saíra do tanque sagrado.
O Sumo-Sacerdote ao ver o faraó com a sacerdotisa ao colo, dirigindo-se ambos para o pórtico, estacou o passo… mas, o que era aquilo que os seus olhos viam?
Apanhado de surpresa, Masahemba teve um momento de hesitação. Com o olhar perscrutou toda a área que a sua vista alcançava, mas não divisava as outras duas sacerdotisas.
O faraó, alheio à presença do Sumo-Sacerdote, continuava a caminhar em direcção ao pórtico, transportando nos braços Nefertiti.
O Sumo-Sacerdote tinha de tomar uma atitude. O faraó não tinha o direito de proceder daquela forma, com uma sacerdotisa de Amon. Nefertiti estava abençoada por Amon-Rá; nenhum homem lhe poderia tocar; aquela atitude era uma terrível afronta ao deus dos deuses, e ele, na qualidade de seu Sumo-Sacerdote, tinha a obrigação de intervir. Por isso, saindo da sua súbita inércia, caminhou com passo apressado, dirigindo-se para o faraó. Rapidamente o alcançou, colocando-se à sua frente, obrigando assim o faraó a parar.
- Divino senhor, tens consciência do enorme erro que estás a cometer?
O faraó, fixando o Sumo-Sacerdote com uma expressão de tremenda raiva, os olhos faiscando de ódio, fez com que a sacerdotisa saísse do seu colo, e num movimento tremendamente rápido, esbofeteou violentamente o rosto de Masahemba, obrigando-o a dar dois passos atrás.
- Tu, estrangeiro, que ocupas o lugar que deveria pertencer a um egípcio, tiveste a ousadia de te atravessares à frente do faraó do Egipto. Agradece a Amon por a tua vida não terminar já aqui!
Masahemba manteve-se imperturbável. O rosto doía-lhe, mas fez questão de não denunciar a dor. Fixava o faraó Amenhotep, o quarto, e com suavidade disse:
- Divino senhor, eu zelo pela pureza deste templo. Fui escolhido pelo todo poderoso Amon-Rá para esta função…
- Nunca o deverias ter sido- interrompeu o faraó- o Sumo-Sacerdote de Amon deveria ser um egípcio. Tu és somente um capricho de Amon-Rá, o que de certa forma nada abona em favor da maet. Se Amon-Rá se deu ao direito de escolher para seu Sumo-Sacerdote um estrangeiro, eu, que sou o senhor supremo do Egipto, tenho também o direito de escolher para minha rainha uma sacerdotisa de Amon-Rá.
O Sumo-Sacerdote ficou lívido com tal revelação. Então, o erro era muito mais grave do que ele poderia imaginar. O faraó, ao eleger como rainha uma sacerdotisa de Amon, estava a provocar a ira do deus dos deuses.
- Divino senhor, roubas a sacerdotisa a Amon? E depois?
O faraó, instintivamente, levou a mão direita à cinta, onde geralmente transportava um punhal. Mas como fora ao templo, achara melhor não o levar, pois o templo de Amon era o local onde se procurava a paz e não a guerra. Afinal, com o surgimento de Nefertiti, aquele templo estava a ser tudo menos um local pacífico.
- Estrangeiro, chamaste de ladrão ao faraó do Egipto. Muitos homens, por muito menos, apenas por terem ousado olhar o faraó nos olhos, pagaram esse erro com a vida. Não morres já aqui, porque o gume do meu punhal achou não ser necessário acompanhar-me… pelo que se vê teve uma decisão errada. No entanto, a tua ofensa não será esquecida pelo faraó, sendo tu ou não Sumo-Sacerdote de Amon. Aconselho-te a que, a partir deste momento, aos meus ouvidos jamais volte a chegar o som dessa garganta, que se deveria estar a esvair em sangue. Toma nota, estrangeiro: olha pela última vez Nefertiti com as vestes e a postura de sacerdotisa, porque quando a voltares a ver, estarás a olhar para a rainha do Egipto, e aí deverás ter muito, mas muito cuidado, com a forma como a olhas.
E o faraó abalou. Nefertiti, de mão dada com o faraó, lançou ainda um olhar ao Sumo-Sacerdote, pelo que este percebeu perfeitamente que a sacerdotisa aceitara de muito bom grado a sua nova condição, a de rainha do Egipto.
O Sumo-Sacerdote não se mexeu. De costas para o pórtico, sentiu-os afastarem-se, ouviu Nefertiti dar uma gargalhada de prazer, apercebeu-se do pórtico a ser aberto e depois fechado.
No meio do imenso átrio, ali estava o Sumo-Sacerdote Masahemba, desalentado, com uma guerra prestes a rebentar-se-lhe nas mãos; mas não tinha alternativa. Amon-Rá deveria ser avisado o quanto antes do sucedido; por isso regressou ao tanque sagrado. Muitas horas haveriam de passar até que estivesse purificado, apto para enfrentar o tabernáculo. A cara ardia-lhe ainda pela acção da bofetada recebida; a impureza impregnava-o, suscitando no seu íntimo ímpetos de violência. Só com o espírito em paz poderia comunicar-se com Amon-Rá.
Entretanto apareceram as duas restantes sacerdotisas, que haviam estado escondidas. Masahemba ordenou-lhes que se recolhessem. Mais do que nunca o tanque sagrado, onde afluíam as águas do majestoso rio Nilo, servir-lhe-ia de bálsamo para as feridas abertas no seu amor próprio. Já se esquecera de que não era egípcio, e fora o faraó do Egipto que lho lembrara. Mas ser discípulo de Amon-Rá não seria garantia de que era um egípcio em toda a acepção da palavra? O faraó estava cego...(em continuação, pág. 24- ex. VIII)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sexta-feira, 23 de abril de 2010

NÓS, O POVO DO 25 DE ABRIL



MUITOS DE NÓS, QUE ALGURES NOS ENCONTRAMOS NO MEIO DA MULTIDÃO, QUE GRITA ATÉ À EXAUSTÃO POR IGUALDADE E FRATERNIDADE, FIZÉMO-LO NA ESPERANÇA DE QUE O NOSSO GRITO, FOSSE, DEFINITIVAMENTE, OUVIDO. FIZÉMO-LO ANSIANDO ESPERANÇOSAMENTE PELA CHEGADA DA DEMOCRACIA. 36 ANOS DEPOIS, NÓS, OS QUE NOS ENCONTRÁVAMOS NA MULTIDÃO, NO DIA 25 DE ABRIL DE 1974, SABEMOS HOJE, E SABÊMO-LO BEM, QUE A DEMOCRACIA É MUITO MAIS DO QUE LIBERDADE DE EXPRESSÃO. SE O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO, ONDE FALHÁMOS, POVO?
MAS, ABRIL SEMPRE!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

UM TRONO PARA UMA SACERDOTISA





...Apenas haviam passado três noites sobre a primeira estadia do faraó no templo de Amon-Rá, e já ele regressava. Tal visita surpreendeu, pela positiva, o Sumo-Sacerdote Masahemba. Era sinal de que o faraó se sentira bem no templo por si orientado.
Masahemba foi receber o faraó, como era seu dever, e com muita satisfação cumpria esta sua obrigação. Mas notou que o faraó não o encarava com um semblante de simpatia.
- Sumo-Sacerdote, tens preparadas as sacerdotisas para me acompanharem nas preces, tal como mostrei ser essa a minha vontade?
- As sacerdotisas estão sempre prontas para o culto ao tabernáculo, divino senhor- respondeu Masahemba.
- Pois muito bem, elas que me façam companhia na minha preparação para a oração.
- Não será conveniente, divino senhor, que esse trabalho seja feito em harmonia contigo mesmo, em isolamento?
- Não, Sumo-Sacerdote. Eu hoje preciso do apoio das sacerdotisas. Enquanto tu te vais preparar para o teu ritual de oração, eu reflectirei sobre quem sou, na companhia das três sacerdotisas.
- Se é essa a tua vontade, assim se fará, divino senhor.
Pouco tempo depois, o Sumo-Sacerdote Masahemba deixava o faraó na companhia das três sacerdotisas, na sala de reflexão, enquanto ele se dirigia ao tanque sagrado, onde se iria purificar.
Havia algo de estranho. O faraó, assim que entrara, mal encarado… diga-se, logo se quis dirigir para a sala de reflexão, exigindo de imediato a presença das sacerdotisas. Parecia que viera ao templo, não para orar, mas para despachar quanto antes algo que tinha de fazer. Bem profunda teria de ser a sua purificação naquele dia, pois os fluidos trazidos pelo faraó eram espessos e pegajosos.
No momento em que o Sumo-Sacerdote se dirigia para o tanque sagrado, encontrava-se o faraó com as três sacerdotisas na sala de reflexão. Vendo que Masahemba desaparecera, o faraó disse:
- Apenas quero ficar na companhia de Nefertiti. Vocês as duas retirem-se.
As duas restantes sacerdotisas nem pestanejaram. De cabeça baixa, em sinal de respeito e submissão, de imediato abandonaram aquela sala. Tiveram o ímpeto de irem avisar o Sumo-Sacerdote do que se estava a passar, mas não o podiam interromper, de forma alguma, enquanto ele estivesse a executar as suas abluções. Assim, resolveram aguardar no átrio pelo surgimento de Masahemba.
Na sala de reflexão, o faraó reflectia; mas o objectivo da sua reflexão não era encontrar-se consigo mesmo; bem pelo contrário, buscava a forma correcta de ir ao encontro da sacerdotisa Nefertiti, sem ofender a sua susceptibilidade de serva de Amon-Rá, mas ao mesmo tempo tentando despertar a mulher que existia nela.
A sacerdotisa estava ajoelhada no chão, de cabeça baixa e mãos postas junto aos joelhos. A sua túnica branca, de uma transparência perturbadora, fazia adivinhar as sedutoras formas do seu corpo, bem como os seus segredos.
De pé, em silêncio, o faraó admirava aquela mulher com cabelos cor do fogo. Nunca vira nada assim. Nefertiti nascera para ser rainha… havia de ser a sua rainha.
O faraó estava hesitante. Não sabia qual a forma correcta de iniciar a sua conversação. Mas, por Horus, ele era faraó! A sua mente superiorizava-se a qualquer mente de outro homem, no Egipto. Avançou para a sacerdotisa.
- Em que pensas, Nefertiti ?- perguntou o faraó.
- Eu não penso, divino senhor, eu oro.
- Então, por um momento, desliga-te dos deuses e presta atenção ao teu faraó, que é o teu deus na terra.
- Não posso, divino senhor. A minha vida é completamente canalizada para Amon.
- Falso Nefertit, isso é falso!- ripostou o faraó com alguma ira – acima de tudo és uma mulher; uma mulher que se predispôs a servir um deus, mas que nunca deixou de ser uma mulher. Diz-me Nefertiti, como te alimentas?
- Comendo, divino senhor- respondeu a sacerdotisa um pouco embaraçada.
- E que comes tu?- perguntou-lhe o faraó.
- Pão, aves, peixe…
- Ah, então tu alimentas-te com comida de gente!- disse o faraó com ironia- na tua alimentação vales-te dos recursos dos humanos. Não terá medo Amon-Rá de que sejas contaminada com alguma impureza, que venha nos alimentos, tal como o são, muitas vezes, os meros mortais? Se és um pertence divino, porque razão não te alimenta Amon-Rá com a sua própria comida?
- Divino senhor, diz-me onde foi que procedi mal, que de imediato me corrigirei.
- Desculpa Nefertiti, não percebi o que queres dizer com isso- disse o faraó com semblante de uma certa angústia, enquanto colocava as suas mãos nos ombros da sacerdotisa, que mantinha a cabeça baixa.
- Sinto ira nas tuas palavras, divino senhor. Estás zangado comigo e eu preciso de saber onde foi que errei, para corrigir o meu erro.
- Não Nefertiti, eu não estou zangado contigo; aliás, eu não conseguiria estar zangado contigo. Eu estou zangado com a convicção que te incutiram na mente, de que és propriedade de Amon-Rá. Sê-lo-ás em relação a todos os homens, mas não em relação ao faraó, não para Amenhotep, o quarto, que sou eu. Eu sou um deus feito homem, senhor do Alto e Baixo Egipto. Sei muito bem que és uma sacerdotisa! Conheço perfeitamente qual a tua função; mas essa função terminará, se for essa a vontade do teu faraó, pois que também ele é deus. Mas isso apenas ocorrerá se for esse o teu desejo.
- Divino senhor, nunca me foi dado saber que o faraó tivesse uma sacerdotisa.
- Não Nefertiti, o faraó não tem nenhuma sacerdotisa. Mas este faraó que te fala necessita de uma rainha...(em continuação, pág.19, ex. VII)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

sexta-feira, 16 de abril de 2010

FORMULAÇÃO DE UMA SENTENÇA

...O pai manteve-se por momentos em silêncio. Depois, levantando-se perguntou:
- Porque razão è que de repente te lembraste da tua tia Silvina, se estávamos tão longe dela?
- Acho que ela não gosta de mim.
- Sim, e porque não gosta de ti, vai-se informar ao liceu que tu frequentas sobre a tua conduta e depois vem fazer-me queixa. È isso que queres dizer Narciso?
- Pai, porque estás zangado comigo?
- Achas que eu tenho motivos para estar zangado contigo?
- Não, não acho.
- Óptimo. Então diz-me porque razão te lembraste da minha irmã.
- Pai, eu sempre achei que ela reprova a minha maneira de ser, e por esse motivo, mais cedo ou mais tarde, sempre senti que ela te viria encher os ouvidos a meu respeito.
- Sou então assim uma pessoa tão influenciável, que dê crédito a qualquer coisa de ruim, que me venham dizer sobre o meu filho Narciso? È esse o conceito que fazes do teu pai?
- Então qual a razão deste inquérito? Pareces um policia.
- Pois muito bem, acabou o jogo do faz de conta que não sei de nada- disse o engenheiro Carlos Conde, fixando intensamente o filho- a minha irmã esteve aqui esta tarde. Veio-me pôr ao corrente de algo muito grave. Esta madrugada, cerca das duas horas da manhã, a casa dela foi assaltada por quatro indivíduos. Sabias disto?
- Eu??... eu não pai, como havia eu de saber? Passei a noite em casa.
- E eu passei a noite fora- disse o engenheiro Carlos Conde- mas como ia dizendo, ocorreu esse assalto em casa da tua tia, mas ela estava avisada de que esse assalto iria ocorrer. Um tal Serôdio, aquele mesmo colega com quem tu não te dás, avisou-a. E o mais grave de tudo foi ter-te acusado como o promotor do assalto. Que me tens a dizer a isto?
- O Serôdio acusou-me de eu ter assaltado a casa da tia Silvina?
- È verdade. E o que è mais extraordinário è que o assalto deu-se mesmo. Os assaltantes dirigiram-se com precisão para o cofre que está escondido atrás de um quadro, na sala africana da tia, sem nada terem vasculhado. Foram objectivamente ao sitio onde a minha irmã tem o mau hábito de guardar somas consideráveis de dinheiro. Como achas que os ladrões descobriram o local onde o cofre está escondido?
- Pai, tu estás-me a perguntar algo ou a acusar-me de algo?
- Eu não estive em Aveiro ontem. Eu só quero que tu me ajudes. Esse Serôdio deve ser um crápula, para conseguir inventar algo a teu respeito assim tão abominável. Foi a forma que arranjou para se vingar de alguma questão menos esclarecida que entre vós exista. Tu sabias ontem onde eu estava?
- Sim, a mãe disse-me que possivelmente só hoje virias para casa.
- Pois è meu filho- disse o engenheiro Carlos Conde, que subitamente agarrou o filho pela camisa- se nesta história há um crápula, esse, infelizmente, és tu. Sabias que eu não estava em Aveiro, pensavas que talvez só hoje eu regressasse. Mas surgiram alguns contratempos. Eu cheguei a casa era uma hora da manhã e contrariamente ao que há pouco disseste, tu não estavas em casa. Eu deitei-me eram duas e meia e tu sem apareceres. Planeaste o assalto para um dia em que sabias que eu não estaria em Aveiro. Isso fazia-te sentir muito mais à vontade.
- Pai, tu só me podes acusar tendo provas.
- Para mim não há prova maior do que a tua mentira. Eu ontem fui ao teu quarto e a cama estava vazia. Condenaste-te quando há pouco me disseste que ontem à noite não saíste de casa. Pensavas que eu não tinha cá estado para poder comprovar isso. È verdade ou não è que ontem à noite assaltaste a casa da minha irmã?- perguntou o engenheiro Carlos Conde num berro raivoso, ao mesmo tempo que dava um murro na sua secretária.
Narciso nunca vira assim o pai. Naquele momento temia pela sua própria segurança. As contas tinham-lhe saído furadas. O pai regressara a casa na hora mais critica. Não havia por onde fugir. Errara ao dizer que não saíra de casa. Seria melhor confessar. Suando, disse então:
- È verdade pai. Fui eu.
- E quem tentou agredir a tua tia com uma lança?
- Fui eu também. Mas era só para a assustar. Fiquei doido quando me senti descoberto.
- Se era só para a assustar ou não, nunca o iremos saber, porque felizmente o tal Serôdio agarrou-te.
- Foi pai, foi isso.
- Tu não tens que chegue? O que è teu não te basta?
- Queria mais um dinheirito para as minhas férias.
- Férias?
- Sim, no Algarve. Vou fazer campismo.
- Um bom campismo te vou dar eu. Acabando as aulas, vais direitinho para o combóio, que te irá levar até França, onde vais trabalhar na campanha do tomate. Tenho alguns amigos que me tratarão da tua inscrição.
- Mas pai...
- Queres dinheiro, pois vais suar para o obteres. Nos próximos meses não te quero aqui. Tenho vergonha da tua tia. O que tu fizeste não sei se alguma vez poderá ser perdoado. Tu tentaste assaltar a minha única irmã, quiçá matá-la. Tiveste muita sorte em a tua tia ter decidido vir desabafar comigo, e não com a policia. Não digo mais nada, porque acho que um pai, em circunstância alguma, não deve dizer a um filho aquilo que me está a passar pela cabeça. A partir de hoje não sais mais de casa, excepto para ires ás aulas, até viajares para França. Vai para o teu quarto.
Narciso Conde abandonou o escritório do pai, completamente derrotado. Mas impunha-se uma vingança, uma severa vingança. O Serôdio conseguira estragar-lhe o verão, mas não se iria ficar a rir...(em continuação, pág.45- ex. XIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

MARÇO/2003

terça-feira, 13 de abril de 2010

FRENTE-A-FRENTE

...Carlos Conde para ali ficara olhando o vazio. Sem energia, observava a irmã a entrar no carro e abalar. Como fora possível a sua única irmã vir acusar o seu filho de algo tão grave, como aquilo que ela descrevera? Mas por outro lado, ela tinha a noção perfeita do que estava a dizer. Não tinha conhecimento de que a sua irmã sofresse de alienação de qualquer espécie. Seria a viuvez a provocar-lhe alucinações? Não, a sua irmã sempre fora uma boa pessoa e muito ponderada. Ali estava um dilema: viver com a vontade de que a sua irmã não tivesse razão, mas se assim fosse não poderia de maneira nenhuma relacionar-se com ela amigavelmente, ou então concluía que a sua irmã tinha mesmo razão e então havia de tomar uma atitude dura e drástica para com o seu filho. E se o Narciso o tivesse feito? Seria possível um rapaz de dezassete anos ter a capacidade de camuflar do pai, de uma forma tão persuasiva, a sua má índole?
Vestiu um casaco e saiu. Foi à empresa onde trabalhava, observar como decorria a produção de um novo material. Depois correu a cidade de lés a lés, mas não via a hora de poder ter o seu filho Narciso frente a frente, olhá-lo nos olhos e poder neles ler o engano da sua irmã Silvina.
Anoitecia quando o engenheiro Carlos Conde entrou de novo em casa. Toda a família já lá se encontrava. Sentiu o coração palpitar-lhe na garganta. Era muito desagradável ter que questionar um filho sobre uma matéria como aquela, mas tinha de ser feito. Era preciso saber de que lado estava a razão e a culpa.
De rosto fechado pelo aperto que sentia no coração, perguntou à esposa:
- O Narciso está em casa?
- Está.
- Diz-lhe para ir ter ao meu escritório. Quero conversar a sós com ele.
- Mas o que se passa, Carlos?
- Não sei se se passa alguma coisa. È isso que eu quero descobrir.
E dizendo isto, Carlos Conde dirigiu-se para o escritório, pensativo e em silêncio.
Momentos depois Narciso Conde ali entrava. Tinha a certeza de que a velha havia falado com o pai. Tinha de manter a cabeça fria, pois não havia maneira de o poderem acusar.
Impondo a si próprio a aparência mais natural e inocente que conseguiu ir buscar ao seu intimo, entrando no escritório, fixando o pai, disse:
- Queres falar comigo pai?
- Quero. Fecha a porta.
- Eh pá, è coisa importante- disse Narciso tentando dar à situação um ar de brincadeira.
- Esta tarde estive aqui sozinho e pensei um pouco em ti- começou o engenheiro Carlos Conde, recostando-se às costas almofadadas da cadeira- perguntei-me a mim próprio que tipo de homem será o meu filho Narciso?!
- Pai, sou um homem normal. Tenho horas para estudar, tenho horas para me divertir...
- Sim, isso eu sei Narciso. O que eu quero saber è se tu és uma pessoa considerada na cidade. E se te pergunto isto, è porque acho que cada um de nós deve zelar por ser um bom cidadão, e muitas mais responsabilidades nessa matéria têm aqueles, cujo nome herdaram de uma personalidade, como è o teu e o meu caso. O teu avô, o doutor Conde, foi um médico querido de todos. Desde o mais humilde ao mais rico, todos o estimavam. O teu avô foi um verdadeiro médico de província. Lembro-me de que quando eu tinha dez anos de idade, o meu pai percorria todas as freguesias das redondezas, no seu impecável Vauxhall de 1932, prestando assistência aos inúmeros doentes que solicitavam os seus serviços. E fazia-o fosse de dia ou de noite. Aos menos afortunados não lhes cobrava nada pelo domicílio e ainda os ajudava na obtenção dos medicamentos. O teu avô era assim. Eu não sou médico, mas sempre me preocupei em honrar o seu nome. Por isso primo pela cordialidade e faço questão em ter amigos, bons amigos. E tu?
- Eu?!- perguntava o rapaz um pouco intrigado.
- Sim, és cordial para com os teus colegas? Estima-los e eles estimam-te?
- Mas è claro pai. Tenho bons amigos. Há só um ou dois...
- Sim...- disse o engenheiro Carlos Conde observando o filho.
- Bem, existem alguns rapazes que têm inveja de mim, por eu ter uma motorizada V5.
- E fazes questão em lhes mostrares que eles não têm uma motorizada como tu?
- Eu... não percebo o que queres dizer.
- Armas-te em bom só porque tens uma motorizada e eles não?
- Oh pai, eu não. A motorizada só me serve de meio de transporte.
- Lembras-te do nome de algum desses teus colegas que te invejam?
- Principalmente um, o Serôdio.
- Quer dizer então que tu e o Serôdio não são amigos!!
- Não, não somos. Mas porquê essas perguntas?
- Porque me vieram aos ouvidos algumas queixas sobre a maneira como procedes com os teus colegas do liceu.
- E quem foi que te fez essas queixas?
- Um professor teu.
- Um professor meu? Pai, isso è um disparate. Porque não dizes logo que foi a tia Silvina?- e dizendo isto, Narciso de imediato se arrependeu de o ter feito...(em continuação- pág. 41- ex. XII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003

quinta-feira, 8 de abril de 2010

FLANDRES- LA LYS- SECTOR DA LA BASSÉ- 09 DE ABRIL DE 1918


Para que a memória nunca esqueça essa tragédia, a última batalha falada em português.
À memória dos combatentes do Corpo Expedicionário Português, na I Guerra Mundial.

terça-feira, 6 de abril de 2010

MÚSICA DE UMA VIDA: DAY DREAM- WALLACE COLLECTION



Naquele dia de 1970, o jovem de 14 anos, ao ouvir este Day Dream, dos Wallace Colection, sentiu uma febre musical inundá-lo. Esta música, desde então, preserva-a com muito carinho e emoção na sua memória.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

COIMBRA É SEMPRE UM ENCANTO...

- ...Um homem levar com esta chuva em cima, não deve ser pêra doce- disse o alferes Santa Cruz.
- Então homem, chuva civil não molha militar- disse sorrindo o alferes Mendes.
- Pois è, só que esta chuva de civil nada tem. Ela è bem militar, è uma chuva guerreira.
- Anda daí pá, vamos beber uma cerveja. Deixa a chuva cair, guarda por momentos as recordações da tua Catarina, e entrega-te de alma e coração à felicidade infeliz de um dia em paz, no meio da guerra. Somos da infantaria não somos? Pois vamos beber em memória do nosso patrono, o Condestável D. Nuno Álvares Pereira, ao D. João I e aos duendes maus desta imensa floresta onde estamos mergulhados.
- Qual è o teu primeiro nome?- perguntou o alferes Santa Cruz.
- Chamo-me Rui e sou de Coimbra. E o teu?
- O meu?
- Sim, o teu primeiro nome, qual è?
- Álvaro, e tal como tu, também nasci em Coimbra.
- Ai sim, então vamos também beber à saúde das árvores do nosso querido choupal, que além de serem de mais confiança do que estas, não nos cagam com merda de macaco.
E os dois alferes reentraram na messe dos oficiais. Bebiam para enganar os sentidos, distrair os sentimentos, solidários na sua juventude prisioneira. Aquela messe improvisada e tosca, era o local de Angola, onde os dois, através de recordações, mais próximos de casa se sentiam. Sob o barulho intenso da chuva que se abatia sobre o telhado de chapas de zinco da messe de oficiais, Álvaro e Rui, nascidos nos ecos do tempo de uma Aeminium esquecida, fortaleciam laços de amizade, enquanto se transportavam até Coimbra, deambulando por entre recordações da Académica, de bailes no Ateneu, das salutares bebedeiras construídas na estudantil tasca «Cantinho do Céu» à Rua Corpo de Deus, dos divinos manjares populares servidos pela figura castiça do «Zé Manel dos Ossos», na sua típica casa de pasto à Rua da Sota, de fugidios romances sofregamente consumidos no Penedo da Saudade, das simples e saudosas pevides do «Pianinho», do Liceu D. João III e as cómicas aulas de educação musical vividas com os professores «Cabeça de Apito» e «Porque Burriais», das fabulosas aulas de ciências com o professor «Tatão», das enfadonhas aulas de desenho com o professor «Certinho», da sempre deliciosa professora veterana, de português, a professora D. Lucinda Gomes.
Coimbra do Mondego, tão perto estava do rio Cuango...(em continuação- pág. 58, ex. XI)

in VISITADOS

Novembro/1999