quarta-feira, 28 de abril de 2010

A MAET (ORDEM NATURAL DAS COISAS) POSTA EM CAUSA POR UMA RAINHA


...A sacerdotisa, ao ouvir aquelas palavras, por breves instantes susteve a respiração. Se bem interpretara as palavras do faraó, ele estava-lhe a dar a entender que a queria para sua rainha. Ela, rainha do Egipto?! Ela, uma humilde felas, que pela cor do seu cabelo fora escolhida por Amon-Rá para o servir como sacerdotisa, era agora alvo da atenção do faraó?! Isis decerto que intercedera junto de Amon, no sentido de a libertar dos votos de castidade, considerando que o seu corpo, sensual e esbelto, fora criado para ser fértil. Isis, a deusa do amor, da magia e da fertilidade, achava que o seu ventre estava predestinado a dar continuidade à linhagem dos faraós. Só assim se explicava o interesse que o jovem faraó estava a demonstrar por ela. Deixava de ser serva de Amon, para passá-lo a ser do descendente do grande faraó Menés. Ela, Nefertiti, rainha do Egipto!! Sim, o faraó a queria, o faraó a teria.
No seu entusiasmo, suscitado por estes pensamentos, esboçou o gesto de levantar o olhar para o faraó, mas logo desistiu dessa intenção. No entanto, tal vontade não passou despercebida ao rei. Por isso, Amenhotep, o quarto, postado atrás da sacerdotisa, tirou as mãos de cima dos seus ombros e disse:
- Levanta-te Nefertiti. Levanta-te e olha-me bem nos olhos.
A sacerdotisa obedeceu. Levantou-se com extrema elegância da sua posição de ajoelhada. Depois, virando-se lentamente, com os braços estendidos ao longo do corpo, ficou bem de frente para o faraó. Percebera bem qual o sentido das suas palavras. Tal sentido não lhe desagradava. Muito lentamente levantou os olhos; percorreu com o olhar o corpo do seu rei, até que o olhou bem nos olhos. O faraó estremeceu.
- Que bela rainha serás, Nefertiti. Deus nenhum poder terá para conseguir evitar que sejas rainha do Egipto. É essa a tua vontade?
- Divino senhor, perante tal proposta, o que pode responder uma humilde mulher, cujos horizontes não vão além das paredes de um templo?
- Mas responde-me, Nefertiti, serás rainha em corpo e sacerdotisa de Amon em alma?
- Não, divino senhor. Não é por acaso que és deus na terra. As tuas palavras estão cheias de sabedoria, e conseguiram fazer-me entender que o faraó, na qualidade de deus e também de homem, exerce supremacia ao direito de possuir uma mortal, relativamente a um outro deus, mesmo que esse deus seja Amon-Rá. Por essa razão, caso assim o desejes, serei a tua rainha, tanto no corpo como na alma.
- Então, Nefertiti, considera-te a próxima rainha do Egipto, a rainha do fogo, cuja beleza ensombra a grandiosidade da sagrada pirâmide. Vem, vamos embora.
- Mas, assim, sem mais nem menos?- perguntou Nefertiti, um pouco aflita.
- Assim mesmo! Os laços com o templo, cortados abruptamente, ficam definitivamente eliminados. Não vais ter uma abrupta mudança de condição? Pois então será assim mesmo.
E o faraó pegou em Nefertiti ao colo, e com ela bem presa nos seus braços fortes, saiu da sala de reflexão. Quando ambos se dirigiam para o imenso pórtico, foram surpreendidos por Masahemba, que, entretanto, saíra do tanque sagrado.
O Sumo-Sacerdote ao ver o faraó com a sacerdotisa ao colo, dirigindo-se ambos para o pórtico, estacou o passo… mas, o que era aquilo que os seus olhos viam?
Apanhado de surpresa, Masahemba teve um momento de hesitação. Com o olhar perscrutou toda a área que a sua vista alcançava, mas não divisava as outras duas sacerdotisas.
O faraó, alheio à presença do Sumo-Sacerdote, continuava a caminhar em direcção ao pórtico, transportando nos braços Nefertiti.
O Sumo-Sacerdote tinha de tomar uma atitude. O faraó não tinha o direito de proceder daquela forma, com uma sacerdotisa de Amon. Nefertiti estava abençoada por Amon-Rá; nenhum homem lhe poderia tocar; aquela atitude era uma terrível afronta ao deus dos deuses, e ele, na qualidade de seu Sumo-Sacerdote, tinha a obrigação de intervir. Por isso, saindo da sua súbita inércia, caminhou com passo apressado, dirigindo-se para o faraó. Rapidamente o alcançou, colocando-se à sua frente, obrigando assim o faraó a parar.
- Divino senhor, tens consciência do enorme erro que estás a cometer?
O faraó, fixando o Sumo-Sacerdote com uma expressão de tremenda raiva, os olhos faiscando de ódio, fez com que a sacerdotisa saísse do seu colo, e num movimento tremendamente rápido, esbofeteou violentamente o rosto de Masahemba, obrigando-o a dar dois passos atrás.
- Tu, estrangeiro, que ocupas o lugar que deveria pertencer a um egípcio, tiveste a ousadia de te atravessares à frente do faraó do Egipto. Agradece a Amon por a tua vida não terminar já aqui!
Masahemba manteve-se imperturbável. O rosto doía-lhe, mas fez questão de não denunciar a dor. Fixava o faraó Amenhotep, o quarto, e com suavidade disse:
- Divino senhor, eu zelo pela pureza deste templo. Fui escolhido pelo todo poderoso Amon-Rá para esta função…
- Nunca o deverias ter sido- interrompeu o faraó- o Sumo-Sacerdote de Amon deveria ser um egípcio. Tu és somente um capricho de Amon-Rá, o que de certa forma nada abona em favor da maet. Se Amon-Rá se deu ao direito de escolher para seu Sumo-Sacerdote um estrangeiro, eu, que sou o senhor supremo do Egipto, tenho também o direito de escolher para minha rainha uma sacerdotisa de Amon-Rá.
O Sumo-Sacerdote ficou lívido com tal revelação. Então, o erro era muito mais grave do que ele poderia imaginar. O faraó, ao eleger como rainha uma sacerdotisa de Amon, estava a provocar a ira do deus dos deuses.
- Divino senhor, roubas a sacerdotisa a Amon? E depois?
O faraó, instintivamente, levou a mão direita à cinta, onde geralmente transportava um punhal. Mas como fora ao templo, achara melhor não o levar, pois o templo de Amon era o local onde se procurava a paz e não a guerra. Afinal, com o surgimento de Nefertiti, aquele templo estava a ser tudo menos um local pacífico.
- Estrangeiro, chamaste de ladrão ao faraó do Egipto. Muitos homens, por muito menos, apenas por terem ousado olhar o faraó nos olhos, pagaram esse erro com a vida. Não morres já aqui, porque o gume do meu punhal achou não ser necessário acompanhar-me… pelo que se vê teve uma decisão errada. No entanto, a tua ofensa não será esquecida pelo faraó, sendo tu ou não Sumo-Sacerdote de Amon. Aconselho-te a que, a partir deste momento, aos meus ouvidos jamais volte a chegar o som dessa garganta, que se deveria estar a esvair em sangue. Toma nota, estrangeiro: olha pela última vez Nefertiti com as vestes e a postura de sacerdotisa, porque quando a voltares a ver, estarás a olhar para a rainha do Egipto, e aí deverás ter muito, mas muito cuidado, com a forma como a olhas.
E o faraó abalou. Nefertiti, de mão dada com o faraó, lançou ainda um olhar ao Sumo-Sacerdote, pelo que este percebeu perfeitamente que a sacerdotisa aceitara de muito bom grado a sua nova condição, a de rainha do Egipto.
O Sumo-Sacerdote não se mexeu. De costas para o pórtico, sentiu-os afastarem-se, ouviu Nefertiti dar uma gargalhada de prazer, apercebeu-se do pórtico a ser aberto e depois fechado.
No meio do imenso átrio, ali estava o Sumo-Sacerdote Masahemba, desalentado, com uma guerra prestes a rebentar-se-lhe nas mãos; mas não tinha alternativa. Amon-Rá deveria ser avisado o quanto antes do sucedido; por isso regressou ao tanque sagrado. Muitas horas haveriam de passar até que estivesse purificado, apto para enfrentar o tabernáculo. A cara ardia-lhe ainda pela acção da bofetada recebida; a impureza impregnava-o, suscitando no seu íntimo ímpetos de violência. Só com o espírito em paz poderia comunicar-se com Amon-Rá.
Entretanto apareceram as duas restantes sacerdotisas, que haviam estado escondidas. Masahemba ordenou-lhes que se recolhessem. Mais do que nunca o tanque sagrado, onde afluíam as águas do majestoso rio Nilo, servir-lhe-ia de bálsamo para as feridas abertas no seu amor próprio. Já se esquecera de que não era egípcio, e fora o faraó do Egipto que lho lembrara. Mas ser discípulo de Amon-Rá não seria garantia de que era um egípcio em toda a acepção da palavra? O faraó estava cego...(em continuação, pág. 24- ex. VIII)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

2 comentários:

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

Estes luxos que os faraós e os reis tinham acesso não são muito diferentes dos privilégios de muitos dos que chegam a posições de destaque na sociedade actualmente!

Actores e jogadores da bola têm, modo geral, acesso às mulheres que querem...

E repare-se que, tal como sucedeu a esta sacerdotisa, a notoriedade do que é oferecido é tão apelativo que tudo o resto é esquecido e desvalorizado...

Um abraço.

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Poeta do Penedo disse...

Meu caro Marcelo Melo
tal como à nossa sacerdotisa era oferecido um mundo muito melhor, também a muitos dos que começam por ser comuns mortais, a troco de xutos e pontapés, é-lhes oferecido uma vida numa outra dimensão que não a nossa. Resta saber até que ponto é que é que isto é justo.
Com amizade.