quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ARMANDO- MEMÓRIA DE GUERRA

...- Mas como pode a senhora confiar assim em mim, se apenas me conhece há meia dúzia de horas?
- Há coisas na vida que nunca hão-de ter explicação. Acontecem num segundo e duram uma vida inteira. A minha confiança em ti è uma dessas coisas. Para mim, és alguém que eu sempre conheci. És decerto o amigo que me fazia falta.
- Mas eu só tenho dezassete anos...
- E então? Eu não te estou a pedir em casamento- disse D. Silvina sorrindo, o que fez com que Serôdio ficasse corado- apenas sei que és alguém onde eu me posso apoiar, caso precise, como faria com um filho.
- A senhora D. Silvina pode contar que eu a ajudarei até onde puder.
- Obrigado Serôdio. Mas falemos um pouco de ti. Tão jovem como és, com certeza que terás inúmeros projectos para a tua vida.
- Sim, realmente assim è. Não são assim tantos projectos como isso, mas os suficientes, caso se realizem, para me garantirem um bom futuro.
- E que projectos são esses?
- Quero tirar medicina.
- Queres ser médico então!
- Sim.
- Estás em que ano?- perguntou D. Silvina.
- Estou a terminar o segundo ano do curso complementar. Mais um mês fica pronto. Depois terei um ano de propedêutico. Se tudo correr bem, para Outubro de 1978 entrarei na faculdade de medicina.
- Os teus pais devem estar muito orgulhosos de ti.
- Sim, penso que sim- respondeu Serôdio com um pouco de timidez, que lhe era peculiar sempre que falava de si próprio- eu não lhes tenho dado problemas, cumpro com as minhas obrigações, dou-lhes o meu afecto, só há razão para sermos felizes.
- Não tens irmãos?
- Não, sou filho único. Quando um dia tiver a minha vida bem orientada, os meus pais hão-de viver comigo.
- És um filho de ouro!
- Eu gostaria que a senhora D. Silvina fosse a nossa casa, conhecer os meus pais. Pelo que vejo a senhora vive muito sozinha. Os meus pais sabem ser bons companheiros.
- Com certeza que irei Serôdio. Tu tens razão. Desde a morte do meu marido, a minha vida tem sido uma completa solidão.
- Mas, a senhora e o seu marido nunca tiveram amigos?
- Sim, muitos. Esta casa esteve muitas vezes cheia deles. Mas com a morte do Raúl, talvez prevendo que recorresse a eles para sobreviver, ou talvez porque só fossem mesmo amigos do Raúl, o que è certo è que com o seu desaparecimento desapareceram também os amigos. Sobrou apenas o Armando.
- Ele chama-se só Armando?
- Não, ele chama-se Armando Mapuchi. È muito bom criado e muito bom homem também.
- Ele não sente saudades da família?
- Essencialmente ele sente saudades de Angola. A família já a esqueceu, porque com a guerra civil que grassa por lá, ele convenceu-se de que toda a família morreu.
- Porquê?- perguntou o rapaz.
- O pai dele foi soldado do exército português. Ele está convicto de que por causa disso todos os seus familiares terão sofrido represálias por parte dos soldados da UNITA e do MPLA. Angola mergulhou num banho de sangue. O Armando teve muita dificuldade em adaptar-se à forma de viver dos europeus. Somos uma sociedade com demasiadas regras. O facto de há muitos anos trabalhar para nós, ajudou-o na adaptação à vida em Portugal.
- Ele nunca arranjou nenhuma mulher?
- Penso que não. È um homem dócil, extremamente servil e vive amargurado com o sofrimento do seu povo. Está-nos imensamente agradecido por o termos trazido para Portugal.
- No entanto vivem cá tantos angolanos e angolanas...
- Que não gostam de mim por inveja- interrompeu o criado negro que naquele momento entrava na sala- sabem que eu não tenho dificuldades, nem sou explorado como eles são. Para me ofenderem , dizem-me que eu continuo a ser criado de quem ajudou a manter o colonialismo. Mas eu não me ofendo. Eles só è mesmo dor de cotovelo. O meu lugar è nesta casa, porque o senhor coronel e a senhora salvaram-me da catana da UNITA ou do MPLA. Por isso è nesta casa que eu tenho de fazer a minha vida. O jovem moço perguntou se eu tinha mulher. Eu digo-lhe. A mulher que estava para viver comigo morreu no Lobito, numa poça de sangue.
- Armando, tu nunca me disseste isso- retorquiu D. Silvina.
- Pois não senhora, não valia a pena. Eu não quero mais mulher.
- Desculpe Armando, por minha causa estamos a recordar coisas tristes.
- Não faz mal jovem moço. Todo o dia eu penso nela um bocadinho.
- Bem, mas è melhor realmente falarmos de outras coisas, senão não tarda estamos os três a chorar- disse D. Silvina.
- Eu não tenho razão para chorar, senhora. Aqui eu sou feliz- disse Armando...(em continuação, pág. 26- ex. VIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

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