sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O AMOR E A SAUDADE

Um ano se passara. Um ano de atroz sofrimento. Agora não tinha dúvidas. Amava perdidamente a Luísa Avilar. Sempre que lhe era possível forçava um toque fugaz, mas intenso, na sua pele de seda. Ela não demonstrava qualquer alteração no comportamento. Era como se ele não existisse. Mas o íntimo de Luísa não se encontrava assim tão insensível às “casuais aproximações” de Américo. Estas tinham sido captadas por Luísa. E o problema residia aí. A respeitosa intencionalidade quase pueril com que Américo tentava aproximar-se dela, não lhe criava repugnância. Bem pelo contrário. Fazia nascer em Luísa o quase esquecido conforto de se entregar nos braços de quem se ama. Luísa, possante em juventude, havia muito que não era bafejada pela suavidade de uma carícia, o envolvente sabor de um beijo. A presença de Américo confundia-a, fragilizava-a. Luísa tinha medo desta situação. António Avilar estava bem presente na sua memória. Mas seria justo ela ficar viúva toda a vida? Seria o seu coração capaz de amar novamente, tal como amara António Avilar? Teria ela o direito de voltar a amar? Ama-se na saudade mas não se ama a saudade. António Avilar seria para todo o sempre o seu jovem e terno marido, que falecera na guerra de França. Seria assim que por toda a vida ela o recordaria. Mas não lhe daria Deus a possibilidade de um dia poder olhar para um rosto enrugado e dizer ternamente: « meu marido, como estás velho».
Esta avalanche de dúvidas sobre o seu futuro como mulher não a apoquentara desde a morte de António, porque psicologicamente ainda não estava preparada para a hipótese de um segundo casamento. Mas três anos volvidos, a serenidade chegou. Aprendeu a viver com a mágoa da viuvez, e o seu ser, tal como a flor que desponta na Primavera, imperceptivelmente tornou-se receptivo a um rosto, um rosto que em beleza e bondade rivalizasse com o rosto de António Avilar. E esse rosto era o de Américo Afonso.
Descobriu esta certeza ao enfrentar as dúvidas. O amor não se explica. No nosso triste desconhecimento humano apenas um homem houve que teve um momento de iluminação para dar uma definição ao amor: «amor è fogo que arde sem se ver». Ainda não surgiu outra melhor.
Chegou o Natal de 1921. Pela Casa das Leis duas fogueiras consumiam intensamente florestas inteiras, feitas de pensamentos e desejos loucos. Mas ardiam silenciosas, recatadas num pudor cada vez mais frágil. O calor das suas labaredas não se continha quando os olhares de Luísa e Américo se cruzavam. Os olhares faiscavam de paixão.
A mãe de Américo, D. Vitoriana, andava preocupada. O seu advogadozinho andava taciturno, magro, com fraco apetite. Que maleita o atormentava? Não queria ouvir falar em médicos. O seu marido, o Doutor Sebastião Afonso, dissera-lhe - “não te preocupes mulher. O problema do Américo é um rabo de saia. Um dia destes temos nora.” Seria? Mas se assim fosse, porquê o segredo? Afinal ele já era um homem.


Na véspera de Natal desse ano a Casa das Leis estava com um movimento desusado. Familiares do Doutor Sebastião e da D. Vitoriana ocupavam alguns quartos daquela famosa casa do Bombarral, preparando-se para ali passarem os festejos natalícios.
Na véspera de Natal Luisa manteve-se em grande azáfama na cozinha, tendo nesse dia a dona da casa por ajudante. As filhoses, velhoses, rabanadas e outros doces de sabor natalício, foram sendo confeccionados pelas mãos experientes de Luísa. Chegue-se lenha ao forno que o peru está pronto a assar. E ainda se há-de cozer o fiel amigo. A mesa da sala de visitas terá de estar delicadamente decorada. O azevinho é pouco, tem de se ir buscar mais.
Neste nunca parar, o dia escoou-se e a noite chegou. Todas as casas preparavam a sua consoada. D. Vitoriana reparara, enfim, que a noite chegara.
- Já é noite. Como o tempo passou. E tu Luísa, como hás-de ir para casa?
- Vou pelo meu pé - disse Luísa.
- Isso sei eu. Mas não hás-de ir sozinha. Eu peço ao senhor Américo que te acompanhe.
- Não, não, muito agradecida - disse Luísa, aflita - é um pulinho daqui a minha casa.
- Não sejas parva rapariga. Não permito que vás sozinha.
- Muito obrigada senhora D. Vitoriana, mas nesta noite santa não existem almas penadas pelos caminhos.
- E ela a dar-lhe. Queres que eu fique incomodada toda esta noite?
- Isso não senhora D. Vitoriana. Longe de mim tal ideia.
- Então vai-te arranjando, que eu vou falar ao meu filho. - disse D. Vitoriana abandonando a cozinha.
Luísa ficou estarrecida. As mãos tremiam-lhe, mais de expectativa do que propriamente por medo. Medo de quê? Pavor de iniciar algo belo mas terrivelmente incerto. De repente um fogo intenso cresceu em si. A perspectiva de se encontrar sozinha com Américo, no meio da noite, pô-la fora de si. Era o nó do avental que não se desfazia, eram o casaco de malha e o xaile que se tinham escondido, onde se tinham metido aquelas peças de vestuário que tão de repente ganhavam vida?! Era o lenço da cabeça que nem por nada se queria submeter às suas mãos e moldar-se ao seu belo cabelo negro. Eram enfim os dedos de cupido que atrapalhavam os seus próprios dedos...(pág. 63)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

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