quarta-feira, 9 de setembro de 2009

INTROSPECÇÃO PELA SEREIA

Um ano se passara. Victor era um jovem feliz. Estava a concluir o seu curso de enfermagem, o que determinava que em breve iria iniciar a sua actividade profissional na área que achava aliciante. Sempre tivera muito desenvolvido o espírito de entre ajuda. E ser enfermeiro era a via que lhe proporcionaria estar permanentemente entregue no auxilio àqueles, que de muitas formas precisavam do seu saber e do seu carinho. Exaltava de satisfação com a perspectiva de num futuro muito próximo poder percorrer os corredores de um hospital, deambulando pelo meio de camas onde homens, mulheres e crianças doentes, ficariam física e espiritualmente mais aconchegadas através do seu trabalho e da sua presença. No entanto, nem tudo estava assim tão cor de rosa. Desde aquele inesquecível Domingo no Choupal, acontecido havia um ano, que o seu relacionamento com Ana Maria se viera a tornar progressivamente mais frio. Ele sabia que era muito jovem, sabia ainda que mulheres, as havia em grande quantidade. Mas que raio havia ele de fazer?! A Ana Maria entrara de tal forma no seu coração, que por ela lutaria até ao limite das suas forças, mesmo sentindo que ela se lhe escapava por entre os dedos. Não era famosa essa sua atitude de insistir em procurar uma mulher que o deixara de procurar, que arranjava muitos afazeres para abreviar os seus encontros, cujo olhar deixara de ter chama quando se olhavam, que perdera a capacidade de ter um diálogo interessante. Mas como o velho ditado dizia « não há amor como o primeiro », o seu coração mantinha-se fiel a Ana Maria.
Os extraterrestres e o Viajante eram coisas do passado. Não fosse o livro de capa preta que guardava numa prateleira, no seu quarto, aquele encontro não teria passado de um golpe do imaginário. Mas o livro « Contacto » falava mais alto e impunha a sua verdade. Até chegar o ano de 1996, haveriam de passar cinco décadas. Mas viveria a vida como a sabia viver, pondo sempre nos seus actos o seu próprio ser. Ele não sabia ser superficial nem artificial. E na genuinidade das coisas, forçosamente estava inserida a sua amizade por Duarte. Naquele ano que passara, o seu verdadeiro amigo Duarte Amorim mostrara-se fiel à amizade dos dois, mais do que nunca. A experiência que ambos tinham tido com os extraterrestres quase que fizera dos dois um só indivíduo. Victor desabafava com Duarte as apreensões que sentia relativamente a Ana Maria. Quando isso acontecia, o amigo sempre tinha para com ele uma atitude de solidariedade e conforto. Duarte sempre dizia que era apenas uma fase passageira. A rapariga talvez estivesse a atravessar uma crise existencial, talvez procurasse a sua verdadeira personalidade, e essa confusão reflectia-se na relação dos dois. Victor ficava extremamente satisfeito com aquela explicação, e a seus olhos surgia de imediato uma Ana Maria feliz, risonha, a correr para os seus braços. Sim, ela era a mulher da sua vida e Duarte um amigo inestimável.
A noite estava a chegar. Victor escolhera aquela hora do dia, em que o mundo se revelava aos seus sentidos estar imbuído de uma paz enorme, para dar noticia a Ana Maria de que por alguns dias era forçado a ausentar-se para Lisboa. Nesse Fevereiro frio haviam chegado à capital cento e dez presos políticos, que tinham estado em cativeiro no campo de concentração do Tarrafal em Cabo Verde. Vinham em precárias condições de saúde. A escola de enfermagem achou por bem enviar os seus novatos. Ali teriam uma excelente oportunidade de aplicar os conhecimentos adquiridos e pôr à prova a sua capacidade humanitária, ao enfrentarem a dura realidade, de terem contacto com seres humanos terrivelmente debilitados.
Victor percorria as ruas de Coimbra. Ia em direcção aos Olivais, onde morava Ana Maria. De vez em quando fumava um cigarro. Chegado à Praça da República deparou-se-lhe o Jardim da Sereia. Nele entrou. A noite descia e transformava a alameda do Parque de Santa Cruz, ladeada por velhíssimas árvores e encabeçada por aquela majestosa fonte, numa pequena avenida divina. Havia muito tempo que ali não entrava. Que magnífica era a natureza. Que esplendorosa era a vontade do homem, quando valendo-se da natureza, criava espaços como aquele e fazia por a preservar. E levando nos olhos a memória das árvores, o Viajante, o planeta Terra, o planeta Uuron, os sentimentos dos homens e o universo, chegou, quase sem disso se ter apercebido, à Rua Luís de Camões, onde se localizava a casa de Ana Maria. A rua era comprida e não muito larga. Victor caminhava sem pressa de chegar. Bem no seu íntimo, algo de estranho havia, que tornava pouco confortável a sua presença ali. Mas ele decidiu não ligar importância àquela desagradável sensação. Estava já perto da casa da sua namorada e só isso contava. Já vislumbrava a casa, uma pequena vivenda pintada de castanho, cercada por um muro baixo, pintado de branco, encimado por um bonito gradeamento verde. Ao centro, em frente às pequenas escadas que levavam à porta de entrada, existia um pequeno portão de madeira pintado com o mesmo verde do gradeamento. No topo das escadas fora edificado um minúsculo compartimento, que protegia das intempéries a porta de entrada. De um e outro lado das escadas, a casa era bafejada pelo aroma fresco de um jardim plantado em ilhotas de terra, cercadas por um pequeno mar de cimento. Das plantas que davam forma ao jardim sobressaíam dois magníficos arbustos, exibindo folhas excepcionalmente verdes, que ladeavam as escadas. Todo o minúsculo compartimento, que servia como uma antecâmara de entrada, estava coberto por plantas trepadeiras, cujas gavinhas laboriosamente emaranhadas formavam uma bela tapeçaria natural de tons verdes...(pág. 31)

in VISITADOS

Novembro/1999

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