quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

UM COMPADRE OLEIRO

...Américo Afonso encontrava-se sozinho na sala de jantar da Casa das Leis. Pedira aos pais para comparecerem ali, pois precisava de ter uma conversa com eles. Enquanto aguardava a sua chegada, memorizava as palavras e o modo que concebera para lhes transmitir o que pretendia. Era assunto sério e delicado. Américo estava nervoso, mas também determinado a levar por diante as suas intenções.
- Então que temos, menino?- perguntou D. Vitoriana com o seu ar bem disposto, arrancando Américo às suas reflexões.
- Enfim chegaram - disse Américo.
- Pareces estar um pouco agitado - observou o Doutor Sebastião.
- Sim, é verdade meu pai. Não o posso negar. Estou um pouco nervoso.
- Então o caso é mais sério do que eu supunha - disse D. Vitoriana.
- Sim, o caso é sério porque se trata da minha vida e a de mais alguém - respondeu Américo.
- Não me digas que o assunto é “rabo de saias” - disse o pai de Américo.
- Pois é isso mesmo. Eu quero-me casar...
- Mas filho, isso é uma notícia extraordinária - disse D. Vitoriana - ao tempo que eu esperava por essas palavras...
- Com a Luísa Avilar - disse Américo.
- Luísa Avilar? Eu já ouvi este nome. Quem é? - perguntou o Doutor Sebastião a uma estupefacta D. Vitoriana.
- Tu queres casar com a nossa criada? - perguntou a mãe de Américo.
- Minha mãe, onde está a sua alegria? - perguntou Américo receosamente.
- Eu estou a entender bem? - perguntou o pai de Américo - tu queres casar com a criada cá de casa?
- Quero. O meu pai vê problema nisso?
- Se vejo problemas? Andaste a estudar em Coimbra para casares com uma criada?
- Não meu pai. Andei a estudar em Coimbra para me formar em direito. O seu raciocínio não é lógico.
- Não é lógico? Um prestigiado advogado como eu, ser sogro de uma criada... bonito o caso!
- Meu pai, eu caso-me para o fazer feliz ou para ser eu feliz?
- Mas que pergunta é essa meu filho? É óbvio que eu só pretendo o melhor para ti. E é por isso que estou estupefacto. Para mim, uma noiva tem de ser uma donzela. E a Luísa, como mãe de dois filhos, já não pode aspirar a ser donzela. Isso não te entristece?
- Meu pai, por vezes numa donzela pode-se esconder uma mulher reles. Vi muito disso nos anos que passei em Coimbra. A Luísa não é propriamente uma carta fechada. Já deu provas do que vale. Além de bela, é uma verdadeira mulher. Que melhor posso eu pretender?
- Das tuas palavras posso depreender então que a opinião do teu pai não conta!
- O meu pai merece-me todo o respeito - disse Américo - mas não vivemos propriamente na Idade Média. Eu caso-me somente com a mulher que eu sinto que me fará feliz. E aí só o meu sentimento manda.
- Mas filho, o casamento é a projecção da nossa posição social - disse o Doutor Sebastião.
- Um casamento feliz é a projecção da nossa posição social, meu pai. Com a Luísa Avilar a meu lado, toda a vida se me abre em esperançosas perspectivas. Sem ela não tenho alento para coisa alguma. Não era a minha felicidade que os meus pais almejavam?
- Ora uma destas! - dizia o pai de Américo.
- Então Sebastião, vamos ser compreensivos - disse D. Vitoriana.
- Tu também?! - retorquiu o Doutor Sebastião.
- Eu quero o bem e a felicidade do nosso filho. E mais a mais, a Luísa Avilar é uma boa rapariga. É trabalhadora, honesta...
- É a mulher perfeita minha mãe - disse Américo - ou ela ou nenhuma. E como eu não abdico da sua companhia, será com ela que me vou casar. Os dotes e as riquezas, ela oferecermos-à com a abundância de bons sentimentos que possui.
- A tua decisão é então irreversível? - perguntou o Doutor Sebastião.
- Não pode ser de outra maneira meu pai. Além do mais sou um homem de honra.
- Isso quer dizer o quê? - perguntou o pai de Américo.
- Quer dizer que os meus pais, brevemente, vão ser avós. Por isso resolvi conversar convosco mais depressa do que desejava.
- A Luísa está grávida? - perguntou D. Vitoriana.
- Assim é, minha mãe.
- Então o caso já vai adiantado - disse o Doutor Sebastião.
- Por isso mesmo, meu pai, pelo tempo que já tive para poder ajuizar, estou tão certo das minhas convicções.
- Que podemos nós fazer Vitoriana? É o nosso único filho. Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé. Que venha o meu compadre oleiro, por amor do meu filho.
- Meu pai, a diferença entre esta casa e a casa de Luísa, é que aqui há mais dinheiro do que lá. Aqui existem livros e lá não. Mas tal como aqui, lá reside a dignidade, a educação e o respeito pelo seu semelhante. Meu pai, como mulher eu não encontraria melhor do que a Luísa por essas famílias abastadas que para aí vivem.
- Está bem meu filho. Convenceste-me. A inesperada notícia de que vou ser avô tirou força a todos os meus argumentos. Que dizes Vitoriana?
- A Luísa não é uma estranha para mim. Se ela representa a felicidade do meu filho, é com carinho que a recebo como mãe do meu neto. Uma boa dona de casa ela será. Boa mãe já o é. Que seja bem vinda.
Que pais maravilhosos Américo Afonso tinha. A natural oposição à ideia de terem Luísa Avilar como nora, depressa se desvaneceu perante a inabalável determinação de Américo. Era o dia 10 de Agosto de 1922. Américo saiu de casa em busca de Luísa. Encheu o peito com o ar do meio-dia. O sol estava escaldante. Magnífica luz a do sol, que quase torna transparentes as almas boas que se encontram felizes...(em continuação- pág. 84, ex. XXVII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

8 comentários:

Teresa Fidalgo disse...

Grande Américo, sim senhor! Conseguiu convencer os pais.
Isto "antigamente" não era muito comum... faziam-se os filhos às criadas, sim, mas depois ninguém se propunha a casar... muito menos com a aceitação dos pais...
Aqui o preconceito e a divisão de "classes" foi vencido, muito bem.

Isto faz-me lembrar quando eu era mais novita. Sempre que conhecia alguém, a minha familia gostava de perguntar: "É de quem?" (gostavam de saber a que "familia" pertencia, para poderem avaliar se serviria ou não para minha/meu amig@). Eu recusei-me sempre a responder a essa pergunta, dizendo simplesmente quais as caracteristicas psicológicas que entendia que essa pessoa tinha.

Hoje, felizmente, isso não faz muito sentido. Ainda bem!

Saudações!

Unknown disse...

A Teresa tem razão quando fala em preconceito. É verdade e o conceito é intemporal; não é coisa do "antigo regime", infelizmente.
Mas eu iria um pouco mais longe. Nós, os pais, por mais esforço que façamos, não deixamos sempre de considerar os nossos filhos como muito "nossos". Pregamos a liberdade, a autonomia, mas no momento da verdade não deixamos de querer saber "com quem andas", se é "boa companhia" e essas coisas todas.

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

A abolição cultural da categorização das pessoas de acordo com a proveniência famíliar é de facto um dado adquirido quanto se fala em termos gerais e de linhas de tendência generalistas da sociedade actual.

Contudo, existem ainda lares cujas famílias se dedicam a essa categorização por motivos variados: por ganância financeira, por religiosidade, por elitismo, etc.

Acontece que hoje os casamentos significam muito menos do que antes, porque são vínculos a prazo e não vínculos definitivos como se esperaria de um casamento como o do nosso personagem Américo Afonso.

Até breve.

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
Felizmente para a Luísa Avilar que se apaixonou por um homem como o Américo Afonso, de uma sólida ética moral. No mundo em que ela (Luísa Avilar) se encontra, bem que a vida lhe pode proporcionar esta saborosa alegria, porque a vida tem a real noção das armadilhas que à Luísa prepara.
Briosas saudações.

Poeta do Penedo disse...

Caro Manuel Cardoso
pobres pais seríamos se o não fizéssemos. É que, embora os nossos filhos não pensem nisso,não o consigam sequer imaginar, o certo é que nós já tivemos a idade que eles agora têm. Os perigos a que eles estão sujeitos, já nós os corremos. As asneiras que eles possam vir a fazer, já nós as fizemos. Não seria liberdade deixá-los por sua conta e risco, antes negligência educacional.
Com amizade

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
na realidade a intenção de casar, hoje em dia, em consonância com a sociedade consumista em que vivemos, reveste-se de pormenores um tanto ou quanto complicados que no meu tanto eram inexistentes. Vai-se à tipografia e encomenda-se uma série imensa de convites, onde constam os nomes dos noivos, dos pais dos noivos, a data do casamento, o local da cerimónia, o local da boda, números de telemóveis, dele e dela, e uma frase bonita. Depois cria-se uma pequena lembrança para oferecer aos convidados, o que forma uma espécie de ritual que, aparentemente, enriquece a cerimonia do casamento. Mas quando se passa à prática, constata-se que o que se gastou em imaginação perdeu-se em sentimento, e o casamento torna-se no que o Marcelo Melo referiu- todas as enormes parangonas a anunciar ao mundo o amor que úne aqueles dois seres, passados ás vezes meros meses, ou poucos anos, se esboroa, na fragilidade de um castelo de areia.
Mas suponho que isso não se aplica a este casamento que agora foi anunciado, o do Américo Afonso com a bela Luísa Avilar.
Com amizade.

Teresa Fidalgo disse...

Manuel,
Concordo inteiramente consigo quando diz que, como pais, nunca nos deixaremos de preocupar com as companhias dos nossos filhos. É claro que não - é um assunto que me assusta enquanto mãe.
O que me parece, e sempre pareceu, é que não será pela proveniência familiar que lá chegaremos, se é ou não de "boas famílias" no sentido das suas posses. As características que me interessam para as amizades dos meus filhos hão-de ser as próprias desses amigos - se é honesto, se é responsável, se é cumpridor, se é meigo, se é sensível, se tem bons e nobres gostos, se é respeitador, se os trata bem... enfim, se é boa pessoa.

(uma vez, o meu pai, a quem eu respeitava muito, mas com quem muitas vezes não concordava, disse-me que não gostava de determinada pessoa, e referiu-se especificamente à maneira de vestir e aos seus sapatos. Eu respondi-lhe que essa pessoa tinha imensas qualidades excelentes, e que as deveria apreciar, antes de olhar para os seus sapatos; que muitos que o rondavam e que calçavam sapatos de marca e estilo clássico teriam que andar muito para chegarem aos seus calcanhares; e que um dia me haveria de dar razão. A verdade é que, um dia deu-me mesmo razão! – O “pré-conceito” turva-nos o conhecimento).
Cumprimentos

Unknown disse...

Teresa, concordo inteiramente, mas às vezes dou comigo a questionar onde acaba a vontade de proteger e começa a tentação de controlar. É que controlar pode ser pior que desvalorizar. Não é?