sexta-feira, 8 de outubro de 2010

EM COIMBRA, NO CAFÉ NICOLA




....Como sempre, o Nicola estava cheio. Catarina elegera um canto daquele espaço como seu. Por isso o procurava sempre. Ficava no primeiro andar, pois o Nicola tinha um primeiro andar, frequentado mais pelos clientes habituais. E esses eram na maioria jovens estudantes, que a troco de uma bica, ocupavam mesas por horas a fio. Mas a gerência não se importava, pois se por um lado os estudantes transmitiam ao café « o status dos tesos », por outro lado era bem verdade que os mesmos estudantes também escolhiam o Nicola para conviverem, e nessas horas, sem estarem preocupados com as Matemáticas e as Físicas, sempre eram mais generosos para com a gerência do café.
Catarina atravessou o corredor formado entre as mesas e o comprido balcão. Mesmo para aqueles que estavam habituados à sua presença, o facto de mais uma vez aparecer, nunca passava despercebido. E naquele dia ela irradiava luz e fazia os corações de alguns baterem mais apressadamente.
No regaço transportava três livros: um compêndio de filosofia, outro de literatura e um romance de capa preta, onde a meio existia uma mancha amarela, uma fonte de luz, rodeada por uma massa disforme que dava a percepção de ser uma grande concentração estrelar. Imediatamente abaixo surgia a lua em quarto minguante, e mesmo no fundo da capa aparecia a palavra « Contacto », escrita em letras grandes de cor cinzenta. Aquele era um dos livros que Álvaro lhe emprestara, e embora tivesse muita vontade e muita curiosidade em lê-lo, quando tinha o impulso de iniciar a sua leitura, algo havia que a fazia sentir angustiada. Por essa razão era, que havendo já passado nove meses, desde a partida do seu namorado para Angola, só na semana anterior iniciara a leitura do livro. Na penúltima carta que escrevera a Álvaro mandara-lhe dizer:
« Meu querido, finalmente consegui libertar-me daquele patético sentimento de angústia, sempre que tomava o livro Contacto nas mãos e me propunha a lê-lo. Ontem lutei contra mim própria e li o primeiro capítulo. Não foram muitas as páginas. Só li vinte, mas já surgiu uma personagem com quem eu estou a simpatizar- a Ellie, embora ela seja doidinha por matemática, o que até me faz arrepios. No pouco que li, já percebi que a ficção que aqui se faz deve ser baseada em sólidos conhecimentos científicos...»
Catarina caminhava devagar, dirigindo-se para as escadas de ferro que a levariam ao primeiro andar. O livro Contacto ia no seu regaço, com a capa virada para onde se encontravam as mesas. Qualquer um que ali estivesse sentado, perfeitamente observaria a capa preta e lhe leria o título. Catarina foi obrigada a parar, pois um empregado passou à sua frente transportando uma bandeja, onde equilibrava várias chávenas de café e alguns copos de água. Nessa sua paragem fugaz reparou numa mesa bem perto de si, onde se encontravam dois homens que ela nunca vira. Um era jovem e o outro bem mais velho. Ambos a observavam intensamente. Todavia percebeu nos seus olhares intenções e sentimentos diferentes. O mais novo corria-a gulosamente com os olhos, expressando desejo devasso. O mais velho mantinha o olhar parado, fixo num ponto do seu corpo que ela não podia determinar. Via naquele olhar uma espécie de surpresa. Sentiu-se perturbada e ainda o empregado não acabara de passar, já ela forçava a passagem, tendo ainda empurrado o pobre homem que quase se viu defraudado na sua arte de, com perícia, fazer chegar aos clientes todo o saboroso conteúdo, transportado nas frágeis chávenas. Desconfiada, ao chegar às escadas, deitou um olhar disfarçado à mesa onde se encontravam os dois homens. Eles ainda a observavam. Subiu as escadas, e quando chegou ao topo, olhou para a sua mesa predilecta, e viu que lá se encontrava uma das suas melhores amigas. Ficou satisfeita e encaminhou-se para lá.
- Olá Catarina- disse a amiga.
- Olá Isabel- respondeu Catarina sentando-se- está uma pessoa tão bem disposta e de repente fica-se nervosa...
- Porquê?- perguntou a amiga.
- Ali em baixo estão sentados dois tipos que me olharam de uma maneira...
- Que esperas tu minha querida? Se até há mulheres que te admiram fisicamente, que hão de pensar os homens!
- Desses olhares frívolos e banais estou eu habituada, e já não me incomodam. Mas a maneira como principalmente o mais velho me olhou, deixou-me intrigada. Nunca sentiste possuíres qualquer coisa que de repente sentes ser pertença de outrem?
- Não sei o que queres dizer.
- Olha, nem eu...Isabelinha, sê minha amiga, e vai ali ao parapeito, olha para baixo e vê se encontras nalguma mesa dois homens com aspecto de serem pai e filho, bem parecidos.
- Está bem- disse a amiga de Catarina que se levantou, foi ao fim do recinto do primeiro andar, olhou para baixo, observou atentamente todas as mesas e regressou- não existe ali ninguém com aspecto de pai e filho.
- Mesmo naquela mesa que está em frente à máquina do café?- perguntou Catarina.
A amiga voltou ao parapeito e atentamente observou a tal mesa. Regressando disse:
- Na mesa não está ninguém.
- Óptimo. Assim já me sinto melhor- retorquiu Catarina sorrindo... (em continuação, pág. 65, ex. XIV)

in VISITADOS
Novembro/1999

4 comentários:

Sândrio cândido. disse...

e assim continua a contar poeticamente a historia lusitana. a poesia legitima.

Poeta do Penedo disse...

Caro Sândrio
na verdade tive necessidade de me debruçar sobre o mundo português que me rodeia, e também tentando desvendar histórias da nossa história, menos conhecidas. É que, quando respondi a este impulso, Portugal andava muito esquecido pelos que tinham a responsabilidade de trazer à memória a memória colectiva de Portugal, o que, felizmente, actualmente não acontece.
Um abraço.

Gibson Azevedo disse...

Hummm!... Nove meses é muito tempo para o coração de uma jovem. É demais! E se lembramo-nos, que nesta época somos quase que escravos dos nossos hormônios, então!... O futuro promete surpresas, meu caro Fareleira Gomes! Aguardemos...

Poeta do Penedo disse...

Meu caro Gibson
naquele tempo, o tempo tinha menos tempo do que tem hoje, porque naquele tempo qualquer momento poderia ditar o final. A juventude daquele tempo, além de se confrontar com os mesmos problemas hormonais com que se confronta a juventude actual, tinha ainda de fazer frente à maldade da guerra.
Um abraço.