sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PELOS CAMINHOS PRATICANDO A MEDICINA


...Fiz o meu exame final em Maio de 1823. Era doutor. Munido de canudo na mão, rumei à casa paterna. Malhal de Sula aguardava-me em apoteose. Os meus pais, com um sorriso de orelha a orelha, rodeados pelos homens e mulheres que trabalhavam por sua conta, receberam-me com imensa alegria e inchados de orgulho. O seu filho era o primeiro doutor produzido naquelas bandas. A partir daquele momento Malhal de Sula deixara de ser apenas local de fortes vinhedos. Passara também a ser a residência de um médico, do único médico existente em muitos quilómetros em redor.
         Na dependência mais recatada da casa, que passou a ser a mais nobre, o meu pai montou um consultório para o meu futuro trabalho. Mobília de excelente carvalho, a estrear, constituída por uma enorme mesa pintada de preto, uma cadeira de costas altas, duas cadeiras de braços, destinadas aos pacientes, uma pequena cama para consultas mais aprofundadas e um enorme candelabro de cobre, onde podiam arder em simultâneo quinze velas. O consultório possuía uma enorme janela, que enchia de claridade natural toda a dependência, virada para um pequeno mas belo jardim, pintado pelas cores de várias espécies de flores, obra a que o meu pai se deu ao trabalho de criar, na expectativa de assim emprestar ao consultório uma maior dignidade. Fora proibido, por lei imposta pelo meu pai, que pelas proximidades do jardim passassem carros de bois e gente palradora, evitando assim que o sossego, que àquele espaço era devido, fosse importunado.
         E os meus doentes, lentamente, começaram a chegar. Eram filhos e filhas de outros lavradores ricos, filhos e filhas de um ou outro fidalgo que existiam na Mealhada, no Luso e até da Pampilhosa. Mas ao final de alguns meses dei-me conta de que nenhuma gente pobre do povo eu tivera como paciente. Era verdade que não iriam ser os pobres do povo que me fariam ganhar dinheiro. Mas, naquela época, ser médico representava ser acérrimo defensor da dignidade humana… numa altura em que a dignidade e a vida de um homem podiam apenas depender da palavra de um outro homem.
         Com tanta pobreza, fome e tanta podridão que pela Serra do Buçaco escorrera, após a batalha, era certo que a doença germinava em cada canto. Por essa razão resolvi que a minha actividade clínica deixaria de se restringir ao meu consultório. Ir-me-ia dar a conhecer ás gentes que me rodeavam e intervir, se assim achasse necessário. Falei com o meu pai sobre a minha resolução. A principio, a ideia de atender doentes fora do consultório, não lhe pareceu bem. Que diabo, um médico era um médico! Os doentes tinham que o procurar e não ao contrário. Mas depois de lhe explicar que o meu conceito da prática da medicina se baseava na obrigação moral de actuar onde fizesse falta, e não de fazer falta apenas a alguns, o meu pai compreendeu o meu ponto de vista e concordou comigo. Ele sabia que por aquelas terras existia muita gente a sofrer de graves doenças. E assim, um dia se me apresentou com uma bonita caleche, puxada por um garboso cavalo.
         Em 1824 já o nome do doutor Joaquim Passos Lopes corria de boca em boca. Tinha eu então vinte e quatro anos de idade.
         Foi num dia quente de Agosto desse ano, que a Malhal de Sula chegou um criado. Viera montado numa mula. Eu encontrava-me no consultório a trabalhar numa lista de doentes, que do mesmo lugarejo apresentavam febres altas e diarreia, quando o meu pai me bateu à porta.
- Joaquim, sou eu.
- Meu pai, abra a porta. Nunca mais perde a mania dessas cerimónias – disse eu, aborrecido, por sentir no meu pai uma atitude de servilismo sempre que se dirigia ao consultório.
         O meu pai abriu a porta e disse:
- É que está lá fora um criado a preguntar por ti.
- Um criado? Criado de quem?
- Não o entendi bem. Fala muito depressa. Os bofos quase que lhe saiam pela boca. Vai lá e vê o que ele quer.
         Levantei-me da minha mesa de trabalho e fui à porta da entrada. A porta dava para um alpendre com uma pequena escadaria. No final dos degraus encontrava-se um rapaz dos seus quinze anos, com ar muito atrapalhado, segurando com as duas mãos o barrete que lhe tapara a cabeça.
- Então rapaz, o que é que há? – perguntei eu.
- Eu venho em demanda do médico, senhor doutor Joaquim Lopes.
- Sou eu mesmo. Vens de onde?
- Venho do Luso, senhor doutor, a mando de meu amo.
- E quem é o teu amo?
- O senhor Conde de Cértima.
         O meu pai olhou para mim com uma feição muito séria...(em continuação, pág. 20- ex. IX)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

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