quarta-feira, 10 de outubro de 2012

UM CONDE COMO PRÓXIMO DOENTE


...Meu pai, porquê essa cara? – perguntei eu, intrigado com a expressão do meu pai.
- Ó Joaquim, então, é o Conde D. Rodrigo Corga.
- Sim, eu sei quem é. Mas porquê essa cara?
- Tu vais a casa de um conde…
- Não meu pai, eu devo de ir a casa de um doente. Já é tempo de essas coisas da nobreza irem sendo esquecidas e de o deixarem de impressionar ainda tanto. Não é rapaz? – perguntei eu, dirigindo-me ao moço.
- Pois que assim será, sim senhor – respondeu o rapaz – mas o meu amo precisa do senhor doutor.
- Quem está doente?
- Ele mesmo – disse o jovem.
- Pois aguarda um pouco, que já te acompanho. Enquanto esperas, vai lá atrás à cozinha das cocheiras, que a ti Celeste te há-de dar alguma coisa para comeres e beberes e mais à tua mula.
- Obrigado senhor doutor – disse o rapaz, que levando um sorriso a iluminar-lhe o rosto, logo se dirigiu para as traseiras da nossa casa, levando a mula pela rédea.
         Voltei para dentro e dirigi-me ao consultório, munindo-me do que me fazia falta para a consulta de um doente: o estetoscópio, ferramentas cirúrgicas e uma grande variedade de fármacos, guardados em pequenos frascos de vidro que ia comprando numa botica de Coimbra, fármacos esses que faziam parte da Farmacopeia Geral do Reino – a Medicamentorum Sylloge, que fez parte de uma das disciplinas da matéria médica, na Universidade de Coimbra.
         O meu pai seguiu-me.
- Tens que ir bem ataviado, Joaquim. Faz a barba e leva a melhor roupa que tiveres.
- Meu pai, não me aborreça com esses ditos. Se tem algum jeito o que vossemecê está a dizer?!
- Não tem jeito? Não julgues tu que por o teu pai ser lavrador, não sabe reconhecer quando a vida nos dá uma oportunidade de avançar. Esta visita que vais fazer ao senhor conde pode ser muito importante para a tua vida de médico. O senhor conde é um homem com conhecimentos importantes. Se gostar de ti, pode muito bem fazer com que o teu nome chegue longe. E é importante que vás bem parecido.
- Meu pai, eu prefiro ver no senhor conde apenas um doente.
- Quer dizer que tanto se te dá, como se te deu, que o senhor D. Rodrigo Corga seja o doente que vais ver a seguir.
- Sim, meu pai. È isso mesmo.
- Tu não deves estar bom do miolo. Eu sei onde queres chegar, porque não sou parvo. Mas segue o conselho de um ignorante: não ponhas o raio da politica à frente da tua profissão.
- Meu pai, um homem sem convicções é um trapo, um boneco.  O meu pai repare no que as sua palavras escondem, mesmo sem ter noção disso… que pelo facto do meu próximo doente ser um conde, que o devo tratar com mais respeito do que trato os meus outros doentes. É por isso que faz falta o liberalismo. Tem de haver uma maior igualdade entre os homens.
- Olha Joaquim, eu muito melhor do que tu conheço essas injustiças de que falaste, porque as tenho sentido na carne. Toda a vida a fidalguia tentou mangar de mim, mesmo a fidalguia que não tem um cruzado no bolso. A politica é uma coisa muito ordinária. Basta vermos o que se tentou fazer há poucos meses com a Abrilada, em que o infante D. Miguel teve a coragem de se virar contra seu próprio pai e rei. Mas não imagines tu que, se algum dia o liberalismo vencer, os fidalgos vão acabar. Os fidalgos nunca acabam. Mesmo que a monarquia venha a ser mais chegada ao povo, nunca irá botar de fora os seus fidalgos. Os nobres continuarão a ser nobres e ricos, e o povo continuará a ser povo e pobre. Toma tino nestas palavras que te eu disse. Faz pela vida Joaquim. Foi para teres uma vida boa que te fiz médico, não para andares por aí a espalhar ódios pelos fidalgos. Para eles eu pouco valho, mas isso não acontece contigo, pois tu és médico. Todos os doentes te merecem os maiores cuidados, mas os fidalgos exigem de ti uma vénia; e não penses que irão ser os pobres que farão o teu nome chegar longe. Faz a barba a atavia-te como deve de ser.
         E o meu pai virou-me as costas e foi-se embora...(em continuação, pág. 23- ex. X)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

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