quarta-feira, 25 de junho de 2008

NÃO ME DESPEDI DE COIMBRA


Em Coimbra, o chão que me viu nascer em 1956, desloco-me a todo o lado sem problemas, se o fizer a pé. Agora de carro...depressa me perco. Deixei de viver em Coimbra em Agosto de 1974. Felizmente, a vida permitiu-me que fosse na minha terra que eu houvesse de viver o 25 de Abril. Dia maravilhoso! Mas é um tema para uma outra altura. De momento apenas quero apresentar a minha Coimbra.
Essa cidade de sonho compõe-se pela minha escola primária do Arco de Almedina, que me lembro dela como se de lá tivesse vindo há bocado; pelos finados, andar inserido em grupos de cachopos, pela Conchada, Rua Frei Tomé de Jesus, Nicolau de Chanterene, eu sei lá, a pedir «Bolinhos e Bolinhós». Infelizmente uma tradição que Coimbra perdeu. Iamos de porta a em porta, com uma abóbora oca, à qual fora criada uma aparência de caveira, com os buracos a fazerem de órbitas, e uma fenda mais abaixo, com recortes, que simbolizava os dentes da caveira. E dentro uma vela acesa, que iluminava todo o interior da abóbora, que de noite dava um aspecto um tanto ou quanto tétrico. E era isso que se pretendia. E eram imensos os grupos de garotos, que deambulavam por toda a cidade de Coimbra, a pedir «a esmolinha». Mas não era pedida de qualquer maneira. Tinha uma canção própria, cuja melodia, evidentemente, não consigo reproduzir, mas a letra era a seguinte: «bolinhos e bolinhós, para mim e para nós, para dar aos finados, que estão mortos e enterrados, à vera vera cruz, para sempre amen Jesus trus trus, a senhora que está lá dentro, assentada num banquinho, faz favor de cá vir fora, p'ra nos dar um tostãozinho». Aguardávamos. Se a porta era aberta e nos davam qualquer coisa, agradecíamos com o seguinte Cântico:«esta casa cheira a broa, aqui mora gente boa, esta casa cheira a vinho, aqui mora algum anjinho». Se a porta não era aberta e nada recebíamos, retribuíamos da seguinte maneira: «esta casa cheira a alho, aqui mora algum bandalho». E íamos embora, seguindo para outro local.
E quando foi o campeonato mundial de futebol de 1966...o café Apolo, na Conchada, abarrotava de gente. E ao intervalo, nós perdíamos com a Coreia por 0-3. Na segunda parte marcámos 5 golos e ganhámos o jogo por 5-3. Grande Eusébio. O dono do Apolo andou numa fona, a vender cerveja, tremoços e amendoins. Tinha eu dez anos.
E os grandes campeonatos de bueiro a bueiro que fazíamos, na rua, com bolas pequeninas, fintas momentaneamente sustidas pela passagem de um carro; Eram estes os nossos computadores de então.
Coimbra é também formada pelo Liceu D. João III e as maravilhosas pevides do Pianinho; é formada pela professora de Português, senhora D. Lucinda Gomes, famosa em todo o liceu, pelo seu «simpático» reitor- O Pulga, o professor de desenho Jagodes ou «O Certinho», o professor de Canto Coral «Porque Burreais», o impressionante professor de ciências «Tatão», e como não poderia deixar de ser, aquela maravilhosa professora de uma aula de substituição, na minha célebre turma, «A Mofina Mendes», e o inimitável humorista, professor de moral, o padre Urbano Duarte. A praxe académica, em Coimbra, era uma questão séria e para ser cumprida na íntegra. E fazia-se sentir desde o 1ºano do liceu. O «abaixa-bicho» constituía-se pela submissão do aluno mais novo ao aluno mais velho, e quanto maior fosse a diferença entre o mais novo novo e o mais velho, o mais novo teria de se baixar 30º, 50º, 100º, 160º, que era a humilhação maior, porque aos pés do aluno mais velho, o mais novo era obrigado a deitar-se completamente no chão. E isto acontecia sempre que um aluno mais velho acha-se necessário mostrar a sua supremacia sobre o mais novo. Era complicado. E embora eu não tenha sido submetido ás praxes universitárias, sei que eram duríssimas. Mas todos tínhamos orgulho nelas, porque eram só nossas, só de Coimbra.
Na minha Coimbra, descem-se os Loios, caminho íngreme e de terra batida, muito vermelha, que me leva ao Liceu feminino D. Maria, que a todos nos atrai de forma irresistível. Do D. João III ao D. Maria é uma rápida pelos Loios. O regresso é que é o caraças, que a subida é difícil. Mas como nos divertiamos a assusta-las, elas, as do D. Maria, no carnaval, com as bichas e as bombinhas. Eram tão frágeis, tão dóceis, dando aqueles gritinhos sensuais, que nos punham o coração aos saltos. Excepto aquela bruta do chicote, que nos surpreendeu com aquela coisa horrível, comprida e dura, a cortar o ar, estalando de forma a pôr-nos em debandada.
Mas já mais crescidote, mantendo-me no D. João III e elas no D. Maria, os Loios deixaram de me fascinar. Foram substituídos pelos bailes particulares. Se nos negavam o contacto durante a semana, aos Sábados e Domingos eram impotentes para nos parar. E tudo quanto era garagem...e por vezes quartos (só para os muito especiais. Fui especial uma vez ou duas), se enchia de nós e elas, ao som dos gira-discos (na época tecnologia de ponta), de onde se soltavam as vozes de Demis Roussos- When I'm a Kid, My Friend the Wind- Pink Floyd, Neil Diamond, Janis Joplin, Santana, Leo Sayer...malditas segundas-feiras que nos roubavam este paraíso.
O eléctrico, o 4, que se apanhava na Portagem, que passava pela Conchada e ia para Celas.
As piscinas que fiz, na Sofia e na Visconde da Luz. Nadavamos enquanto conversavamos, nós e elas, debatendo o amor, o amor livre, e toda a injustiça que sobre nós caía.
A loucura que foi no Gil Vicente, por altura da estreia de Jesus Christ Superstar.
A bola jogada na Sereia, no campo de Santa Cruz; o dequipamento da Académica que ainda lá enverguei. Mas o físico, então, não ajudava, e apenas fui jogador da Briosa durante um treino. Foi o quanto bastou para que no peito, por toda a vida que já vivi, e pelo resto que tenho de viver, no meu peito apenas haja, desportivamente, lugar para a Académica.
Se alguma vez me tivesse despedido de Coimbra, diria que, só quem dela se despediu é que pode conhecer o seu encanto na hora da despedida. Esse encanto não conheço, porque nunca me despedi de Coimbra, e embora lá não viva há 34 anos, não aceito que ninguém se sinta mais conimbricense do que eu.
Poeta do Penedo

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