sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A DOR QUE FERE A ALMA


...Dizia que eu e a Lucinda esperávamos que o Hélder atingisse a idade adulta para o pormos ao corrente dos factos. Ele decidiria o que fazer. Fosse o que quer que fosse, teria o meu apoio.
- Mas, suponho que isso não irá ser preciso?!
- É verdade, a sua intervenção, senhor doutor, e a de mais alguém, estão a antecipar as coisas.
- E esse alguém é...
- O anjo de quem eu há pouco lhe falava. Mas, por favor, não insistamos nesse ponto. Mostre-me a cópia que fez do tal documento.
- Pois então vamos a ele.
         Américo Afonso levou a mão direita ao lado esquerdo do casaco e do bolso interior retirou uma folha branca dobrada em quatro. À visão daquela folha, o padre entrou numa excitação febril. Bem sabia que aquele não era o documento original. Bem sabia que a mão que escrevera as linhas ali representadas não fora a mão do morgado. Mas, acreditando na competência e seriedade daquele advogado, tinha a certeza de que o que ali estivesse escrito representava um atroz sofrimento, porque foram decerto das últimas palavras que atravessaram a mente do seu querido Vitorino. Por isso, o padre José Soares disse:
- O senhor doutor tem a certeza de que o conteúdo deste documento corresponde fidedignamente ao original?
- Em absoluto. Só aí falta a assinatura do morgado Vitorino.
- Pois vamos então tentar desvendar a verdade - e o padre José Soares iniciou a leitura do documento.
            “aos quatro dias do mês de outubro de mil novecentos e dez, eu, vitorino de lourenço fernando, declaro sob minha fé que vendo a minha herdade vila de ló, delimitada a nascente por s. martinho do porto e a poente por alfeizerão, a norte por salir do porto e a sul pelo vale paraíso, ao senhor barreto raposo. ao assinar o documento, olho com esperança  para a base do armário onde guardo os livros. sem fé.”
         As lágrimas romperam a capacidade de disfarce do padre José Soares. Sempre que era obrigado a falar sobre o morgado o seu amor próprio ficava destituído de significado, a dor feria-lhe a alma. Imóvel, deixando as lágrimas correrem livremente pelo rosto, fixava aquelas palavras. A pequena frase final “sem fé” era tão triste, tão vazia, tão sofrida...(em continuação, ex. LIV)

in Quando Um Anjo Peca

Março/1998

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