quarta-feira, 26 de junho de 2019

UM ENIGMA NO TEXTO DE UM DOCUMENTO


...Américo Afonso, ao ver as lágrimas romperem dos olhos do vigário de Alfeizerão, ficou constrangido, pelo que tentou dar a perceber que não vira tais lágrimas.

- Não é o padre que chora senhor doutor. É o homem, o protector, quase o pai do infeliz que escreveu estas linhas. Pobre do meu Vitorino. Quanto não terá sofrido ao escrever estas palavras. Mas aqui está tudo explicado. Ele foi mesmo forçado a escrever este documento.

- Eu também estou convencido disso - disse finalmente Américo Afonso - mas qual a maneira de provar a mentira?

- Senhor doutor, o documento fala por si. Começa logo pela data. No dia quatro de Outubro de 1910, dia anterior à implantação da república, eu almocei na herdade e passei lá o resto da tarde. Não vi por ali ninguém estranho. Nos dias seguintes ao cinco de Outubro fui à herdade e não notei nada de anormal. Aquela data é terrivelmente intencional e traduz uma mensagem.

- E onde se encontra essa mensagem para poder ser compreendida? - perguntou o advogado.

- É um enigma, mas reparou no despropósito da alusão ao armário dos livros?

- Não me passou despercebida.

- Pois é senhor doutor, a data falseada e o armário bem que podem estar relacionados. É bem possível que a mente humana, perante uma ameaça mortal, se torne arguta de modo a desmistificar a mentira, caso essa mentira seja a razão do perigo.

- E que hajam pessoas perspicazes, com capacidade para entenderem a mensagem - disse Américo.

- Sim, talvez, mas conhecendo o Vitorino como conheci, não é difícil detectar os segredos que existem neste documento. Estou perfeitamente convencido de que enquanto decorria a redacção deste texto, o Vitorino se deve ter apercebido de que o Barreto Raposo não sabia ler.

- E ele não sabe ler?- perguntou o advogado.

- Não.

- Já o confrontou com alguma leitura?

- E é preciso senhor doutor? Numa paróquia como é Alfeizerão, um padre conhece todas as virtudes e defeitos, capacidades e inabilidades dos seus paroquianos. Repare bem no texto. No fim foge por completo à intenção para que foi escrito. O Vitorino escreveu aquelas palavras perfeitamente confiante de que o outro não detectaria o engano. E pelos vistos não detectou.

- E o funcionário da conservatória?- perguntou Américo Afonso.

- Esse já estava bem comprado. Pouco ou nada se preocupou com o que estava escrito no texto. Foi fazer uma escritura bem apressada, antes que o país voltasse à normalidade.

- Que enorme injustiça se vive nesta terra- disse Américo Afonso fixando a folha de papel branca, finalmente se apercebendo da real dimensão daquela injustiça, já com uma existência de doze enganosos anos.

- O senhor doutor conseguiria defender a causa do Barreto Raposo?

-  Não senhor padre. Para abraçar uma causa eu tenho de ter fortes indícios de que defendo quem carece de justiça. O direito está ao serviço dos homens, mas só pela razão eu me bato nas barras dos tribunais. Mas diga-me senhor padre José Soares, vê no documento algo mais que nos possa servir para defendermos a causa do pequeno... dos pequenos, dos gémeos?

- Claro - disse o padre peremptoriamente- o morgado chamava-se Vitorino de Lourena Fernandes e não o nome que aí está escrito…(em continuação, ex. LV)

in Quando Um Anjo Peca

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