terça-feira, 20 de julho de 2010

DA ESTRADA DA DANADA DA VIDA VEM O TI ZÉ

...A taberna do Ti Chico Bento ainda estava aberta. Mas o Caminhante passou ao lado. A conversa que tivera com o pároco concentrara-o apenas no grande propósito que o obrigava a manter-se em Alfeizerão. O diálogo com o padre reavivara as memórias do passado, levara lume às feridas espirituais que se recusavam a cicatrizar. O Caminhante vivia o presente de uma forma superficial. A sua força, o seu verdadeiro ser encontrava-se no passado, o mesmo que fazia naquele momento acelerar as batidas do coração. Que memórias tão profundas seriam aquelas?
Entrou na herdade. Ao encaminhar-se para o minúsculo casebre que lhe servia de habitação, situado no meio do casario trabalhador, o Caminhante passou pela casa de Lucinda Matias. Aquela mulher era um mistério. A cor vermelha e alegre do seu farto cabelo, contrastava com a permanente tristeza do preto da roupa que usava. Que ele soubesse, àquela mulher não lhe morrera nenhum familiar. Porquê então o luto permanente?
A noite já dava luz às estrelas e à lua. A porta de entrada da casa de Lucinda encontrava-se entreaberta. Cá fora, na soleira da porta, estava sentado um rapazinho. Era o Hélder. Com um pequeno pauzito desenhava rabiscos no chão arenoso. Estava triste e perdido, viajando sentado nos pensamentos velozes que o transportavam ao limite dos seus conhecimentos, sabedorias débeis, próprias de um tenro jovem.
- Boa noite Hélder- disse o Caminhante.
- Boa noite Ti Zé da Estrada - respondeu Hélder.
- É do meu olho são ou estás mesmo triste? - perguntou o Caminhante.
- Pois estou sim senhor. E não é para estar? Sempre que eu faço anos, a minha mãe farta-se de chorar.
- Não chorará ela de alegria? É sempre mais um ano que vingaste.
- Não é nada disso não senhor. É mesmo um chorar de tristeza. Hoje faço treze anos e foram lágrimas até não mais acabar.
- Ouve rapaz, a vida é uma coisa muito séria. A danada da vida, para alguns é muito boa, mas para outros pode ser muito difícil. Se a tua mãe chora sempre que fazes anos, é porque lá terá as suas razões, razões essas que talvez seja cedo para tu perceberes. Mas de uma coisa fica tu ciente, o amor que ela tem por ti é muito grande. Vai, vai ter com ela e abraça-a, acompanha-a. Ela está a precisar do teu apoio.
- Ó Ti Zé da Estrada, quem o ouve falar até pensa que vossemecê está dentro da cabeça da minha mãe. Parece saber tudo.
- Não meu rapaz, eu não sei nada. Se soubesse tudo não era agricultor. Mas há uma coisa de que eu sei muito, é de vida. Antes de tu nasceres já havia mundo e eu já por cá andava. É natural que conheça algumas coisas que tu ainda terás de aprender. Tem confiança em mim. Vai pelo que eu te digo. A tua mãe não tem prazer nenhum em chorar. Se o faz é porque o seu coração está magoado.
- Comigo? - perguntou Hélder.
- Não, não é contigo. É com a vida.
- E porque razão é que isso acontece sempre que eu faço anos? A minha mãe não chora quando o meu irmão Pedro faz anos.
- Não te martirizes com isso. Contenta-te com a certeza de que aquelas lágrimas nada têm a ver contigo. Fazem parte da vida, uma vida que tu um dia irás entender. Agora vai, vai dar um forte abraço à tua mãe. Ela merece. Boa noite Hélder.
- Boa noite Ti Zé da Estrada.
O Caminhante seguiu o seu caminho, na ânsia de repousar o corpo cansado na enxerga humilde... (pág. 90- ex. XXX- em continuação)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

6 comentários:

Mari Amorim disse...

O Amor nunca deverá ser responsabilizado por dores,perdas ou danos e tem amplos poderes para neutralizar todas as batalhas, sejam elas emocionais, familiares ou sociais...FELIZ DIA DO AMIGO,que felicidade em ler teus escritos novamente,ainda que seja para um silêncio interior,tão necessário,
peço -lhe,não deixe o Brasil com saudades.
BOAS ENERGIAS!
um abraço na alma,
Mari Amorim
Brincando Com a Rima

Poeta do Penedo disse...

Cara Mari
porque amei e continuo a amar profundamente o meu avô materno, que um dia partiu para o Brasil, e por lá viveu nove anos, no Rio de Janeiro, entre 1920 e 1929, na esperança de melhorar a vida, expectativas que não se concretizaram, mas que deixaram nele uma profunda e saudosa marca, mesmo depois de terem passado quase 70 anos, por volta do ano da sua morte (1994), na minha alma apenas existe carinho e gratidão por esse país irmão.
Obrigado pela simpatia relativamente ás minhas humildes palavras.
Com muita amizade.

Gibson Azevedo disse...

Upa,Poeta! Que bom vê-lo novamente na lida literária. E assim, Deus o conserve.
Grande abraço.

Poeta do Penedo disse...

Amigo Gibson
E que as suas saborosas crónicas continuem a colorir esta nossa pequena quinta (no incomensurável espaço da net), com as imagens pitorescas e humoristicas do Brasil profundo.
Um abraço.

MM disse...

Caro Poeta,

O Hélder fez muito bem em perguntar se a mãe estaria triste com ele. Não se compreende que maldade/mágoa possa ser essa que faz uma mãe chorar no aniversário de um filho e o deixe a pensar que ele tem culpa.

Tratando-se o Hélder de uma criança, permita-me posicionar-me favoravelmente ao rapaz, visto que sente uma tristeza estúpida, a de não compreender porque está a mãe triste.

Acredito que Lucida Matias deveria ter mais consideração pelo filho e evitar estragar-lhe o aniversário sobrepondo a sua tristeza à alegria e vontade de festejar do filho.

Amistosamente,

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
por vezes as coisas não são o que parecem! Temos apenas uma certeza- a Lucinda Matias chora sempre no aniversário do seu filho Hélder.
Um abraço.