domingo, 1 de agosto de 2010

UM «BATE-ESTRADAS» IMPREGNADO DE SILÊNCIO

Á memória do Manuel da Conceição Lopes, combatente do ultramar, militar no Ninda.


...Por vezes Álvaro deixava transparecer, involuntariamente, a tristeza e a amargura que lhe ia na alma.
« È de noite. Estou à porta desta cabana que ostenta o nome pomposo de messe de oficiais. Estou agitado, sofro de insónia. Saí da camarata e vim para aqui. Fui buscar uma mesa e um banco e aqui estou na rua, à luz frouxa duma lâmpada carcomida pelos dejectos dos imensos insectos, colocada sobre a porta de entrada por onde passam os nossos galões. E bem venturosa è esta fraca luz. Brevemente não terei mais nenhuma, pois à meia-noite o gerador è desligado. Aqui sentado deixo que a noite me envolva e me acaricie.
Neste momento, nos seis abrigos de vigia que envolvem o Ninda, encontram-se de sentinela homens do pelotão que eu comando. Nunca a noite se me apresentou tão negra como neste minúsculo ponto de África. A escuridão è tão densa que consigo ver daqui a ponta incandescente de um cigarro que uma sentinela está a fumar. Hoje não há luar. O profundo silêncio è algo que aí na Metrópole nós não conhecemos. Nestas alturas estou convicto de que os corações dos que estão acordados latejam de saudade, pois a verdadeira natureza, entrando-nos pelos ouvidos e nariz, purifica a nossa alma, trazendo ao de cima o que de melhor há em nós. E decerto que o que de melhor há em mim è o amor, a paixão que sinto por ti. Como te beijaria, como te envolveria, como te amaria se neste momento estivesses a meu lado. O fogo desta paixão, que não tem como se consumir, torna-se aliado da saudade. Esta por sua vez pressiona-me o coração, o que faz com que as lágrimas corram ligeiras pelo meu rosto, agora que só Deus me vê e Dele eu não tenho vergonha. São essas lágrimas que acalmam aquele fogo. Com certeza que estes momentos de amargura são comuns a todos os que comigo coabitam no Ninda.
A guerra è má, cruel, mas tem uma faceta boa: une os homens num abraço tão apertado, tão profundo, que os amigos da tropa têm para nós um sentido diferente, uma outra versão de amigo. E penso que ficarão para toda a vida. Pelo que tenho ouvido de veteranos, è bem possível que um dia mais tarde eu venha a ter saudades deste lugar de inebriante beleza, mas também de permanente perigo. Acontece que essa inexplicável saudade tem muito nexo. Ter saudades dos maus momentos da tropa è ter saudades de uma juventude que já foi nossa. E è sem dúvida nenhuma uma homenagem à solidariedade, ao sentimento de entre ajuda, à manifestação de uma verdadeira, sã e desinteressada amizade.
Não sofras com esta carta. Já me sinto muito melhor. Tive a sensação de que algo de muito belo se aproximou de mim, me tocou e levantou o meu astral. Envio-te esta carta apenas para que, através dela, possas sentir a ambiência de uma verdadeira noite africana, porque este bate estradas vai impregnado de silêncio, de escuridão e de aroma de África.
Como eu te amo Loirinha».
E memorizando as notícias de Álvaro, envolvida por um amor tão distante, mas tão capaz de fazer o seu coração bater de emoção, Catarina chegou ao café Nicola, surpreendida por já ali se encontrar...(pág. 62- ex. XIII- em continuação)

in VISITADOS

Novembro/1999

2 comentários:

Sândrio cândido. disse...

como diria camões, ah meu amor...
ou algo parecido.
a distância e a poesia desta prosa encamtam, resta me ler e silêncir-me.

Poeta do Penedo disse...

caro Sandrio
o amor atinge a sua expressão máxima, quando se manifesta em teatro de guerra.
Camões amou em continuo conflito com os homens. Talvez por isso mesmo a sua poesia seja imortal.
Com amizade.