domingo, 22 de agosto de 2010

UM TOQUE DE LUZ



...Caminhava sozinho, atento ao delicioso silêncio de uma cidade adormecida. Como o céu estava estrelado! Subitamente, na Rua de S. Sebastião, a cerca de duzentos metros de sua casa, saltaram-lhe ao caminho quatro indivíduos. Tinham estado escondidos na profunda escuridão de um pequeno beco. Serôdio logo os reconheceu. Eram o Narciso Conde e o seu grupo. Aí estava a resposta ao que se passara três meses antes. Serôdio estacou o passo. A sensação de perigo iminente penetrou fundo nos seus sentidos, fazendo com que a adrenalina tomasse conta de si. O batimento cardíaco disparou. Serôdio observou atentamente aqueles quatro rostos. Somente Narciso Conde denotava raiva e ódio. Os outros três tentavam apenas mostrar agressividade.
- Vocês aqui a esta hora?- perguntou Serôdio.
- È verdade- respondeu Narciso Conde- eu amanhã vou para França, trabalhar na apanha do tomate. Estou aqui para te agradecer as ricas férias que me arranjas-te.
- Eu?? Mas...
Serôdio não teve tempo de dizer mais nada. Num movimento rápido, aprendido nas aulas de artes marciais, Narciso Conde atingiu-o violentamente no rosto, com um dos pés. De um instante para o outro Serôdio sangrava abundantemente do nariz. À voz de comando de Narciso, os outros três rapazes lançaram-se sobre Serôdio, agredindo-o com murros e pontapés. Recebendo golpes sobre golpes, Serôdio foi fortemente empurrado contra a esquina formada pelo beco onde os atacantes tinham estado escondidos, e a parede de um prédio. Entorpecido pelas dores, naquela esquina bateu violentamente com a cabeça, tendo de imediato perdido os sentidos.
Breves foram os momentos da agressão, mas suficientemente poderosos para deixarem Serôdio inanimado, com profundas lesões.
Narciso Conde e o seu grupo, ao verem Serôdio por terra, sem dar sinal de si, sangrando abundantemente, desataram a fugir.
- Se calhar exagerámos- disse um dos do grupo.
- Se morrer eu envio-lhe uma coroa de « fleures»- disse Narciso Conde cinicamente.
Instintivamente, enquanto agrediam Serôdio, os quatro rapazes, possuídos por ancestrais sentimentos animalescos de caça, berraram e guincharam, pelo que acordaram algumas pessoas que dormiam nas casas vizinhas.
Serôdio estava perplexo. As dores que sentira inexplicavelmente haviam desaparecido. Ainda correu alguns metros em perseguição dos seus agressores, mas eles já iam longe. Como viu que entretanto algumas pessoas chegavam ao local, resolveu voltar para trás.
- Foi o Narciso Conde que me atacou. Por sorte estou bem- dizia ele para as pessoas que se aproximavam.
Alguma coisa não estava bem. As pessoas parecia que o não viam. Duas senhoras, olhando para a entrada do beco, levavam as mãos ao rosto, enquanto pediam desesperadamente que fosse chamada uma ambulância. Serôdio olhou para onde elas olhavam... e ficou estarrecido. Ali, no chão, estava abandonado o seu corpo ensanguentado. O seu forte cabelo russo era agora uma horrível pasta de sangue, sangue esse que lhe cobria todo o rosto, o pescoço e lhe empapara a simples camiseta que vestia. Serôdio começou a apalpar-se... e sentia-se, estava vivo, mas se calhar também estaria ali morto. Foi quando estava possuído por aquela indescritível confusão, que sentiu a aproximação de luz com uma intensidade que nunca vira. A luz era imensamente forte, mas não iluminava a rua, nem as casas, nem as pessoas, nem o seu próprio corpo para ali atirado. Apenas ele era bafejado por aquela intensa e confortável luminosidade. Junto a si, sem que tivesse dado pela sua chegada, encontrava-se uma bela senhora, vestida com compridas vestes brancas.
- Não tenhas receio, está tudo bem- disse a senhora.
- Está?- perguntou Serôdio- mas eu estou ali cheio de sangue...
- Não, tu estás aqui a falar comigo. Ali está apenas o teu corpo, a vestimenta de um tal Serôdio naquela vida.
- Aquele e eu não somos o mesmo?
- Em relação à vida terrena aquele è o Serôdio. Relativamente ao Cosmos, aquele è um corpo a quem deram o nome de Serôdio, corpo esse que tem servido de invólucro a um certo espirito que és tu, que antes de te chamares Serôdio, já tiveste outros nomes.
- Minha senhora, eu estive com amigos junto à ria. Não bebi nada...
- Sossega- disse a senhora exibindo um terno sorriso- daqui a pouco já vais entender muitas coisas- e pegando-lhe na mão guiou-o através da luz...(em continuação, pág. 50, ex. XV)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

MARÇO/2003

4 comentários:

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,


... Que bom que assim fosse... que reconfortante...

... ou talvez seja mesmo...

Um abraço (brioso)

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
acredito convictamente que assim seja. Haverá outra forma de dar sentido à existência?
Briosas saudações.

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

... pois talvez não haja...

Quanto a este tema, deixo sempre as minhas reticências.

Um abraço

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
é natural, pois que é o maior mistério do homem, muito embora para muitos, para todos os que encontram no materialismo o objectivo da vida, a morte não tem qualquer mistério. Morreu, enterrou-se. Tão simples quanto isto.
Mas há um pressentimento no ar. Devemos dar-lhe alguma atenção.
Briosas saudações.