domingo, 7 de abril de 2013

REFLEXÕES DE LIBERDADE


...A casa teria cerca de dez metros de altura, por quinze de largura. O telhado era piramidal. No topo da casa existiam três pequenas janelas, no que seria o sótão. Apresentava ainda duas fiadas de janelas, com quatro janelas cada e uma porta ao centro, que dava para uma bonita varanda. No piso térreo uma enorme porta, ladeada por duas grandes janelas. A casa estava envolta por uma pequena floresta de carvalhos e acácias. Em frente da casa existia um enorme jardim, que formava pequenas estradas pelo seu interior, sendo que a mais larga levava directamente à porta da casa. Ao ver a grandiosidade daquele jardim, eu sorri, pois lembrei-me do jardim que o meu pai criara para trazer mais conforto e privacidade ao meu consultório. Comparado com o jardim do Conde de Cértima, o jardim do meu pai era insignificante… em tamanho. Mas era muito mais poderoso do que o jardim que agora aos meus olhos se revelava, pois o jardim do meu pai não fora criado em função de um brasão mas em função do amor a um filho. Não tinha a nobreza dum título fidalgo, mas tinha a nobreza do coração de um pai, que sendo do povo e que por isso tinha sentido o despeito que a nobreza por si sentia, tivera a nobreza de aconselhar o filho a saber viver, não demonstrando azedume e desprezo pela fidalguia.
         Ao entrar no enorme jardim, o jovem Adelino se me adiantou e foi avisar que eu chegava. Descia eu da caleche, quando a enorme porta se abriu, surgindo uma senhora.
- Senhor doutor Joaquim Lopes – disse ela, dirigindo-se a mim.
- D. Maria do Carmo, presumo – retorqui eu, com um sorriso.
- Já vi que o Adelino não se calou na jornada – disse ela com um sorriso.
- É um rapaz simpático – disse eu, estendendo a mão direita à governanta do Conde de Cértima.
- Senhor Doutor, faça favor de entrar.
         Reparei que o Adelino levava o meu cavalo e a caleche para as traseiras da casa. Consultei o meu relógio de bolso que o meu pai me oferecera aquando da minha formatura. Eram quatro da tarde.
         Entrei naquela mansão, seguindo a governanta Maria do Carmo. Ela fez-me aguardar numa belíssima sala de espera. Tudo ali transmitia riqueza. Três enormes cadeirões, dispostos ao centro da sala, rodeando uma delicada mesa coberta com uma toalha de puro linho, alva como a neve. Uma estante exibia uma considerável colecção de livros. Do outro lado da sala, uma outra mesa apresentava uma boa quantidade de garrafas de aguardente velha e vinho do Porto. Ao lado, existiam seis copos de puro cristal. Três, enormes, bojudos, próprios para a aguardente velha. Outros três, muito mais pequenos, para ser servido o vinho do Porto. Ao lado da mesa das bebidas, um sumptuoso relógio de parede, com a caixa de madeira e o vidro artisticamente trabalhados. No seu permanente andamento de balancé, o pêndulo marcava quatro e um quarto. Quando me aproximava da estante para ler os títulos inscritos nas lombadas dos livros, surgiu de novo a governanta.
- Senhor doutor, tenha a fineza de me seguir. O senhor conde aguarda-o nos seus aposentos.
         Mais uma vez segui a governanta. Era uma senhora de porte fino, aparentando quarenta a quarenta e cinco anos de idade, toda vestida de preto, de olhar cândido, mas triste. Este seu semblante estava em sintonia com a situação do reino, pois os tempos que se viviam, mais propriamente os vinte e quatro anos que levava o século dezanove, eram profícuos em produzir semblantes como o da governanta. As invasões francesas haviam trazido muita fome e morte; depois, o reino, em vez de se unir perante a catastrófica intervenção francesa, para assim reunir forças e erguer-se das cinzas, fez precisamente o contrário. O invasor reprimira, mas paradoxalmente, trouxera com ele uma semente de esperança para o povo. Ao germinar, essa semente, que em muito interferia com os direitos instituídos da nobreza, provocou a enorme discórdia. O reino encontrara o rumo certo, mas essa estrada era muito sinuosa e perigosa, pelo que fazia com que, principalmente o povo, muito sofresse para seguir em frente.
         A governanta abriu uma enorme porta, fez sinal para eu entrar e eu entrei. Ouvi a porta fechar-se atrás de mim. À minha frente encontrava-se uma grande cama, com a cabeceira constituída por uma profusão impressionante de rendilhados. Grande mestre, o carpinteiro que fizera aquela obra. E na cama lá se encontrava o primeiro conde que eu via na minha vida. Pude verificar que tanto os pobres como os ricos, na doença, apresentavam o mesmo olhar mortiço, os rostos retorcidos pelos esgares de dor. Se retirássemos toda a demonstração de riqueza que envolvia aquele homem, e apenas ficasse o rosto, no vazio, concluir-se-ia que a carne nada tem de nobre. A carne é precisamente igual, tanto nos fidalgos como nos plebeus. O que será então que a nobreza influencia? A mente?...(em continuação, pág. 28- ex.  XII)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009 

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