domingo, 9 de junho de 2013

UM SOPRO DE PAZ NUM CENÁRIO DE GUERRA

...Álvaro encolhia os ombros e sorria. Todos se entreolharam e começaram a rir à gargalhada.
-         Bom, vamos ter com a restante rapaziada. Deste dia nunca mais me esqueço. Dentro de um caldeirão mágico alguém pôs uma floresta densa, uma picada de fazer nervos, uma companhia de militares portugueses que procuravam cruéis inimigos, um alferes bruxo, um capitão maluco, turras com habilidades de saltarem troncos, darem guinchos e pinotes sem se lhes fazer qualquer mal, e três russos...ou suecos...ou finlandeses... esse alguém mexeu a mistura dentro do caldeirão mágico, e surgiu um gozo de um dia passado em Angola, no maiombe guerrilheiro.
         E abanando a cabeça, o capitão Rebelo dirigiu-se para o outro grupo de combate, que ficara na picada aguardando, enquanto era seguido por cem homens que muito desejavam que a guerra, que todas as guerras tivessem sempre aquele desfecho. Ao passarem pelo tronco que obstruía a picada pegaram nas armas abandonadas pelos guerrilheiros angolanos. Muitas daquelas balas, ainda miraculosamente inseridas nos carregadores, estavam destinadas a embeberem-se no sangue de muitos dos que agora as transportavam. Que dia aquele! Que incrível história de guerra...que saudável sopro de paz num cenário predestinado a colorir-se de vermelho, mas que por súbita intervenção do inexplicável, e mau grado do seu cenógrafo, se pintara de verde esperança.
         Chegados à curva da picada, os cem homens passaram por uma grande cratera feita pelo rebentamento da mina.
-         Havia de ser lindo- dizia o comandante de companhia enquanto mentalmente media a dimensão dos efeitos destrutivos, ao inspeccionar tão grande buraco.
         Todos os olhares se voltaram para o local onde estivera armadilhada a mina. Impressionados por aquela visão, os soldados quase que podiam sentir, arrepiados, a deslocação do ar provocada pelo violento rebentamento e as centenas de estilhaços buscarem avidamente os seus corpos. Para alguns teria sido uma prenda de Angola, uma lembrança para o resto de suas vidas, ou o final das suas vidas numa lembrança sem memória.
         Na curva aguardavam-nos aqueles que tinham ficado na coluna. O alferes que ficara à frente do armamento pesado, dirigiu-se ao capitão Rebelo dizendo:
-         Meu capitão, isto è um milagre. Numa zona operacional como è esta, capturarmos cinquenta turras desta maneira tão pacífica... eu nem sei o que dizer.
-         Nem eu nosso alferes, nem eu. Na guerra não è assim que acontecem as coisas. Até tenho receio de levantar suspeitas no Quartel General. Onde estão os turras?
-         Estão ali deitados no chão- indicava o alferes.
         Toda a companhia avançou. Na picada, junto aos carros militares, encontravam-se os cinquenta negros deitados de barriga para baixo, com as mãos atadas atrás das costas, formando uma comprida fila, guardados pelos soldados portugueses, que de pé lhes apontavam os tapa chamas das g3.
-         Há algum que fale português de gente? Sabe-se porque è que fugiram sem mais nem p’ra quê?- perguntava o capitão Rebelo.
-         Nós vimo-los a correrem em nossa direcção- explicava o alferes de armas pesadas- logo lhes apontámos as armas. Eles caíram aqui de joelhos sem oferecerem resistência. Depois eu fiz algumas perguntas e houve um, que fala um português comestível, que disse quando se encontravam atrás do tronco, começaram todos a ouvir uma voz que não sabiam de onde vinha, que lhes falava em dialecto Nhemba, e que lhes dizia que os portugas sabiam que eles estavam ali e que se não fugissem iam ser todos mortos. Logo a seguir surgiu um sol no meio das árvores...
-         Isto anda tudo doido- interrompeu o capitão Rebelo- nós estávamos atrás deles e não vimos nem ouvimos nada.
-         E de dentro do sol apareceram três brancos com roupas esquisitas. Eles entraram em pânico e fugiram- concluiu o alferes.
-         Você disse três brancos?- questionou o comandante de companhia.
-         Sim meu capitão, foi o que eles disseram, três brancos.
-         Alferes Santa Cruz, você que falou com eles, o que me tem a dizer a isto?
-         Meu capitão, eu não falei com eles. Apenas recebi mensagens telepáticas. E não sei o que diga. Percebo tanto isto como o meu capitão. Agora, que a mensagem que recebi se mostrou completamente verdadeira, disso não há dúvida nenhuma. E com certeza que...sejam lá eles quem forem, são indiscutivelmente nossos aliados.
-         Pois, e eu capitão do exército português, se digo ao Marcelo Caetano que, se tive êxito numa missão de reconhecimento, devo-o ao apoio de aliados desconhecidos e praticamente invisíveis, sou dado como imbecil, alienado, incompatível com a função, e adeus carreira.
-         Meu capitão- disse Álvaro- o senhor tem cento e cinquenta testemunhas. Dessas, cem viram efectivamente três homens brancos vestidos de uma forma...diferente. Se houve loucura, ela foi colectiva mas perfeitamente justificada. Haverá em qualquer parte do mundo um momento de guerra mais pacificador do que este? Capturarem-se cinquenta elementos ao inimigo sem se verter uma pinga de sangue?

-         Você tem razão alferes Santa Cruz. Eu estou como o pobre que desconfia da esmola, quando ela è muita. O governo quer resultados e aqui esses resultados existem. Mas só por isso me posso sentir um pouco confiante, porque em relação ás minhas testemunhas que poderiam confirmar o meu depoimento, não se iluda nosso alferes. Para aqueles senhores ministros, a raia miúda nada sabe dizer, nada sabe ver. Mas fiquemos por aqui, porque já estou a dizer o que não devia. Bom, meus senhores, vamos para o Ninda. Com tanto turra aqui connosco è improvável que existam mais nas imediações. Tenho um longo relatório à minha frente...(em continuação, pág. 84, ex. XXIV)

in VISITADOS

Novembro/1999

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