segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

NA SOLIDÃO DE UM CASEBRE...A VASTA ANGÚSTIA DA GUERRA

...O casebre que servia de moradia a António Avilar encontrava-se ligeiramente mais acolhedor, se é que este termo podia ter significado naquela pobreza. Lucinda e o padre José Soares encarregaram-se de levar algum conforto àquelas paredes feitas de desilusão. A enxerga velha e apodrecida fora substituída por uma pequena cama já bastante usada, feita de ferro, pintada de branco, apresentando aqui e ali o sobressair castanho da ferrugem. Um velho colchão de palha, ao qual fora previamente mudada a palha, completava a cama. Três cobertores castanhos com riscas transversais vermelhas, serviam para defender do frio o corpo cansado do morador. Uma bacia branca, colocada num suporte próprio e um jarro também branco, eram a maior utilidade e a única decoração daquele local. Fora improvisada uma lareira a um dos cantos do casebre. Bem útil era. Atenuava o frio que teimosamente entrava pelas frinchas existentes entre as velhas tábuas que davam forma àquele abrigo.
Estava-se em pleno Novembro. O Outono tornara-se mais frio. A noite envolvia todo o casario trabalhador da herdade Vila de Ló. Através da escuridão plena divisava-se o vermelho vivo e quente das brasas, que piedosamente na lareira aqueciam o ar do pobre casebre. Lá fora o vento soprava forte e o céu molhava a terra com chuva intensa, que abatendo-se sobre Alfeizerão, fazia a água escorrer sobre o telhado da pobre habitação de António Avilar, criando bicas, tantas quantos eram os regos côncavos formados pelas telhas.

António Avilar dormia na velha cama. Dormia um sono agitado. Repentinamente acordou e encontrou-se sentado na cama. O seu rosto fortemente barbado suava. Levantou-se e tacteando com as mãos encontrou a caixa de fósforos que procurava. Acendeu a vela de sebo e com o mesmo fósforo acendeu ainda um cigarro. Inalou profundamente o fumo do tabaco. Estava deveras pensativo, incrédulo, preocupado, confuso. Acabara de ter um pesadelo. Mas não fora um pesadelo normal. Sentia que algo o avisara contra um perigo iminente. Um homem que ele nunca conhecera, vestido de preto e calçado com botas de montar, surgiu-lhe repentinamente quando ele trabalhava perto dos seis carvalhos. Agarrou-o por um braço e velozmente, não compreendendo como, se dirigiram ambos para o solar. Quando lá chegaram, o tal homem desapareceu e António Avilar ficou ali, especado, observando uma daquelas coisas esquisitas com quatro rodas a que chamavam automóvel, que ali se encontrava parado. Subitamente, por detrás do automóvel apareceu o mouro, que logo montou naquela coisa, tendo-se esta de imediato posto em movimento. O mouro berrava e com a cimitarra cortava o ar, encetando uma feroz perseguição ao desgraçado do António Avilar. Este corria, corria imenso, olhando de vez em quando para trás. Subitamente, da retaguarda do automóvel surgiram soldados alemães que com as baionetas brilhantes ao sol ajudavam na perseguição. António Avilar queria fugir para algum local seguro, mas tudo se transformara num enorme deserto. Só existiam ele, o automóvel, o mouro e os soldados alemães, que progressivamente se aproximavam. Nesse momento o sol tornou-se também seu inimigo, ferindo-lhe os olhos e retirando-lhe força às pernas para prosseguir a fuga. Caído no chão, sem protecção, viu horrorizado o automóvel aproximar-se, tendo por ocupante o mouro, de olhos injectados de ódio, clamando por sangue. Quando o automóvel estava prestes a alcançá-lo, acordou...(em continuação, pág. 117, ex. XLIII)
in Quando Um Anjo Peca

Março/1998

Sem comentários: