quarta-feira, 31 de agosto de 2016

QUANDO EM CENÁRIO DE MORTE, A MORTE É UMA SURPRESA

... -         O que è que o senhor me está a dizer? Houve um filho da puta que matou a minha loirinha? Houve um sacana...- e num grito horrível, Álvaro segurou o capitão Rebelo pelos ombros e abanou-o violentamente.
         Desesperado, possuído por uma súbita loucura, esmurrou o rosto do capitão. Este aguentou com paciência e serenidade. Por fim, momentaneamente esgotado, Álvaro caiu de joelhos, chorando raivosamente. Não havia lógica! Ele que estava em terra de guerra, recebia a notícia de que a namorada fora morta em terra de paz?! Aquilo estava virado ao contrário. O capitão Rebelo colocou-lhe uma mão no ombro. Álvaro levantou a cabeça e olhou para cima, para o rosto do seu comandante. Um  fio de sangue brotava-lhe do lábio inferior. De imediato Álvaro se levantou.
-         Meu capitão desculpe-me, fui eu que lhe fiz isso.
-         Não è nada homem, isto não è nada. Se o ajudou em algo, fico satisfeito.
-         Perdoe-me meu capitão, perdoe-me que eu não sabia o que estava a fazer.
-         Está perdoado alferes Santa Cruz. Vou desligá-lo do serviço por uns dias. O furriel Paiva assumirá o comando do seu pelotão, interinamente. Descanse...
-         Meu capitão, haverá hipótese de eu ir à Metrópole?
-         Vou ver o que se pode arranjar.
-         Obrigado meu capitão. Desculpe-me... não fui eu quem o agrediu.
-         Eu sei alferes Santa Cruz, eu sei. Vá para onde se sinta melhor. Se precisar venha desabafar comigo.
-         Obrigado meu capitão.
         E Álvaro abandonou o gabinete. Perdia o olhar no horizonte arborizado, caminhando sem alento. Eram poucos os soldados que se encontravam no aquartelamento. Quase todos tinham ido ao banho nas águas do rio Cuango. Álvaro olhou para os cinquenta guerrilheiros pretos, que apertados uns contra os outros, se amontoavam na parada, à espera de serem transportados para algures. Se qualquer um daqueles homens o tivesse morto a ele, nunca seria considerado criminoso, pois matar em combate não è crime. Mas alguém matara a sua Catarina, alguém aniquilara o sonho de uma vida. E porquê? Que motivo, por mais forte que fosse, que motivo existiria naquele mundo, que levasse ao homicídio da sua querida, frágil e inofensiva loirinha? E ele, possante, musculoso, uma máquina de guerra, perdido num ponto de África, combatia por coisa nenhuma, arriscava a sua vida por uma terra onde nada tinha de seu, uma terra que, no que mais havia de profundo no coração do seu povo, apenas o reconhecia como um desgraçado inimigo, um miserável « portuga ». E para defender interesses que não eram os seus nem do seu povo, para defender um país que não era o seu, não pudera proteger o seu tesouro, não utilizara os seus músculos endurecidos pelo exercício, na defesa da sua razão de viver. Malditos fossem os turras, malditas fossem as colónias, maldito fosse o regime.

         A angústia, vindo enfurecida, prenhe de revolta, brotava do coração de Álvaro e espalhava-se poderosa por todo o seu corpo. Mais uma vez lançou ao vento um grito de desespero e atirou-se violentamente contra a parede de uma das camaratas...(em continuação, pág. 96- ex. XXXIII)
in Visitados
Novembro/1999

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